por Letícia Ferreira, de AzMina –
Em entrevista, socióloga Vilma Reis, que foi pré-candidata à prefeitura de Salvador, fala de movimento para que a cidade tenha sua primeira prefeita negra
Salvador, a cidade mais negra do Brasil, estranhamente em toda sua história nunca teve uma prefeita – ou prefeito – negra eleita. Mas isso pode mudar esse ano. O movimento de mulheres negras de Salvador chacoalhou o cenário político das eleições municipais para, finalmente, ter a candidatura de uma mulher negra à prefeitura. A sociológica e ativista do movimento de mulheres negras, Vilma Reis, lançou sua pré-candidatura a um cargo eletivo pela primeira vez em 2019, dentro do movimento “Agora é ela”, que apoia candidaturas negras para eleições deste ano.
“As pessoas negras não têm poder de decisão em Salvador. Isso tem a ver com o controle dos homens brancos de classe média alta, nos partidos de esquerda, e os empresários e fazendeiros nos partidos de direita. Temos uma asfixia política, não há alternância de poder”, conta Vilma Reis, que é filiada ao PT desde 2007.
Em 471 anos de história, Salvador nunca teve um prefeito negro eleito, ainda que mais de 80% da população se autodeclare negra (soma de pretos e pardos, segundo o IBGE). Apenas por um breve período durante a ditadura militar, o advogado negro Edivaldo Brito ocupou o executivo municipal por oito meses por indicação dos militares.
Em 2006, na Noite de Beleza Negra do Ilê Aiyê, Antônio Carlos dos Santos, o Vovô do Ilê, disse “Eu quero Ela”, em referência à prefeitura de Salvador. Disso surgiu ao lado de tantas outras, a candidatura de Vilma com o movimento “Agora é ela”, pressionando os partidos por candidaturas negras ao executivo em Salvador.
A pressão do “Agora é Ela” fez o Partido dos Trabalhadores retomar suas prévias em Salvador. Apesar da pressão política do movimento negro por Vilma Reis, o diretório do partido escolheu a Major Denice Santiago, criadora da Ronda Maria da Penha na cidade para ser sua candidata, também mulher negra e indicação de Rui Costa, governador da Bahia, também do PT.
Apesar do PT ter Denice, uma pré-candidata negra para a prefeitura da cidade, movimentos de mulheres negras de Salvador, como Fórum Marielles, não pretendem apoiá-la.
“Uma das questões é o fato dela ser uma Major. Vai de encontro ao princípios do fórum, que é essa luta contra o genocídio da população perpetuado por um aparelho de Estado. Outra questão é a trajetória dessa mulher nos partidos de esquerda, nos movimentos sociais e no movimento de mulheres negras”, conta Denize de Almeida, integrante do Fórum Marielles.
Esse movimento pressionou os partidos a repensarem a sua democracia interna, segundo a cientista política Waneska Cunha dos Anjos, dos Instituto Federal da Bahia (IFBA). “Nós olhamos a democracia pelo ponto de vista das eleições, mas existe o ponto de vista dos partidos, como eles escolhem seus candidatos. Esse processo precisa ser mais transparente, com mais participação. E o movimento ‘Agora é ela’ fez essa contribuição”.
Apesar de não estar mais candidata, Vilma se tornou referência no movimento por uma mulher negra à frente do executivo da cidade. Ex-ouvidora pública do Estado da Bahia e ativista do Movimento de Mulheres Negras, ela falou com a Revista AzMina sobre esse movimento político em Salvador.
Revista AzMina: Por que você decidiu ser pré-candidata à prefeitura de Salvador?
Vilma Reis: Não foi uma iniciativa que tomei sozinha, sou uma mulher de organização política, do movimento de mulheres negras. Na organização da qual faço parte, o Coletivo Luiza Mahin, nós discutimos bastante durante meses sobre tomar uma atitude. Mas era muito interno, para o movimento de mulheres negras, e nós estávamos assistindo a situação da nossa cidade, com a precarização na vida da população, o abandono dos bairros, a ausência de política consistente. Para você ter uma ideia, em Salvador existe um vergonhoso sorteio para vaga de creche. Uma mulher disputa uma vaga de creche com outras 150 mulheres para suas crianças.
Imagine o que é isso:ser a maior cidade negra em termos percentuais fora do continente africano e viver em uma situação dessa, com atitudes tão coloniais. Não é possível seguirmos dessa forma, com pessoas negras sem qualquer poder de decisão. Várias cidades negras no mundo fizeram sua virada política. Imagine Atlanta, que é um marco nessa questão de negras e negros no poder. A família Obama nos Estados Unidos, a presidência de Mandela após o fim do Apartheid na África do Sul. O grande escândalo internacional é o Brasil.
AzMina: Por que você isso acontece no Brasil e, em especial, em Salvador?
Vilma: Isso tem a ver com o controle dos homens brancos mais velhos, de classe média e classe média alta, no caso dos partidos de esquerda. Os banqueiros, empresários, os homens do agronegócio dentro dos partidos de direita. Nós temos uma situação de asfixia política e é quase impossível ter uma alternância de poder enquanto a gente insistir nessa estrutura de comando dos partidos do país.
Nós resolvemos fazer esse debate, obviamente, no campo da esquerda. Porque todos os brancos que estão no poder, na esquerda, construíram suas carreiras nas costas do povo, dos trabalhadores. Portanto, da maioria negra. E a situação de Salvador é vexatória,, porque as mulheres negras são pensadas para serem no máximo vices ou vereadoras. São candidaturas largadas, não têm qualquer nível de cuidado ou investimento. Elas não são prioridade. Nós estamos falando de algo muito grave, práticas de racismo estrutural dentro dos partidos.
AzMina: Como você acha que isso pode mudar?
Vilma: Organizações negras estão articuladas exigindo que metade do recurso do fundo eleitoral obrigatoriamente destinado a candidatura de mulheres seja para a candidatura de mulheres negras, para garantir algum nível de justiça a partir de outro marco de divisão do fundo eleitoral em um processo que corre no TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Nós estamos indo para um embate que precisa acontecer. No momento em que se tenta garantir efetividade dos investimentos feito nas candidaturas das mulheres, nós também buscamos justiça racial e equidade. Não tem lugar mais importante para instalar esse debate do que Salvador. É um escândalo político, dos homens brancos de direita e de esquerda, na estrutura política partidária.
AzMina: O que acontece nos partidos de esquerda considerando que eles, em sua maioria, são as legendas que levam a pauta racial para a política institucional?
Vilma: Boa parte do trabalho histórico do movimento negro, que se levantou nesse país ao longo de um século, foi construído na esquerda. Mas como diria Sueli Carneiro: “entre esquerda e direita, eu sou preta”. Eu reposiciono essa frase da seguinte forma: quem empurra a esquerda para a esquerda no Brasil somos nós, a esquerda negra – porque a pauta do movimento negro sempre foi uma pauta emancipatória, progressista, posicionada nas agendas mais avançadas no Brasil e no mundo.
Durante muito tempo, você não tinha brancos da esquerda defendendo as cotas junto com o movimento negro. Foi uma esquerda negra muito bem formada, constituída por um quadro de intelectuais potentes como Edison Cardoso, Luiza Bairros, Marcelene Garci e Cleber Santos que foram para frente, organizações como Geledés e Ceafro. As organizações tradicionais brancas de esquerda no início não tinham posição, algumas nos atacavam.
No campo da esquerda, quem são nossos adversários? Nossos próprios companheiros, que vêm de um modelo erguido nos anos 80. Um modelo que era importante no momento, como projeto para a democracia. Mas que precisa se renovar e enxergar a potência política que fez a gente colocar a Marcha de Mulheres Negras nas ruas em 2015.
Não dá para asfixiar a potência que é o movimento de mulheres negras, que é quem carrega todas as lutas nesse país. Libertar nosso povo da guerra às drogas, do superencarceramento. Somos nós que nos levantamentos contra a violência aberta de colonização atualizada contra as trabalhadoras domésticas. Nós estamos falando de uma agenda nacional e estruturante.
É nesse contexto que nós defendemos a paridade racial nas linhas de decisão dos partidos.
AzMina: Você lançou a sua pré-candidatura no dois de julho do ano passado, data da Independência da Bahia. Como foi a preparação para esse momento?
Vilma: Nós chegamos ali com 30 anos de luta e militância em nossas biografias com o Coletivo Luiza Mahin, a Rede de Mulheres Negras da Bahia, o Fórum Marielles. Unindo tudo o que nós temos de mais potente de articulação de mulheres negras aqui na Bahia. Antes de chegarmos ali, nós articulamos com todos os grupo possíveis de Salvador para dar sustentação à nossa posição.
Fazer o que nós fizemos no dia dois de julho, que é a maior data cívica na Bahia, tem a ver com esse acúmulo político. Desde de 2004, nós mulheres negras da Bahia já havíamos criado o movimento “Salvador, cidade das mulheres”. Em 2007, sob a liderança de Luiza Bairros, filiamos 177 mulheres negras e mulheres brancas ao PT, na sede do partido.
Temos uma trajetória, mas infelizmente nossos partidos não estão registrando isso. É importante dizer que nesse dia nós levantamos um movimento político original, sem tutela, sobre o comando das mulheres negras, como um projeto emancipatório, democrático, olhando para toda a cidade de Salvador. A nossa ação política mudou para sempre a narrativa. Pensamos um projeto de liberdade para toda a sociedade. E como dizia o Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978: o projeto do povo negro é um projeto para toda a sociedade brasileira.
AzMina: Como você vê a escolha do PT nas prévias em Salvador pelo nome da Major Denice? E para onde vai o “Agora é ela”?
Vilma: Entramos em uma disputa e respeitamos as instâncias partidárias. A decisão foi tomada por uma instância nas condições que nós tínhamos, inclusive de saúde, sanitárias, não era possível mais reuniões em plenárias abertas [por conta da pandemia do covid]. Foi feito um diretório digital pela primeira vez na história. Os grupos políticos dentro das suas potências disputaram ali. É importante que um partido formado por campos políticos respeite todos os seguimentos, inclusive os que têm uma posição como a nossa, e que continuem respeitando as questões que nós defendemos.
O movimento “Agora é ela” e toda a sua energia política agora está sendo colocada para eleger uma bancada de parlamentares de esquerda na Câmara Municipal de Salvador. E vamos continuar a nossa batalha para fazer com que homens e mulheres de esquerda libertem a nossa cidade dos lobbys, principalmente os econômicos. Nós disputamos, nossa posição foi vencida, e a gente segue.
AzMina: O que as mulheres negras trazem dos movimentos sociais para a política, pensando nos novos modelos que temos visto nas últimas eleições, como as campanhas e mandatos coletivos?
Vilma: Quando eu olho no meu estado, a única parlamentar negra que chegou à Assembleia Legislativa foi Olívia Santana, que tem uma postura muito correta, firme no campo da esquerda. Mas a situação de asfixia política para as mulheres negras aqui é muito grave. Nós não vivemos essa emoção de ver mulheres negras de esquerda no parlamento. Esse é o projeto que nós defendemos e que nós disputamos. Mas nós vemos com muita alegria a presença da Leci Brandão da Assembleia Legislativa de São Paulo, da Erica Malunguinho, que é uma potência. Mas essa não é a nossa realidade na Bahia.
E nós estamos lutando para que se torne uma realidade. E as plataformas coletivas, que fazem com que mulheres incríveis como Andreia de Jesus, uma parlamentar brilhante consiga estar no parlamento e leve as agendas incríveis que ela leva, tudo isso para nós é uma nova escola de ciência política, que mostra o acúmulo de nós, mulheres negras, ao longo de 40 anos. E lembrar que Lélia Gonzalez foi a primeira que abriu esse caminho contemporâneo quando foi candidata em 1982, Luiza Bairros [ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Brasil entre 2011 e 2014]. Nós somos herdeiras delas. A história que a gente traz para a cena política contemporânea tem a ver com o acúmulo que elas nos deram.
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