Portaria do Ministério da Saúde, Decreto Municipal e recursos abrem perspectiva de melhoria da saúde em comunidades que vivem isoladas geograficamente em três Reservas Extrativistas da Terra do Meio.
Uma articulação realizada pelo Instituto Socioambiental (ISA) com o Ministério da Saúde, Prefeitura de Altamira e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), impulsionada pelo Ministério Público Federal, foi o ponto de partida para tirar do papel um sistema de saúde diferenciada para populações extrativistas que vivem isoladas geograficamente na Amazônia.
Em maio último, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 835 que amplia em 80% os recursos para equipes Saúde da Família Ribeirinhas e Fluviais. A medida permite maior acesso das populações ribeirinhas à rede pública de saúde e foi elaborada a partir de diagnóstico realizado nas Reservas Extrativistas (Resex) da do Riozinho do Anfrísio, Iriri e Xingu e que teve continuidade com consultas e planejamento. As novas regras já estão em vigor. Com a Portaria, o País acaba de redefinir a organização das equipes Saúde da Família para a população ribeirinha. (leia a Portaria).
Em 2010, o ISA convidou o médico sanitarista Douglas Rodrigues, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Federal de Paulo (Unifesp), que tem longa experiência de atendimento à saúde de indígenas do Parque Indígena do Xingu (PIX), para coordenar o diagnóstico epidemiológico e ajudar a elaborar um plano de saúde para as Resex da Terra do Meio. Rodrigues contou com o apoio de uma equipe multidisciplinar para realizar o diagnóstico, fruto de uma parceria do ISA com a prefeitura de Altamira.
“Encontramos uma assistência incompatível com um País que tem um sistema único de saúde”, avalia o sanitarista. Nas Resex vivem cerca de mil extrativistas dispersos em mais de dois milhões de hectares. Rodrigues explica que durante o diagnóstico, realizado entre 2010 e 2011 se deparou com situações graves como hipertensão, desnutrição infantil e índices de hanseníase absolutamente fora do controle. Além de constatar que as crianças entre três e sete anos apresentavam o baço aumentado. “Isso a gente vê em comunidades sujeitas a repetidas malárias com tratamento inadequado, que junto com a desnutrição leva facilmente à morte”.
Quatro anos de trabalho, reuniões, planejamento e articulações
Foram quatro anos de trabalho em campo conversando com extrativistas, fazendo reuniões de planejamento e diversas articulações até chegar ao que foi denominado de “Modelo de Atenção Integral à Saúde das comunidades extrativistas isoladas geograficamente da Terra do Meio”. A proposta de plano de saúde diferenciada foi feito de maneira participativa e se relaciona com vários programas em operação do Sistema Único de Saúde (SUS). A lógica do programa é apoiada em experiências consagradas pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Um dos problemas do SUS é a fragilidade da atenção básica à saúde e que acaba sobrecarregando os hospitais com casos que poderiam ser resolvidos nos postos de saúde ou pelas equipes de saúde da família. Esses casos seriam 90% dos que procuram os hospitais, que deveriam ser acionados apenas nos casos mais graves. A distorção provoca problemas de atendimento de uma ponta a outra do sistema. Por outro lado, entre os avanços mais significativos do SUS está o Programa Saúde da Família (PSF), um dos principais responsáveis, ao lado do Bolsa Família, pela redução da mortalidade infantil no País. A publicação da Portaria nº 835 pode representar finalmente a inclusão das populações extrativistas isoladas geograficamente aos direitos básicos de todos os brasileiros.
Vale ressaltar ainda que a saúde e a educação diferenciadas das populações extrativistas da Terra do Meio foram tema da primeira audiência pública realizada pelo Ministério Público, em 30 de outubro de 2013, em Altamira.
O diagnóstico foi apresentado por representantes do ISA, da Secretaria de Saúde de Altamira e do ICMBio ao então ministro da Saúde, Alexandre Padilha, em reunião realizada no fim de 2013. Padilha se comprometeu em adequar os mecanismos de repasse de recursos para as prefeituras visando o atendimento das populações ribeirinhas isoladas, localizadas em rios/regiões de difícil navegação, o que viabilizaria a implantação da proposta de atendimento das Resex apresentada. Em maio deste ano, o atual ministro, Arthur Chioro, publicou a Portaria, que aumenta o incentivo de custeio mensal das equipes Saúde da Família na Amazônia Legal e Pantanal mato-grossense, que atuam nas Unidades Básicas de Saúde Fluviais. Leia aqui a íntegra do diagnóstico.
De acordo com o presidente do ICMBio, Roberto Vizentin, o processo contribui para criar uma perspectiva muito otimista para uma população que está cansada de tanto esperar pelo acesso a direitos básicos.
Do diagnóstico à Portaria
Em novembro do ano passado, por meio de um decreto municipal, a prefeitura de Altamira conseguiu iniciar a contratação de técnicos de enfermagem, garantindo melhores níveis de remuneração aos que se dispusessem a atuar na região. Três profissionais contratados via decreto estão a caminho das Resex para trabalhar por quatro meses até que uma equipe de revezamento seja contratada. Será a primeira vez que as 300 famílias que vivem em áreas isoladas na Terra do Meio terão atendimento em Unidades Básicas de Saúde (UBS) dentro de suas comunidades. (leia o decreto municipal).
A infraestrutura de assistência à saúde existente nas três Resex da Terra do Meio que inclui, pista de pouso, escola, refeitório, sistema básico de energia, alojamento para professor e enfermeiro e o prédio das Unidades Básicas de Saúde (UBS), foram construídas pelo ISA com apoio do Fundo Vale e da Fundação Rainforest da Noruega. As UBS estão sendo equipadas com recursos de um projeto que a prefeitura de Altamira aprovou junto à Câmara Técnica de Saúde do Programa de Desenvolvimento Regional do Xingu (PDRSX).
Com a nova portaria do Ministério da Saúde, a prefeitura de Altamira terá condições de ampliar a equipe de profissionais voltada ao atendimento das comunidades nas Resex. O número de Agentes Comunitários de Saúde, que eram de, no máximo, 12 por equipe, dobrou para 24. A quantidade de auxiliares ou técnicos de enfermagem triplicou – de quatro para até 12 por equipe – e o único microscopista agora faz parte de uma equipe de 12. Para o trabalho de Saúde Bucal, o recurso assegurado pela Portaria praticamente dobra, aumenta de R$ 50 mil para R$ 90 mil por mês.
Além da nova formação, as equipes poderão acrescentar até dois profissionais da área da saúde de nível superior – enfermeiros ou outros profissionais entre os previstos para os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). “Agora é conseguir contratar as pessoas, pois não é fácil fixar profissionais nessas regiões, especialmente os médicos. Depois é garantir a capacitação das equipes, que incluem os agentes comunitários e microscopistas”, avalia Rodrigues.
Belo Monte e a saúde ribeirinha
O gabinete onde Waldeci Maia, Secretário de Saúde de Altamira, trabalha fica a uma distância que pode chegar a 20 dias de barco das Reservas Extrativistas da Terra do Meio.
Altamira é maior que países como a Grécia e Portugal com seis Terras Indígenas, cinco Unidades de Conservação e três Reservas Extrativistas, com 1,5 milhões de hectares de floresta, cujos habitantes compartilham dos mesmos serviços públicos de saúde dos que vivem na cidade.
“Eu tenho de fazer milagre com R$45 milhões, porque metade de todos os recursos anuais estão comprometidos com a folha de pagamento do único hospital de portas abertas do município”, reclama o secretário.
Maia também teve de administrar o aumento da demanda extra no sistema de saúde com a vinda de mais de 50 mil novos moradores atraídos pela construção da hidrelétrica de Belo Monte, deixando os extrativistas, que vivem no município, ainda mais vulneráveis.
“Poder contar com um recurso que amplia em 80% os valores destinados a Equipes Saúde da Família Ribeirinhas e Fluviais vai ser um alívio no orçamento da secretaria, sem dúvida”, diz.
Veja aqui o mapa do diagnóstico de saúde da Terra do Meio.
Vidas Transformadas
Benedito Freire da Silva, seu Bené, vive na Resex Riozinho do Anfrísio. A reportagem do ISA conversou com ele em Altamira, onde ele estava participando de uma capacitação de agentes de saúde, atividade que exerce na comunidade em que vive. Para chegar a cidade Bené viajou seis dias de barco. Durante o período de seca do Rio Xingu, que começa em junho e dura seis meses, a mesma viagem pode levar até 20 dias. Em 1996, o agente de saúde viu a cunhada morrer durante o parto. “A criança estava virada, não tinha o que fazer, só rezar para o sofrimento acabar logo”, conta. Ele explica que não havia rádio para pedir socorro, não havia medicação para amenizar a dor, transporte para a cidade ou qualquer possibilidade de evitar a morte em um parto de risco.
Em fevereiro deste ano, 18 anos depois, ele acompanhou a agonia de outro parto de risco. A vizinha de Bené entrou em trabalho de parto na Resex do Riozinho do Anfrísio. Rapidamente a parteira identificou que a criança estava em posição inadequada para um parto normal. Do rádio instalado em 2011, a Ssecretaria de Ssaúde de Altamira foi acionada e um monomotor que partiu de Altamira, com horas de voo e combustíveis assegurados, pode pousar na pista de pouso construída em 2013. Marilene teve o bebê no Hospital Municipal de Altamira. Mãe e filho passam bem.
Seu Bené viu o Presidente Lula decretar a Reserva Extrativista em que mora em 2004, viu também a pista de pouso e os rádios de comunicação chegarem alguns anos depois. No próximo mês, seu Bené poderá levar a neta Ana Paula para tomar vacina na primeira Unidade Básica de Saúde da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio. Ele respira fundo e afirma: “Mudou muito, mas o muito ainda é pouco”.
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* Publicado originalmente no site Instituto Socioambiental.