ODS4

Semiárido: educação transversal e multifacetada

por Liliana Peixinho, jornalista e ambientalista nordestina – 

Este é o segundo texto de uma série de reportagens sobre a vida no semiárido nordestino – 

Brincar de aprender, aprender brincando. As crianças são felizes, responsáveis, disciplinadas, leves, amorosas, respeitosas. O tempo todo estão ao lado dos pais, avós, tios, primos, amigos, visitantes. A harmonia acontece de forma natural, porque não há imposições. Tudo segue o fluxo da natureza, cuidadosa com a vida em seus mínimos detalhes. Todas acordam cedinho, com os pais, ao nascer do sol, e o dia começa leve, com cada um a realizar suas atividades.

O filho de  Nivaldo, por exemplo, que mora vizinho à casa dos avós, a “Casa Mãe’’, ficou responsável, no  período de férias escolares por pegar o leite (eles têm poucas cabeças de gado, insuficiente para produzir leite para todos, e por isso foi feito um acordo para que o leite de todas as famílias fosse adquirido na fazenda vizinha). Assim, Clebson, 14 anos, levanta por volta das 5 h  pega a  bicicleta, passa na casa dos avós, arruma as garrafas de cada família, coloca numa sacola, ajeita na garupa e, em menos de meia hora está de volta com o leite. O responsável de cada família pega a sua respectiva garrafa, com a quantidade já estabelecida conforme o número de membros e necessidade de cada família.

Outro neto, filho de Bentinho, que mora na mesma área da casa dos avós, também levanta cedinho e vai ajudar o pai e os tios em tarefas previamente combinadas. Seja para acompanhar o tio Antônio, na arrumação das caixas de mel, seja para dar comida aos animais, levar para o pastoreio, ou mesmo pegar frutas, arar a terra, ou outra atividade que esteja pautada para aquele dia.

Os avós Bento e Nice levantam bem cedinho e um ou outro, todos os dias, vai para a  cozinha preparar chás e o café. Bento sempre levanta antes, por volta das 4h30,  para ligar as bombas d’água e coletar as folhas utilizadas nos chás  como  canela, erva-cidreira, capim-santo, entre outras ervas cultivadas ao lado da casa. Ele reveza essa atividade com a mulher e se ele faz o chá, ela faz o café.

A mesa fica repleta de copos com chãs diversos para os filhos e netos, que vão esfriando enquanto eles chegam  para começar o dia, pegar o leite, moer o milho do tradicional cuscuz, tomar a benção aos pais e avós, fazer o desjejum, antes de irem para a roça. Toda essa disciplina é harmoniosa e alegre. E uma simples pergunta, como “O chá hoje é de que padrinho-vô Bento?”, pode levar a muitas histórias: como o valor da planta utilizada no preparo do chá ou alguma lembrança relacionada ao  passado.

Histórias que são contadas e ouvidas com muita interação e que depois serão passadas adiante, de forma natural, como saber oral. Essa jornalista, por exemplo, ouviu muitas e muitas lindas histórias, encantadoramente repassadas pela voz firme e doce de André, 5 anos, ao lado do seu atento irmão Samuel, 2 anos, que são filhos do casal Antônio e Gidelma, pais amorosos, pacientes, atentos, cheios de amor para dar o tempo todo.

Quando, por exemplo, Pedro, 6 anos, e a irmã, Angelina, 4 anos, filhos de Rosalvo e Andreia, chegam cedinho, todos os dias,  à casa dos avós,  dão um bom dia especial: o abraço e o pedido de benção a cada um dos tios e avós. Fazem isso com todo o respeito que naturalmente aprenderam com os mais velhos.

A repórter teve o privilégio de ser tratada como Tia Lili e de ganhar beijos e apertos de mão, como bom dia de crianças adoráveis como Henrique e Tainá, (filhos de Bentinho e Valdirene), Clebson (filho de Nivaldo), André e Samuel (filhos de Antônio e Gidelma), Pedro e Angelina (filhos de Rosalvo e Andreia). E era sempre uma festa as invenções na cozinha, como os “biscoitos de letrinhas”, e os  lanchinhos com frutas, e o registro de fotos.

As crianças são acostumadas a tomar café com cuscuz, quase todos os dias. Se, por acaso, a Tia Lili inventava algo diferente, como os biscoitos de letrinhas ( feito com tapioca, ovo caipira, manteiga e água quente), mesmo não contrariando a cultura alimentar local, porque tem a tapioca como base, as crianças só comem se os pais concordarem. Motivo: o cuscuz preparado com milho plantado sem nenhum agrotóxico, colhido e moído na comunidade, é a base da alimentação da comunidade.

O compromisso com a alimentação orgânica é rigorosa. E para quem não conhecia e nunca comeu chocolate, por exemplo, foi constrangedor para a jornalista oferecer chocolate como mimo de Páscoa para as crianças. O respeito à cultura alimentar prima pela prevenção e doces não são bem vindos. Claro que pode se conhecer e se deliciar, eventualmente, com um chocolate, mas isso é como se fosse um evento extraordinário, que não acontece na rotina da vida local. Foi difícil para a jornalista se redimir, pessoalmente, de um mico desses. Mas, como não sabia, foi perdoada Os pais levam muito sério hábitos nocivos à saúde como o não uso de açúcar, refrigerante, enlatados, processados. As famílias teem informações suficientes para dizer não a essa alimentação e, exatamente por isso, se esforçam para plantar, colher e se alimentar o mais organicamente possível. O doce vem do mel, da rapadura, e das frutas in natura. (#Envolverde)