Sociedade

Serviço de entregas com bicicletas por aplicativos de celular

Cadu Ronca e Murilo Casagrande, sócios-fundadores do Instituto Aromeiazero

 A bicicleta é uma poderosa ferramenta de redução das desigualdades sociais e econômicas. As diversas aplicações que ela possui podem ajudar a endereçar muitos dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU, principalmente junto aos objetivos 10 e 11, no que tange à redução das desigualdades sociais e para tornar cidades mais sustentáveis. A ECF produziu um material que mostra a presença da bicicleta em 11 das ODS.

O uso rotineiro da bicicleta reduz a poluição atmosférica, diminui doenças cardiovasculares e diabetes e torna o trânsito das cidades mais seguro, só para elencar alguns dos tantos efeitos positivos de se investir nesse modal. Há exemplos reais de mensuração dos ganhos reais e transversais a partir do investimento na  cultura da bicicleta. Holanda, Dinamarca, Espanha, Colômbia e Japão são exemplos de países que perseguem metas e adotam políticas focadas em ampliar o uso.

Londres, capital da Inglaterra, por exemplo, passou a proibir veículos poluentes no centro em abril deste ano e adotou com força a Visão Zero, conceito que não aceita nenhuma pessoa morta em ruas por acidentes de trânsito  e, até 2023, vai investir 2,3 bilhões de libras (R$ 11,3 bilhões) em infraestrutura cicloviária para levar cada vez mais londrinos a pedalarem, em uma estratégia para estimular as ruas mais saudáveis.

Recentemente, vimos em São Paulo e em outras cidades brasileiras a chegada das empresas de tecnologia de entrega causar uma uma disrupção nos modelos existentes de trabalho. Com um celular na mão e uma bicicleta, jovens da periferia passaram a circular em bairros nobres para atender pedidos de restaurantes e consumidores, causando uma alteração na dinâmica de uso de ruas e ciclovias. Vindos de extremos da cidade, circulam por Pinheiros, Jardins, Itaim e Vila Olímpia  . No entanto, após a divulgação da pesquisa Perfil do Ciclista Entregador pela Aliança Bike, o debate se concentrou na precarização da relação de trabalho do ciclista com as empresas de aplicativos.

O Aromeiazero que, desde 2011, atua para conscientizar a sociedade dos benefícios da ciclo logística, contribuiu na formulação do questionário aplicado. Nosso objetivo é estimular a criação de políticas públicas que tornem logística por bicicletas uma das novas profissões do futuro, para ontem.

O perfil é resultado das entrevistas com 270 ciclistas que fazem entregas na Capital. Em síntese, ele é brasileiro, homem, negro, de 18 até 22 anos de idade, morador das periferias com ensino médio completo e desempregado. Trabalha todos os dias da semana, de 9 a 10 horas por dia, com rendimento médio mensal de R$ 992,00. Além disso, muitos dos respondentes também apontaram longas jornadas de trabalho, longas distâncias percorridas, baixa remuneração e a ausência de direitos ou benefícios mínimos como os principais problemas.

Percebemos uma demanda importante dessa nova classe de trabalhadores e formatamos o curso Viver de Bike Entrega, uma formação de 12 horas voltada para quem gostaria de ingressar nessa carreira de entregas. por bicicleta junto com o Sesc Campo Limpo. Mais de quinhentas pessoas se cadastraram para 15 vagas. No conteúdo, a entrega por aplicativos é uma das opções na logística por bikes. Mas é um importante primeiro passo, uma vez que o desemprego é ainda maior entre jovens de baixa renda.

Vemos o debate sobre essa nova relação de trabalho como um fenômeno complexo – com benefícios e vários pontos a serem debatidos e não como um problema, tal como apontado em várias reportagens publicadas ao longo de 2019. Ele demanda análise e ações mais sistêmicas e integradas que gerem uma reflexão mais abrangente sobre o assunto. Sabemos que o senso comum costuma reduzir a bicicleta apenas como mobilidade ativa, algo para ir e vir, ou ainda limitada a atividades de lazer.

Nessa complexidade, caberia uma ação mais efetiva do poder público, que no mínimo incentive esse profissional a se capacitar para tornar a prestação desse serviço mais atrativa, pois benefícios existem. Há enorme potencial para se gerar soluções logísticas a partir dessa novidade. Ainda que a maioria (59%) dos entrevistados tenha apontado o desemprego como a principal motivação para exercer essa função, 14% responderam que a principal vantagem de fazer entregas é por gostarem de andar de bicicleta.

É relevante constatar que dentro de um cenário de crise econômica e de altas taxas de desemprego e estagnação na ampliação da malha cicloviária, um número expressivo de entregadores queira ser remunerado com atividades que envolvam a bicicleta. Ainda que a maioria de reportagens argumente que  “além de toda a precarização” o ciclista “tem que fazer seu trabalho pedalando”, vale ressaltar que 11% dos entrevistados citaram ser importante encontrar ali uma maneira de ganhar dinheiro nas horas vagas e no universo de quem mora na periferia, 26% revelou que é uma boa alternativa de conseguir o primeiro emprego.

Um desafio dessa magnitude será melhor enfrentado com a ação de agente públicos que tratam do fomento do trabalho, renda, desenvolvimento econômico e empreendedorismo. Mas, por envolver a bicicleta, acaba sendo direcionado agentes relacionados à mobilidade e transporte. Mesmo assim, salvo raras exceções, não recebem a atenção devida.

Durante o lançamento da pesquisa, por exemplo, não houve a presença de nenhum representante da Secretaria de Desenvolvimento Econômico do município. E, apesar de vários convites, nunca contamos com a presença desses agentes públicos nos encontros abertos de alunos do curso Viver de Bike que realizamos regularmente para tratar da geração de renda com bicicletas. Neles, o trabalho por aplicativos de entrega sempre geram muita polêmica e críticas dos participantes.

Dado o histórico e objetivos do Aromeiazero, além de propor esse debate para elucidar tais questões, temos o dever de nos posicionar e tentar influenciar os rumos dessa profissão.

No ano passado, também a convite da Aliança Bike, propusemos que o projeto de lei 31/2019, de autoria de Caio Miranda, que cria a Política Municipal de Ciclo Logística, contemplasse claramente a necessidade de formação e capacitação profissional de profissionais dessa área, seja por meio de ações da prefeitura, seja pela iniciativa privada, incluindo aqui as empresas de entregas por aplicativos.

O texto já foi aprovado em primeira votação pelo plenário da Câmara dos Vereadores de São Paulo mas, para sair do papel e ajudar a construir uma nova forma mais sustentável e eficiente de transportar mercadorias em São Paulo, será necessário muita pressão para ser aplicado pelo executivo.

É certo que existe um importante desafio trabalhista, mas há muito potencial a ser desenvolvido. Limitar a atividade a uma “situação análoga à escravidão”, só estigmatiza e fragiliza os profissionais. Precisamos evoluir da simples constatação do “trabalho precarizado” que culminou na expressão “uberização” para focarmos nas soluções sistêmicas necessárias. Só apontar o problema não permite endereçar a questão em toda a complexidade que possui e com isso chegar a soluções possíveis.

De posse dos dados da pesquisa, é preciso nos organizarmos para que cada ator dessa cadeia assuma a sua cota de responsabilidade. Nesse sentido, a criação de um grupo de trabalho sugerido por Daniel Guth, da Aliança Bike é um passo importante. Além da iniciativa privada, é necessária a participação das secretarias municipais e estaduais de transporte, emprego e desenvolvimento econômico, as agências de fomento econômico, grupos de trabalho dos legislativos municipal e estadual e representantes da sociedade civil, como o Aromeiazero e Ciclocidade.

Só com o debate e os encaminhamentos gerados por este grupo de trabalho será possível avançarmos e tomarmos decisões de acordo com a profundidade que a questão demanda. A seguir, elencamos as principais ações iniciais que cada setor deve tomar para tornar a vida do ciclista entregador mais humana e produtiva, gerando benefícios para a sociedade em geral.

  • Poder Público Executivo:
    • Regulamentar o serviço, utilizar os impostos e taxas (ou pelo menos parte deles) para ser aplicado em formações, educação, conscientização e em infraestrutura para ciclistas e pedestres. Além de regulamentar e fiscalizar as legislações criadas e a serem criadas pelo Legislativo;
  • Poder Público Legislativo:
    • Aprovar os projetos de lei sobre o assunto e também cobrar a sua regulamentação como no caso do supracitado PL apresentado pelo Vereador Caio Miranda. O Vereador Police Neto também está desenvolvendo um PL sobre o tema no qual, entre outras questões, será cobrado dos aplicativos de entregas que disponibilizem os seus dados com o Poder Público para possibilitar o controle e regulação de políticas públicas de mobilidade urbana;
  • Empresas de Aplicativos e Associações que a representam:
    • Apresentar de forma clara e estruturada o que têm feito para melhorar esse cenário para além de argumentar que não há vínculo trabalhista. A pesquisa mostrou que o principal problema enfrentado com os aplicativos é o “tempo perdido entre as chamadas” (quase um terço das respostas). Esse fato com certeza contribui bastante para a jornada média dos ciclistas ser de mais de nove horas por dia. E trata-se de um problema relativamente fácil de endereçar. Como as empresas irão mitigá-lo? Outro exemplo é que 35% dos entrevistados colocaram “Local de apoio com água, banheiro, tomada, oficina” como algo que faria a diferença no seu dia-a-dia. Problema que pode ser endereçada por iniciativa das empresas, unindo urbanismo tático, parceiros estratégicos e até adoção de praças com retorno de imagem. Esse tipo de suporte pode ser instalado tanto em local público quanto privado (restaurantes e outros parceiros) e o custo é baixo quando comparado com a satisfação da sua mão de obra e retorno reputacional. Empatada com esta opção, aparece na pesquisa: “seguro invalidez temporária (recebe um dinheiro se não puder trabalhar por um tempo)” outra melhoria de pode ser implementada de forma paulatina e associada aqueles que passarem por formação de ciclista entregador. As empresas podem achar que sejam medidas custosas, mas se colocarem na conta a culpa e o valor de mercado que perdem quando um acidente com lesão séria ou morte com seus ciclistas em serviço é amplamente noticiado nas mídias, verão que, mesmo sob a ótica econômica, é muito melhor prevenir do que remediar.  Podíamos citar outros tantos exemplos de melhorias, mas elencamos apenas aqueles que já dariam conta das principais queixas registradas na pesquisa.
  • Restaurantes e estabelecimentos comerciais cadastrados nos aplicativos:
    • Estes também devem se sentir responsabilizados pela qualidade de vida dos entregadores. Projetar Parklets e áreas em que os ciclistas podem esperar o pedido ficar pronto, oferecer comida, água e banheiro para ciclistas também são medidas que devem ser adotadas, estimuladas e até reconhecidas. Tais medidas podem ser adotadas e divulgadas junto com assessoria de imprensa, aproveitando o quanto o assunto está quente. Vale reforçar que a queixa quanto ao “tempo perdido esperando pedido no restaurante”, ainda que não estivesse entre as opções dadas pela pesquisa, apareceu de forma relevante nas respostas.
  • Empreendedores da Quebrada, restaurantes e organizações que fomentam a economia nas periferias:
    • Um número bastante expressivo de ciclistas (18%) assinalou a “distância entre o local de residência e o trabalho” como um dos “dois principais problemas em fazer entregas de bicicleta usando aplicativos (respostas múltiplas)”. Esse cenário evidencia uma excelente oportunidade de se fomentar que os aplicativos e, principalmente, as entregas por bicicleta ganhem forças fora do centro expandido. Vários estudos mostram o tamanho do mercado das classes C, D e E e a potência de produzir e consumir das periferias das grandes cidades. Se conseguirmos aproveitar desse potencial, muitos deixarão de atravessar a cidade para ganhar e gastar e começariam a fazer isso no seu território. Para isso não podemos nos furtar da tecnologia. Aplicativos focados em fazer as entregas serem feitas “da quebrada para a quebrada” são fundamentais. Se logramos fazer isso de forma estruturada e sistêmica com atuação pública e privada os resultados serão enormes e transversais. Isso ajudaria a desafogar o transporte público saturado em seus movimentos pendulares diários e que muitos territórios periféricos possuem ruas estreitas, o que é um convite para a logística ser realizada em bicicletas e triciclos (convencionais ou elétricas). Precisamos entender melhor as dinâmicas que movem esses territórios. E experimentar e estimular soluções adequadas à realidade, lembrando que a lógica que funciona na Faria Lima pode não funcionar no centro comercial de Cidade Tiradentes e vice-versa. Assim pesquisas, diagnósticos e soluções devem ser pensadas a partir e para essas realidades.
  • Empresas de bicicletas compartilhadas:
    • Possuem o grande desafio de pensar em programas e planos de uso específicos e vantajosos para quem faz entregas por bicicleta. E reforçar o coro de que utilizar a bicicleta compartilhada é prático, mais seguro (as bicicletas são menos visadas) e não tem custos de manutenção. Com essas medidas, a crítica de associar a precarização ao fato de “além de tudo, os ciclistas entregadores são submetidos a usar uma bicicleta que não é sua” na verdade pode ser uma vantagem e não um empecilho. Lembrando que 20% dos entrevistados apontaram o “medo de ser assaltado” como um dos grandes problemas que enfrentam e muito provavelmente esse medo envolve o medo de ter sua bicicleta roubada/furtada. E que mesmo com pouco incentivo, quase 10% dos entrevistados já utilizam um plano de bicicleta compartilhada de 20 reais por mês.

E você, o que acha que poderia ser feito? Se tiver alguma sugestão ou ponto para esclarecer, escreva para o Aromeiazero no email [email protected] e seguimos o debate por lá.

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