por Maria Helena Masquetti, especial para a Envolverde –
Um outro título para este artigo talvez pudesse ser: “Superação e os doze trabalhos de Hércules”, pela relação estreita entre a famosa lenda mitológica e o esforço surpreendente de algumas pessoas para triunfar sofre infortúnios e violências sofridas mais comumente na infância. Na lenda, Hércules, além de ser um semideus, já nasce com uma força descomunal com a qual irá superar duras provas. Considerando esses dois atributos do herói, os mortais que também se superam apesar de dificuldades extremas, pouco têm a lhe dever em termos de desafios sobre-humanos.
Reza uma das versões da lenda que, depois de ter cometido um crime bárbaro num estado de inconsciência, Hércules encara, como expiação de seu desatino, a pena de enfrentar doze obstáculos tenebrosos. De modo análogo, muitas pessoas que foram submetidas a violências diversas, precisam, além de tudo, se desdobrar em esforços extras para obterem o direito de serem aceitas e incluídas no meio social, isto sem contar uma grande diferença em relação a Hércules: elas não cometeram crime nenhum.
Longe de ser uma simples questão de atitude, o que melhor explica o fato de alguém superar experiências amargas se encontra em algum lugar na infância. Invariavelmente, encontramos lá uma intervenção da justiça a exemplo da recente concessão de um habeas corpus coletivo para que mulheres grávidas ou com filhos até doze anos, presas preventivamente, possam cumprir prisão domiciliar. Um passo histórico, embora distante ainda da solução para as desigualdades.
Não menos significativa também pode ser a intervenção cotidiana de alguém que, mesmo por um curto espaço de tempo, tentou fazer algo pela criança. Ou ainda, quem sabe, lhe deixou uma lembrança, uma palavra de apoio, um brinquedo, um socorro, uma denúncia, um gesto protetor, um colo, um beijo, um afago. Para as crianças, coisas aparentemente pequenas podem ser a faísca que acenderá nelas a chama da força de vida, além de livrá-las da culpa de serem crianças ruins, como é comum muitas pensarem quando não são amadas e protegidas.
Dependendo das circunstâncias, qualquer apoio externo pode ser decisivo para as escolhas que a criança fará. Em uma palavra, esperança, algo que, segundo Donald Winnicott, reconhecido pediatra e psicanalista Inglês, reside por trás dos sintomas: “A conduta antissocial é um grito de desespero para o sujeito que reivindica do social aquilo que lhe foi prometido”.
Contudo, o drama de muitas crianças não se restringe àquelas que conseguiram reunir condições de suplantar o infortúnio. Por trás de cada pessoa que se destaca pela superação, precisamos considerar, talvez ainda mais, as milhares, ou milhões de outras que não conseguiram o mesmo feito. Os discursos motivacionais que jorram da mídia, nem de longe se aplicam a elas. Afirmar simplesmente que pessoas que se superam são as que se comprometem com seus desafios, que têm força de vontade, que planejam suas ações com cuidado, que não se abalam em situações de pressão ou que aprendem com os próprios erros, é o mesmo que afirmar que estes recursos psíquicos não dependem de condições ambientais favoráveis para serem desenvolvidos.
Embora emocionantes, a bem da justiça, as superações surpreendentes não deveriam ser necessárias para quem já enfrentou tantos monstros um dia. Nadar desde pequeno contra a corrente da negligência, da ganância, do egoísmo, do descaso com as prioridades da infância, da ausência de programas sociais e de políticas públicas eficazes, sendo um mortal comum, é heroísmo demais para qualquer pessoa. Se para um Hércules semideus, seria covardia se julgar mais merecedor de louros do que uma destas crianças, o que dizer de humanos nascidos em situação privilegiada que, mesmo ocupando posições de poder, não se mobilizam em favor da infância ou ainda lhes subtraem direitos.
Em nome da evolução, é importante que a busca da superação humana jamais tenha fim, porém, que ela seja cada vez mais motivada pelo prazer da descoberta, pela curiosidade natural que nasce com cada criança, pela alegria de criar e de ampliar nossa capacidade de aprender mais, de melhorar nossa qualidade humana e de elevar nossa fraternidade ao ponto de não mais admitirmos que uma só criança cresça privada de amor e da plenitude de sua infância. (Alana/#Envolverde)
(*) Maria Helena Masquetti é graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Alana.