Por Mônica Nunes , Conexão Planeta –
A ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) agendou para 30 de agosto a retomada do julgamento do marco temporal, como é mais conhecido, que começou a ser julgado em setembro de 2021 e tem se arrastado (marcado e suspenso algumas vezes).
A decisão da ministra foi tomada após o ministro André Mendonca devolver o caso. Em 7 de junho, Mendonça havia pedido vista (mais tempo) para analisar a proposta feita pelo ministro Alexandre de Moraes (falo dela mais adiante) e, por isso, o julgamento foi suspenso.
Até essa interrupção, Edson Fachin, relator, e Moraes haviam votado contra o marco temporal e Kássio Nunes Marques, a favor.
O julgamento
O STF analisa o Recurso Extraordinário (RE) 1017365, de 2019, por meio do qual o Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) solicita a reintegração de posse das terras do povo indígena Xokleng, também contra a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas.
A disputa envolve área da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, espaço que integra a Reserva Biológica do Sassafrás, no estado.
Em 2013, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) aplicou a tese ruralista do marco temporal ao conceder ao IMA-SC posse da área. Por isso, ele dá nome ao julgamento (e também ao PL que tramita no Congresso, sobre o qual falo mais adiante).
Tal tese defende que indígenas só têm direito às terras que já eram tradicionalmente ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Portanto, só poderiam ser demarcadas as que seguirem tal determinação.
Essa tese absurda não leva em conta expulsões, remoções forçadas e violências sofridas pelos indígenas até essa data.
“Até 1988, os indígenas eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente para lutar por seus direitos”, destaca a APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
Com mais um detalhe: por ser considerado julgamento de repercussão nacional, o resultado será aplicado em julgamentos semelhantes em instâncias inferiores no Brasil.
Os votos dos ministros
Em 10 de setembro de 2021, Edson Fachin votou contra a aplicação da tese, reconhecendo que “os direitos indígenas são originários”: declarou que a posse tradicional indígena é diferente da civil e que a demarcação é um procedimento que declara um direito que os povos originários já têm.
Na ocasião, o ministro também destacou que as terras indígenas não podem ser vendidas e que “a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco em 5 de outubro de 1988, porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal”.
Cinco dias depois, com o retorno do julgamento, o ministro Nunes Marques divergiu de Facchin e votou pela adoção da tese do marco temporal:
“Esse entendimento pondera valores constitucionais relevantes: de um lado, a proteção, o incentivo à cultura indígena; de outro, a segurança jurídica do desenvolvimento regional, o direito à propriedade privada e o direito ao sustento de outros integrantes da sociedade brasileira”.
Após o voto de Nunes Marques, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista e o julgamento foi suspenso, sem data para voltar. Em junho de 2023, finalmente, a Corte retomou a discussão e Alexandre de Moraes votou contra o marco temporal. “Afasto a ideia do marco temporal”, declarou.
Moraes afirmou que sua adoção representava ignorar totalmente direitos fundamentais dos povos indígenas, destacando que “a ideia do marco temporal não pode ser uma radiografia”.
E lembrou o conflito que deu origem ao julgamento da tese do marco temporal. “Não podemos fechar os olhos a outras situações que eu trouxe aqui da comunidade dos índios Xokleng. Da mesma forma que não podemos fechar os olhos para os agricultores que têm suas terras, trabalham nas suas terras”.
Por outro lado, o ministro tratou também de uma questão espinhosa: as indenizações aos que ocuparam terras dos povos originários.
“A indenização deve ser completa para aquele de boa-fé. Não tinha como saber 130, 160 anos depois. A culpa e a omissão foram do poder público, que precisa arcar para garantir a paz social”, explicou.
“É uma questão que juridicamente é complexa, vem gerando insegurança jurídica e minando a paz social por séculos sem que haja, até hoje, um bom modelo, um efetivo modelo a ser seguido”, afirmou, destacando que a questão envolvendo territórios indígenas não é exclusividade brasileira. “Nenhum país do mundo conseguiu resolver de forma plena e satisfatória essa questão”.
As reflexões de Alexandre de Moraes agradaram a André Mendonça que pediu vista para poder analisar com mais calma a proposta do colega e decidir seu voto.
O pedido de Mendonça suspendeu o julgamento mais uma vez, mas não só: também abriu espaço para a barganha política no Congresso Nacional, onde tramita o PL 2903/2023.
PL 2903: muito além do marco temporal
Ao ser aprovado na Câmara dos Deputados, em 31 de maio deste ano (foto abaixo) – uma mácula na história do Brasil! -, o famigerado PL 490/2007, que estabelece o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, foi rebatizado, ganhando nova denominação: PL 2903/2023.
Logo após a aprovação do PL na Câmara, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, pediu prudência e cautela na votação à Rodrigo Pacheco, presidente do Senado. Ela contou que ele garantiu que a votação não seria atropelada e passaria por diversas comissões antes de chegar ao Plenário. Mas não é o que está acontecendo
Até agora, apenas duas foram acionadas para analisá-lo: a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) – pela qual foi alterado por meio de relatório e aprovado na semana passada “a toque de caixa” – e a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Por que não ser apreciado também pelas comissões de Direitos Humanos e de Meio Ambiente? Afinal, tratam-se de duas áreas atacadas diretamente por esse PL.
Devido a esse cenário, o PL 2903 tem sido chamado de PL do Genocídio. Ele estabelece a tese do marco temporal, mas vai muito além: flexibiliza o uso das terras indígenas, o que significa, na prática, que inviabiliza as demarcações.
O ‘novo’ PL 2903 permite contestar demarcações em qualquer momento do processo, decretar a suspeição de antropólogos no exercício de seu trabalho, arrendar terras indígenas, instalar atividades impactantes sem consulta prévia nos territórios indígenas e até reverter homologações já feitas.
O projeto ainda permite à união retomar “reservas indígenas” caso se verifique “alteração dos traços culturais” da comunidade (uso de celular e carro ou moto, por exemplo) – “um dispositivo racista que fede às teses de ‘integração do índio’ da ditadura militar”, denuncia o Observatório do Clima.
E mais: acaba com a política da Funai do não-contato com povos isolados, autorizando qualquer interessado – até mesmo empresas privadas e missionários evangélicos – faça contato com eles.
Para virar lei, o PL 2903 precisa ser analisado e aprovado pelo plenário do Senado e ser sancionado pelo presidente Lula.
Foto (destaque): Joédson Alves/Agência Brasil
Com informações do G1, STF (julgamento), Observatório do Clima (PL 2903)
Mônica Nunes
Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.
(Envolverde)