Sociedade

Uma Cidade Educadora é aquela que escuta suas crianças

Por Danilo Mekari, do Portal Aprendiz –

Quando Doutor Zinho quer tornar as manhãs, tardes e noites de crianças hospitalizadas mais alegres e sorridentes, seu primeiro passo é parar no batente da porta do quarto e pedir licença para entrar. Olha no olho, fala de igual para igual e, entre uma ou outra palhaçada, busca a convergência possível entre corpos pequenos e grandes, na construção de um encontro que potencialize o que há de melhor nas pessoas envolvidas.

Doutor Zinho é o nome artístico de Wellington Nogueira, ator e palhaço que fundou, em 1991, o grupo Doutores da Alegria. Desde então, o ator vem adaptando aquilo que faz no teatro e no circo para a “plateia de um” que os palhaços-doutores encontram nos hospitais em que atuam. A continuidade dessa experiência permitiu ao grupo criar uma metodologia de escuta infantil que, para 94% dos profissionais de saúde envolvidos, transformou o olhar dos pequenos pacientes sobre a sua própria doença.

“Qual recurso temos na nossa formação que vai ajudar a estabelecer um contato mais direto com a criança?”, questiona Nogueira, que participou do seminário Se essa rua fosse minha… Vamos ouvir as crianças?, ocorrido na última sexta-feira (26/8) na UMAPaz (Universidade do Meio Ambiente e Cultura de Paz), em São Paulo.

O encontro, organizado pelo Núcleo de Ação do Mapa da Infância Brasileira (MIB), reuniu dezenas de pessoas de diversas instituições da cidade que atuam junto com crianças em comunidades, escolas, bairros, praças, parques, ruas, condomínios, cortiços e hospitais, em busca de metodologias de escuta infantil que abarquem as diversas infâncias presentes nos territórios de São Paulo.

World Café discutiu metodologias para a escuta de crianças. Foto: Reprodução
World Café discutiu metodologias para a escuta de crianças. Foto: Reprodução

“É apenas quando somos coautores que vivemos um bom encontro”, define Nogueira. “Construímos essa metodologia junto às crianças, através da linguagem que elas entendem melhor: o jogo.” Para ele, também é necessário entender que cada criança tem seu tempo e seu espaço de confiança.

“Nesse processo, temos o prazer de aprender com a sabedoria das crianças”, observa o palhaço, lembrando que tais encontros são tão poderosos que criam momentos de suspensão da realidade, como quando um corredor de hospital se transformou em pista para uma corrida de cadeira de rodas. “A questão da escuta infantil não é etérea – ela é factível e tem resultados, e está sempre em busca de construir uma cidade saudável.”

A educadora e documentarista Renata Meirelles também compartilhou a sua experiência à frente do projeto Territórios do Brincar, que divulga através de vídeos, fotos e textos as diversas formas de brincadeira e culturas infantis que existem no Brasil. “Para escutar o outro você tem que assumir a sua própria escuta e, mais difícil, assumir os seus próprios desejos”, aponta. “O nosso projeto é uma síntese disso: uma escuta movida pelo desejo, no qual temos a oportunidade de viver com crianças nos vinculando com a sua maior expressão, o brincar, mostrando em sua máxima potencia quem elas são.”

Segundo Renata, conhecer o contexto em que o outro está inserido favorece a escuta. “Cada encontro é estabelecido pela cumplicidade vivida na relação entre aquelas pessoas. A cada lugar que vamos, antes de mais nada, nos apresentamos, deixando claro nosso olhar. Reunimos todos os envolvidos, adultos e crianças, para criar um lugar de empatia e um elo incrível.”

Conceitos de Francesco Tonucci levaram a cidade de Rosário a criar um Conselho das Crianças. Foto: Reprodução
Conceitos de Francesco Tonucci levaram a cidade de Rosário a criar um Conselho das Crianças. Foto: Reprodução

Com a intenção de estimular a participação social de crianças na construção de ambientes urbanos, expressando a vontade de ouvir o que elas sentem, pensam e desejam para o lugar onde vivem, o seminário também pretende levar as sugestões e propostas das crianças para o novo prefeito da capital paulista, que será conhecido em outubro.

Para Adriana Fridmann, coordenadora da iniciativa Mapa da Infância Brasileira, o principal objetivo do seminário é impactar a qualidade de vida das crianças. “Queremos mostrar a importância da escuta das crianças e como cada um em seu território pode acolher essas vozes e olhares infantis, pois elas têm repertório e são atores de suas próprias vidas”, afirma.

Já Rodrigo Rubido, representante do Instituto Elos, citou a necessidade de a cidade revolucionar seu relacionamento com a criança. “Não devemos ouvi-las sem antes estabelecer a conexão e querer conhecê-las uma a uma”, observa. “Não temos a ingenuidade de apenas fazer o que a criança diz, pois ela é capaz de discutir, ouvir diferentes opiniões e talvez mudar a sua. O debate de ideias aumenta o potencial da criança, e nossas cidades serão muito melhores com a infância participando dela.”

No Glicério, a voz das crianças é ouvida para concretizar seus desejos. Foto: Reprodução / Criança Fala
No Glicério, a voz das crianças é ouvida para concretizar seus desejos. Foto: Reprodução / Criança Fala

A segunda parte do seminário foi dedicada à construção conjunta de uma metodologia para que sejam realizadas escutas infantis em diversos territórios da cidade. A partir de um World Café – metodologia na qual os participantes se dividem em pequenos grupos e se revezam constantemente, garantindo espaço e tempo de fala para todos os interessados –, cada um pode apresentar a sua experiência e agregar outras práticas de escuta, debatendo quais dessas experiências são mais viáveis para serem utilizadas durante o mês de setembro e outubro.

Durante a conversa, foram citadas experiências locais de escuta, como o Criança Fala, que acontece no Glicério, bairro central de São Paulo, e internacionais, como o Conselho de Crianças de Rosário, na Argentina, e o conceito de Cidade das Crianças, do educador italiano Francesco Tonucci. “É preciso garantir a escuta da criança como uma prática cotidiana da cidade”, pontuou Agda Sardenberg, coordenadora executiva da Associação Cidade Escola Aprendiz.

O encontro produziu uma síntese que elencou princípios para os processos de escuta de crianças:

  • Sutileza: olho no olho
    Pedir licença: nunca adentre o espaço da criança sem o consentimento dela
    Convergência: colocar-se numa postura assimétrica com a criança, de igual para igual
    Cocriação: criação de convergências, abertura para a troca e a construção coletiva
    Respeitar o tempo da criança: preservação dos momentos da infância
    Não julgar: despir-se de julgamentos prévios em relação à criança
    Trabalhar em dupla: acreditar que os olhares se complementam
    Acolher o espontâneo: dar espaço par o inusitado, deixar se surpreender
    Acolher as diferentes linguagens: as crianças se expressam de diferentes formas, observar o não-verbal
    Reaprender a ouvir:escuta atenta
    Aplacar a ansiedade: respirar antes de começar o processo de escuta
    Inverter os papeis e se conectar com nossos próprios sentimentos e emoções
    Confiar e aprender com a sabedoria das crianças
    Construir vínculo
    Ter consciência de seu papel: adulto não é porta-voz, adulto é ponte
    Respeitar a diversidade cultural: as crianças vivem em diferentes contextos, partilham de experiências diversas

 

Partindo desses princípios, as diversas entidades, coletivos e movimentos presentes terão até o Dia das Crianças (12/10) para realizar a escuta das crianças que vivem nos territórios onde atuam. A intenção é influenciar a criação de políticas públicas destinadas a essa faixa etária da população, pautando os candidatos à prefeitura da cidade. Um novo encontro será realizado para discutir os resultados dessa experiência. (Portal Aprendiz/ #Envolverde)

* Publicado originalmente no site Portal Aprendiz.