Por Danilo Mekari, do Portal Aprendiz –
Conflitos armados costumam produzir consequências sociais, econômicas, políticas e culturais que deixam marcas indeléveis nas pessoas, regiões ou países que se transformam em territórios bélicos. Esse legado pode ser tão visível quanto uma cidade em ruínas ou uma explosão atômica, mas também tem seu lado invisível, como as mortes por balas perdidas ou os impactos que causa no desenvolvimento das crianças que nascem naquele período.
A educadora alemã Ute Craemer, por exemplo, nasceu na cidade de Weimar em 1938 – um ano antes de eclodir a Segunda Guerra Mundial. Durante a infância, viveu uma verdadeira peregrinação para fugir dos efeitos negativos do conflito: sua família mudou-se para a Áustria, Iugoslávia, Egito, Paquistão. Ute voltou para a Alemanha apenas em 1956 para concluir o ensino médio e estudar línguas na faculdade.
Conheceu o Brasil pela primeira vez em 1965, quando veio ao país para fazer um trabalho voluntário em uma comunidade vulnerável situada em Londrina, no Paraná. Queriam que ela fosse cozinheira – Ute, porém, desvencilhou-se da função para cuidar de crianças, tornando-se educadora. Hoje, 51 anos depois, a alemã é referência mundial na discussão sobre o desenvolvimento da Primeira Infância.
Em 1971, Ute Craemer assumiu a função de professora na então Escola Higienópolis (atualmente Escola Waldorf Rudolf Steiner de São Paulo). Uma passagem curiosa: durante a ditadura militar, era obrigatório hastear a bandeira e executar o hino nacional todas as manhãs antes das aulas. Incomodada com a situação, Ute negou-se a levar sua classe para participar do cerimonial, permanecendo em sala e incentivando as crianças a produzirem brinquedos que seriam distribuídos em comunidades vulneráveis – criar pontes entre as diferentes infâncias vividas em uma única cidade era um de seus objetivos.
Uma dessas comunidades, a de Monte Azul, na extensa zona sul paulistana, conquistou particularmente a alemã, que em 1975 passou a promover atividades conjuntas entre as crianças que ali viviam e os seus alunos, que estudavam em um dos bairros mais nobres da capital. O sucesso das ações a fez fundar a Associação Comunitária Monte Azul, em 25/1 de 1979, data do 425º aniversário de São Paulo.
Aos poucos, Ute passou a se dedicar integralmente ao projeto, que também foi ampliando a sua atuação para as áreas de saúde, ecologia, cultura e oficinas profissionalizantes nas áreas de marcenaria, costura, padaria, jardinagem, confecção de brinquedos educativos e informática. Em 2001, participou da fundação da Aliança pela Infância no Brasil, onde até hoje atua como conselheira.
Do alto de sua experiência, Ute Craemer foi a convidada da 6ª edição da série de videoconferências denominada Diálogos do Brincar. Realizada em uma parceria do Instituto Alana com o projeto Território do Brincar, a iniciativa tem a intenção de abrir diálogos com educadores, estudantes, pais, artistas, gestores, profissionais de saúde e interessados sobre o brincar, a infância e a educação – temas que a educadora alemã acumulou vasto conhecimento ao longo de sua vida.
Em sua fala, Ute enfatizou a necessidade de buscarmos o reencantamento da palavra. “Nos primeiros três anos, o desenvolvimento da criança se resume a alguns passos: se erguer, andar e falar. O brincar é uma consequência. Junto com esse processo tem que vir algo humano – a palavra humana. A contação de histórias desenvolve a articulação de um pensamento lógico e criativo. Contos, mitos, fábulas e lendas do mundo inteiro são alimentos para a alma das crianças”, observa.
E deu uma sugestão aos pais de crianças pequenas: ao invés de deixá-las pegarem no sono assistindo televisão, conte uma história para elas. “É preciso que a passagem para o mundo desconhecido do sono seja preenchida com algo que vem do ser humano, e não de um equipamento tecnológico. Pode ser uma história, poesia, oração – algo que tenha a ver com a importância da fala da nossa humanidade.”
A alemã equipara a importância da contação de histórias com o brincar livre que, em suas palavras, revela a vontade de viver verdadeiramente e é importante não apenas para o desenvolvimento saudável da criança, mas também para o prosseguimento de sua vida adulta. “Também entre adultos, o brincar estimula a criatividade e a invenção, desenvolvendo mecanismos que nos fazem encarar a vida com alegria e entusiasmo.”
Ute defendeu que uma luta política pode fazer as creches terem maior qualidade, já que são os espaços da cidade onde as crianças passam grande parte de seu dia. “Devemos lutar para ter creches e educação infantil realmente adequada à criança, formando as pessoas de acordo com esse desejo.” Ela também acredita que as praças públicas precisam ser “reencantadas” para atraírem a presença da infância. “O contato com a natureza faz toda a diferença, pois a falta dela nos desconecta da vida e, por variadas razões, cria dentro de nós um vazio.”
A educadora alemã reconheceu ainda um lado cruel do mundo globalizado: a homogeneização das culturas. “Uma sociedade que tenha cada vez mais crianças brincando livremente, estimulando a fantasia, vai resultar em um mundo mais diferenciado, colorido e com mais identidade, respeitando a cultura que existe em cada povo e todas as opções individuais”, argumenta.
E finaliza: “Pode ser uma utopia, mas temos que caminhar nessa direção. Uma cidade em que todos brincam seria mais criativa e artística – a vida também é uma arte e surgiriam soluções mais criativas para nossos problemas, com relações mais humanas e menos preconceituosas, menos ideias fixas, mais movimento.” (Portal Aprendiz/ #Envolverde)
* Publicado originalmente no site Portal Aprendiz.