Por Baher Kamal, da IPS –
Roma, Itália, 31/1/2017 – Apenas 48 horas depois que Donald Trump assumiu a Presidência dos Estados Unidos, soube-se que, no início deste mês, chegou ao Congresso norte-americano um projeto de lei para retirar esse país da Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo o site do Congresso, o projeto H. R. 193 – conhecido como a Lei de Restauração da Soberania Norte-Americana – foi apresentado na Câmara de Representantes no dia 3 e enviado à Comissão de Assuntos Exteriores.
Embora seu título oficial indique que pretende que os Estados Unidos deixem de ser membro da ONU, o projeto de lei também propõe: revogar o acordo de 1947 que permite que a sede das Nações Unidas fique em território norte-americano; pôr fim às operações de manutenção da paz; acabar com a imunidade diplomática; deixar de participar da Organização Mundial da Saúde.
Se o projeto virar lei, esta entrará em vigor dois anos após sua assinatura. Entretanto, essa iniciativa legislativa “só tem seis patrocinadores no momento – um punhado de republicanos de extrema direita e libertários –, por isso duvido que vá longe”, opinou um professor de política norte-americana. Independente do número de patrocinadores e se o projeto será ou não aprovado, o fato é que a intenção do governo Trump de se retirar da ONU seria de fácil aplicação.
Bastaria Washington deixar de pagar sua parte do orçamento do fórum mundial, ou mesmo atrasar o pagamento, para que toda a estrutura da ONU entrasse em colapso. Isso ocorreria em um dos piores momentos das finanças da organização, com sede em Nova York, que, de fato, está em bancarrota. Dia após dia, suas agências – desde o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) até o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – lançam desesperados pedidos de fundos para enfrentar uma crise humanitária sem precedentes.
Além disso, a eventual saída dos Estados Unidos deixaria a ONU em mãos de grandes empresas privadas. Nos últimos anos, várias transnacionais têm sido os principais doadores das operações humanitárias do fórum mundial. Tal cenário levaria esse sistema multilateral único a ser dirigido por grandes corporações. Esse risco não deve ser descartado, já que, nesse caso, a ONU proporcionaria uma cobertura “legal” necessária para essas ações, quaisquer que fossem.
O presidente Trump resumiu seu pensamento sobre as Nações Unidas em uma de suas mensagens postadas no Twitter, escrevendo: “A ONU tem um grande potencial, mas nesse momento é apenas um clube para que as pessoas se reúnam, conversem e se divirtam”. Esse não é certamente o caso dos milhões de mulheres e meninas que formam 71% das vítimas do tráfico de pessoas, como denunciou em dezembro o Escritório das Nações Unidas Contra a Droga e o Crime.
Menos ainda o fato de que as crianças constituem quase um terço de todas as vítimas do tráfico humano em todo o mundo. Tampouco é o caso do um terço das mulheres entre 20 e 24 anos que foram esposas ainda menores de idade, nem que a cada dez minutos, em algum lugar do mundo, uma adolescente morre em consequência da violência, como indica o Unicef em seu informe Estatísticas e Monitoramento, publicado em julho de 2016.
E ainda há os 2,4 bilhões de pessoas sem acesso a serviços de saneamento melhorados, incluídos os 946 milhões obrigados a defecar à intempérie por falta de outras opções, e que 16 mil crianças morrem a cada dia em sua maioria por causas que podem ser prevenidas e tratadas. Todas essas vítimas de violações dos direitos humanos – que frequentemente foram cometidas por alianças militares dirigidas pelos Estados Unidos e por outros membros do Conselho de Segurança da ONU – e que sofreram diretamente as consequências de intervenções bélicas maciças, dependem da ajuda das Nações Unidas.
Muitas entidades importantes da ONU foram criadas há sete décadas principalmente para dar assistência humanitária a milhões de vítimas do conflito que se converteu na Segunda Guerra Mundial. O Unicef, por exemplo, ajudou cinco milhões de crianças europeias nessa oportunidade.
E qual país hospedaria a ONU caso o projeto de lei revogue o acordo de 1947 que permite que sua sede seja nos Estados Unidos? E quem poderia assumir a contribuição norte-americana para seu orçamento? Segundo um informe das Nações Unidas, os Estados Unidos respondem por 22% do orçamento da organização, em troca de um pacto não escrito de que uma porcentagem equivalente do pessoal estratégico para a tomada de decisões no fórum mundial seja nomeada por Washington.
Com relação à contribuição para o orçamento da ONU, os Estados Unidos são seguidos por Japão (9,68%), China (7,92%), Alemanha (6,38%,) França (4,85%), Grã-Bretanha (4,46%), e em sétimo lugar da lista está o Brasil, cuja cota é de 3,82%. Nenhum desses países poderia assumir a cota norte-americana mais a sua.
Além disso, as potências europeias continuam enfrentando as consequências da crise financeira gerada em 2007 pelas grandes corporações financeiras privadas com sede nos Estados Unidos e na Europa. A isto se soma o fato de o continente europeu estar presenciando o surgimento de partidos direitistas, ultraconservadores, xenófobos, nacionalistas e populistas que animam a ascensão de Trump ao poder. Envolverde/IPS