Por Mario Osava, da IPS –
Rio de Janeiro, Brasil, 21/10/2016 – A ex-presidente Dilma Rousseff cometeu um crime de responsabilidade que lhe custou o mandato, mas não por fraudes fiscais como foi acusada, mas por ter eleito Michel Temer como vice-presidente, diz uma piada corrente. Dilma foi destituída em 31 de agosto por votação no Senado, com 61 votos contra 20, fechando um ciclo de 13 anos de governos do Partido dos Trabalhadores(PT), iniciado em 2003 com Luiz Inácio Lula da Silva.
Rechaçado como um “golpe parlamentar” por defensores de Dilma, embora a destituição conste da Constituição por atos que “atentem contra a lei orçamentária” seu impeachment levou Temer ao poder, tão impopular como a primeira mulher a ocupar a Presidência no Brasil.Vaias e gritos de “fora Temer” o assediam em todas as aparições públicas, como ocorreu na abertura dos Jogos Olímpicos e dos Paraolímpicos no Rio de Janeiro, e no desfile militar de 7 de Setembro, em Brasília.
Falta a Temer e legitimidade da votação popular, segundo os críticos, mais numerosos do que os partidários do governo anterior. Uma maioria de entrevistados em pesquisas feitas antes do final do processo de impeachment disse preferir eleições como saída para a crise política brasileira. Não se reconhece o endosso ao vice-presidente dos votos que Dilma recebeu em outubro de 2014, ainda que a votação seja em chapas.
A história do Brasil, e de outros países, especialmente latino-americanos, aponta a vice-presidência como fator de crise ou uma forma inadequada para superar a crise que determinou a ausência do titular. A figura do substituto presidencial surgiu com a primeira Constituição republicana, aprovada em fevereiro de 1891, 15 meses depois da proclamação do novo regime.
“Naquela época justificava-se sua existência pelos meios de transporte e comunicação ineficientes”, que poderiam deixar acéfala a nação por meses em caso de viagem do presidente, disse à IPS o historiador Daniel Aarão Reis, professor da Universidade Federal Fluminense de Niterói.
Atualmente, Temer visitou a Ásia, do outro lado do planeta, em menos tempo do que durava a viagem de um antecessor às províncias brasileiras um século atrás. Do Japão, pôde acompanhar e orientar trâmites parlamentares sobre temas de interesse de seu governo, por meios de comunicação instantâneos.
Nesse sentido, a vice-presidência é “uma instituição anacrônica, que se manteve não por desconhecimento dos políticos, mas para sua conveniência, como instrumento de barganha, para ampliar alianças”, apontou Reis. Por isso, em geral, são formadas chapas “incongruentes”, com posições discrepantes entre os candidatos a presidente e seu vice, para selar coalizões às vezes muito heterogêneas.
A aposta é atrair votos adicionais de outras correntes políticas, embora possam trazer riscos posteriores, como ocorreu com Dilma, do esquerdista PT, e Temer, do conservador Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). “São alianças sem critério, que podem chegar a aberrações como ocorreu com o então presidente Fernando Collor (destituído em 1992) e seu vice, Itamar Franco, o primeiro ultraliberal, buscando abrir o mercado nacional, e o segundo um nacionalista apegado às tradições locais”, recordou o historiador.
Também Lula, líder sindical, escolheu como seu vice, tanto para as eleições de 2002 como na reeleição de 2006, o empresário José Alencar, um dos líderes do setor têxtil do Brasil. Nesse caso se tratava de criar uma aliança capital-trabalho e neutralizar o temor empresarial ao “socialista” PT.
A vice-presidência gera problemas desde o nascimento da República brasileira. A eleição separada, vigente na Constituição de 1891, resultou ser um vice-presidente opositor, agravando a crise que levou à renúncia do primeiro presidente brasileiro, Deodoro da Fonseca, nove meses depois de sua posse, cedendo o poder a Floriano Peixoto, que por seu autoritarismo ganhou o apelido de “marechal de ferro”.
Há vice-presidentes que a história não registra como conspiradores em busca do trono, mas que alçados à chefia do governo e do Estado, por morte ou renúncia do titular, levaram o país a desastres de gravidade variada.
João Café Filho, obrigado a assumir o poder após o suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, tampouco conseguiu concluir o período de mandato, atropelado pela crise econômica e tentativas de golpes e contragolpes, militares e civis, em um tempestuoso período do Brasil. Vargas, conhecido como “pai dos pobres” por suas políticas sociais e nacionalistas, e pela adoção da legislação trabalhista ainda vigente, havia extinguido a vice-presidência em seu período ditatorial de 1930 a 1945.
Voltou à Presidência em 1950 por meio de eleições, mas se suicidou diante das pressões políticas e depois de um assassinato cometido por seu guarda-costas. O vice-presidente eleito nas eleições seguintes, João Goulart, trabalhista e herdeiro de Vargas, chegou à Presidência pela renúncia do direitista Jânio Quadros, em 1961, mas foi derrubado pelo golpe militar de 1964, que implantou o regime militar até 1985.
Os militares ditaram uma nova Constituição em 1967, eliminando a possibilidade de eleição separada de presidente e vice. Mas o primeiro vice-presidente da ditadura, Pedro Aleixo, um civil, foi impedido de tomar posse em 1969, quando o general-presidente Arthur da Costa e Silva teve que deixar o poder por doença.
Com o fim da ditadura, em 1985, outra tragédia, a morte do presidente eleito indiretamente Tancredo Neves, colocou na Presidência um político sem legitimidade para governar o país naquele momento. José Sarney, um dos líderes civis do sistema ditatorial extinto, fora incluído na fórmula vencedora como um elemento de transição, em um processo de redemocratização tolerado e ainda controlado pelos militares, que não permitiram eleições diretas pelo voto popular em 1985.
Mas era natural que o governo de Sarney (1985-1990) fosse afetado pela debilidade política, agravada pela crise da dívida externa na chamada “década perdida”. As fórmulas inconsistentes do “presidencialismo de coalizão” se converteram em regra e outros dois vices assumiram o poder desde que a Constituição brasileira de 1988 impulsionou a democratização. Itamar em 1992 e Temer em 2016 representam uma virada nas políticas aprovadas pelos eleitores.
A extinção da obsoleta vice-presidência, porém, não está no horizonte da reforma política que se discute no Brasil. Seria exigir muito discutir tal assunto quando alguém eleito vice-presidente conduz os destinos do país.
Na América Latina, apesar das polêmicas que em vários países envolveram os vice-presidentes, não se redefiniu o papel desses coadjuvantes, como ocorreu nos Estados Unidos, segundo ensaios de Mario Serrafero, cientista político argentino autor de El Poder ySu Sombra – Los Vice-Presidentes(1999) e Para Uma Nova Vice-Presidência. Reflexões a Partir doCaso Norte-Americano (2013).Envolverde/IPS