Política Pública

Por quê no Brasil “Hidden Figures” foi traduzido como “Estrelas Além do Tempo”?

Por Liliane Rocha*

É notório que o Brasil tem uma dificuldade histórica na discussão clara e consciente sobre o racismo até hoje institucionalizado em nossa sociedade. Afinal, foram quase 400 anos de escravidão, criando normas, sistemas e conceitos ainda vigentes no país e que impactam a população negra cotidianamente.  Não à toa os dados são alarmantes.

Apesar de termos uma expressiva população negra no Brasil, estimada em 51% da população, somando pretos e pardos, estudos apontam que somente teremos equidade salarial em 127 anos, ou seja meados de 2.137. Em 2010 um estudo sinalizou que dentre as mortes por homicídio no país 75% eram negros. Dos cerca de 16 milhões de brasileiros na extrema pobreza em 2012, 65% eram negros.  Negros representam somente 5,3% no quadro executivo das grandes empresas, 5% dos políticos no congresso nacional. Se estratificarmos o IDH brasileiro em brancos e negros, veremos que o país dos brancos teria índices similares a países europeus, enquanto o país dos negros teria dados extremamente similares aos dos países mais pobres do mundo.

Relembro todos esses dados para reforçar o cenário atual do país, pois muitos céticos ainda duvidam do abismo de direitos entre brancos e negros. E o ponto para o qual quero chamar a atenção nesse artigo é como um filme que traz um posicionamento tão claro em relação a opressão e avanços da luta racial como “Hidden Figures” que traduzido em português teria o título de “Figuras escondidas”, no Brasil é traduzido como “Estrelas Além do Tempo”. Veja bem, não tratasse apenas de uma questão de gostar ou não do título. Está claro que Figuras Escondidas tem um viés mais provocativo e ideológico enquanto “Estrelas Além do Tempo” tem um viés mais romanceado. Assim, a mudança na tradução para o português expressa a dificuldade do brasileiro na discussão transparente do racismo no país.

É evidente que o filme que conta a história de cientistas negras da NASA, que no auge da corrida espacial travada entre Estados Unidos e Rússia durante a Guerra Fria, tiveram um papel crucial para a vitória dos Estados Unidos, liderando uma das maiores operações tecnológicas registradas na história americana e se tornando verdadeiras heroínas da nação, tem no título “Figuras Escondidas” uma clara reflexão crítica em relação as milhares de personalidades sejam  negros, judeus, mulheres, entre outros, que desempenharam papel fundamental ao longo da história da humanidade, mas simplesmente foram saqueados da história.

 

Vejamos algumas das “Figuras Escondidas” do Brasil na questão racial que você sequer talvez saiba que existiram ou que eram negros e negras.  Vejamos alguns exemplos:

Dandara dos Palmares foi uma grande guerreira na lua pela liberdade do povo negro. No século XVII, conquistou espaço de liderança nas lutas palmarinas e enfrentou todas as lutas seguintes em Palmares. Foi companheira do Zumbi de Palmares e seguia ao seu lado sem perder o protagonismo feminino.

Nilo Peçanha, presidente do Brasil entre 1909 e 1910. Nilo Procópio Peçanha foi o primeiro – e até agora o único – presidente do Brasil negro. Filho de pai negro e mãe branca, Peçanha assumiu a presidência após a morte de Afonso Pena e ficou no cargo entre 1909 e 1910.

Joaquim Maria Machado de Assis, nascido em 1839, quase dispensa apresentações, pois é considerado o maior nome da literatura brasileira. Escreveu em praticamente todos os gêneros literários, sendo poeta, romancista, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista, e crítico literário. Testemunhou a mudança política no país quando a República substituiu o Império e foi um grande comentador e relator dos eventos político-sociais de sua época.

André Rebouças, nasceu em 1838, filho de Antonio Rebouças, advogado, parlamentar e conselheiro do Império. Estudou nas melhores escolas do Rio de Janeiro, completando seus estudos na Europa, onde se especializou em fundações e obras portuárias. Participou na Guerra do Paraguai (1865-1870), como engenheiro.

Por fim, reafirmo, é está a importante contribuição reflexiva que o filme traz e que a tradução romantizada do título no Brasil, creio não por acaso, põe a perder. Que estas mulheres foram estrelas e marcaram a história além do tempo, assim como milhares de outros homens e mulheres, ninguém dúvida. A questão que as diferenciam, no entanto, é o fato de não terem sido notórias ao grande público.

O fato de terem sido apagadas e escondidas da história. E somente agora, tantos anos depois, trazidas para os centros das atenções. Que o filme sirva como um ponto de atenção para que essa história não continue a se repetir. Que as pessoas sejam reconhecidos pelos seus feitos e não pelo grupo étnico, social, racial, entre centenas de outras características do qual fazem ou não parte. (#Envolverde)