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Portuguesas assumem sustento da família em tempo de crise

A catedrática Anália Torres, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa. Foto: Mario Queiroz /IPS

Lisboa, Portugal, 22/3/2013 – O colossal impacto da crise econômica em Portugal no emprego masculino se traduziu em um aumento drástico de mulheres assumindo o papel central de sustento da família, mas isto não significa um avanço para a igualdade.

“Hoje há mais desemprego masculino do que feminino, porque a crise afetou especialmente o setor da construção civil”, disse à IPS a catedrática Anália Torres, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa. “Havendo menor atividade econômica nesta área, que tradicionalmente emprega homens, subiu muito a taxa de desemprego masculino, enquanto em outros setores ocupados por mulheres o desemprego cresceu em menor medida”, disse a pesquisadora em uma entrevista.

O governo do conservador primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, adiantou em fevereiro que este ano o desemprego em Portugal ficará em 17,3% da população economicamente ativa (PEA), nove décimos a mais do que em 2012. A oposição política e os sindicatos elevam o prognóstico para 24%, em um país onde a PEA está em torno de 5,6 milhões e a população total em 10,7 milhões. A disparidade dos números se explica pelas milhares de pessoas que desistiram de continuar se registrando nos governamentais Centros de Emprego ou que já emigraram, especialmente para outros países europeus, Brasil, Angola, Moçambique e Macau.

Entre os que têm apenas educação básica, “a mulher sempre ganha menos do que o homem e, na medida em que o grau de escolaridade aumenta, a diferença entre eles é ainda maior. Uma mulher com doutorado ganha muito menos do que um homem” com esse título, afirmou Torres. Em setores como educação e saúde, onde elas ganham 20% menos, na hora de cortar pessoal opta-se pelos homens, “que são mais caros”, destacou.

Outro fator que coloca a mulher em condições de levar comida para sua família “é que, muitas das atividades remuneradas que elas exercem, ocorrem em setores da economia informal, de trabalho não declarado e não qualificado, como nas áreas de limpeza, ou de babás em casas de pessoas ricas”, pontuou Torres.

Em Portugal, o fenômeno da guerra colonial (1961-1974) nas então “províncias de ultramar” africanas de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, “significou para as mulheres assumir um grande papel de substituição dos homens”, recordou Torres. Desde então, “permaneceu a ideia de que a mulher trabalha para sustentar a família”, assegurou. Durante aquele período, Portugal manteve permanentemente 220 mil soldados, um número enorme considerando que na época a população não passava dos 8,8 milhões de pessoas.

Na década de 1960, um milhão de portugueses emigraram por razões econômicas ou para evitar serem enviados para a guerra na África. A mulher, segundo Torres, “assumiu um papel central em um país com pouquíssimos homens em idade de trabalhar”. Apesar deste contexto particular, a pesquisadora afirma que “o machismo dominante permaneceu e os homens continuam dando mostras de afirmação de uma masculinidade incrível e inaceitável”.

Segundo Torres, “ao se negar a ajudar nos trabalhos domésticos alegando ‘sou homem, não faço esses trabalhos’, o que também carrega sérios problemas de violência doméstica”, os homens evidenciam a persistência da cultura machista, observou. E ressaltou que as mulheres algumas vezes são agredidas, frequentemente com resultados trágicos, porque muitos homens “baseiam toda sua masculinidade em seu salário, embora já há muito tempo em Portugal ambos trabalhem” e ajudem na manutenção da família.

Entre janeiro e novembro do ano passado, 30 mulheres foram assassinadas em Portugal por seus companheiros ou ex-companheiros, segundo a não governamental União de Mulheres Alternativa e Resposta. Isto coloca Portugal como o país com mais feminicídios da União Europeia, em proporção à sua população. Apesar de tudo, “trabalhar é também uma espécie de seguro contra o machismo, no sentido de se ter plena consciência de que a mulher ganha para viver e não precisa do homem”, disse Torres.

Por sua vez, a socióloga e pesquisadora Sofia Aboim, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, ressaltou que nos últimos oito anos a proporção de casais nos quais a mulher assumiu o sustento da família subiu de 2% para 16,5%. É “evidente” que muitos homens “sofrem uma forte sacudida em sua autoestima, já que sua masculinidade está tradicionalmente muito associada ao sustento familiar”, afirmou Aboim ao sintetizar no jornal Público os resultados de uma pesquisa a respeito.

A socióloga destacou que esta situação ocorre sobretudo com casais com baixo nível de escolaridade e grupos de mais idade, especialmente entre os 51 e 65 anos. Porém, Torres insiste em que a discriminação contra a mulher está bem arraigada também entre os setores mais escolarizados, embora “existam muitas mulheres com excelente formação, por exemplo, entre os professores dos ensinos básico, secundário e universitário”.

Segundo Torres, em geral “os altos cargos estão ocupados por homens, embora, por exemplo, no mundo acadêmico, estudos indiquem que não há nenhuma diferença na produção de pesquisas ou artigos, mas as mulheres não são dirigentes dos institutos, nem ocupam cargos de direção nas universidades, com pouquíssimas exceções”. A grande exceção é o Centro de Estudos Judiciais, dedicado à formação de juízes e magistrados do Ministério Público, onde “só se entra por concurso” e graças a isso “80% dos que entraram para a magistratura na última década foram mulheres, por se situarem melhor do que os homens”, indicou Torres.

Os problemas pelos quais passa Portugal afetam a todos, “mas nas crises as mulheres enfrentam maiores dificuldades, agravadas em caso de maridos desempregados, porque são obrigadas a se desdobrarem e novamente se desdobrarem. O mais grave deste governo é sua total insensibilidade e indiferença diante do drama das pessoas”, enfatizou Torres. Isto é especialmente sério em Portugal e outros países de machismo dominante, explicou, porque “se uma mulher tem trabalho e seu companheiro não, ela continua fazendo o trabalho da casa, ao contrário do que ocorre em outras latitudes, nas quais o homem participa das tarefas domésticas quando está desempregado”. Envolverde/IPS