ODS10

Binin Matis e nós choramos a morte de Rieli, indigenista ponta firme na proteção dos Povos Indígenas Autônomos

Por Barbara Arisi e Araci Labiak, Amazônia Real – 

Os Autônomos, ou Isolados, da região de Seringueiras, vivendo no interior da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau, estado de Rondônia, totalmente encurralados, talvez tenham lançado a flecha que matou o sertanista Rieli Franciscato. No entanto, muitos não-indígenas com certeza já haviam lançado antes várias flechas ou armas mais burocráticas contra os indígenas todos deste país, para matar o Rieli, um grande defensor dos Povos Autônomos.

O (des) governo federal atual está dedicado a entregar, queimar e destruir a Floresta Amazônica, o Pantanal, o Cerrado, a Mata Atlântica, enfim, todos os biomas e nichos ecológicos, com seus animais, plantas, águas e ar, juntamente com todos povos que vivem neles.

A isto se soma uma política de negligência que nega aos servidores federais como Rieli Franciscato as mínimas condições de trabalho para protegerem as florestas e os demais biomas brasileiros e seus legítimos habitantes. Rieli, assim como tantas e tantos outros servidores federais da Funai (Fundação Nacional do Índio), do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) correm risco de morte diariamente ao exercer seu trabalho para o serviço público. A negligência com o serviço público é parte do mesmo crime de ecocídio praticado pelo governo Bolsonaro.

Como coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Uru Eu Wau Wau [como são denominadas as frentes de campo da Funai que atuam na missão de monitoramento e proteção dos povos em isolamento voluntário] dessa região de Rondônia, Rieli tinha a missão de proteger os povos autônomos (isolados) e era isso que ele estava fazendo quando acudiu o chamado de ir para a estrada Linha 6, pois um conflito entre colonos e os índios autônomos estava acontecendo e logo poderia significar um massacre para os Índios Isolados.

Rieli Franciscato era testemunha da vulnerabilidade a que estão expostos os índios considerados pela Funai como “isolados”. Na Terra Indígena Vale do Javari (Amazonas), Rieli foi quem obteve os depoimentos dos sobreviventes do povo Korubo que haviam sofrido um ataque de ribeirinhos moradores da comunidade do Ladário, vizinha ao território.

Os Korubo tinham sob a pele pedaço de chumbo das balas disparadas contra eles. Rieli é autor de um relatório (nota 1) da Funai onde esse massacre foi registrado como dado para a história (triste) da Amazônia brasileira. Ele era muito experiente no serviço de proteção aos povos autônomos. Na Terra Indígena Vale do Javari, terra indígena com a maior concentração de povos indígenas vivendo de forma autônoma no mundo, Rieli chefiou expedições nas regiões dos rio Branco, rio Bóia e rio Coruena. Rieli aprendeu com os índios a ser mateiro e sabia muito bem como chegar sem provocar a ira dos indígenas. Muitos indígenas aprenderam com ele também.

Rieli e os seus colegas da Funai no 2º Encontro Etnoambiental da Frente de Proteção Uru Eu Wau Wau – Bananeiras em 2014 (Foto: Mário Vilela/Funai)

Binin Bëchu Matis, filho de Binan Tuku, participou de duas expedições de proteção chefiadas por Rieli. Uma delas foi registrada pelo fotógrafo   J. F. Diorio, do jornal O Estado de S. Paulo. As imagens mostram como é organizada uma expedição para o serviço de proteção Etnoambiental que tem como objetivo monitorar e mapear onde vivem, plantam e caçam esses pequenos grupos humanos que insistem em não querer participar do inferno que a sociedade globalizada vive. Essa semana, no Facebook, Binin Bëchu escreveu uma despedida para Rieli: “muito obrigado, você me deu oportunidades, você foi segundo pai, você me criou por 10/20 anos, descansa em paz, saudade”.

Binin trabalhou com Rieli na Base da Frente de Proteção Etnoambiental da Terra Indígena Vale do Javari, no entroncamento dos rios Ituí e Itacoaí. Eduardo Sibo Matis também chorou a morte do indigenista: “o Rieli era amigo do meu irmão Tëpi (Pajé) e de mais outros Matis, ele era um grande homem a lutar pelos direitos indígenas”, escreveu no Facebook.

Muitos dos velhos do povo Matis como meu pai adotivo Txema e Tumi Branco contaram a uma das autoras deste texto [Barbara Arisi] que o “tempo do Rieli” (o tempo no qual ele fora chefe na TI Vale do Javari) tinha sido um “tempo bom”, quando foram tratados com respeito e não eram explorados nas vezes que trabalhavam para a Funai no serviço de vigilância da Terra Indígena.

Tememos que, com a morte do Rieli, os políticos conservadores aproveitem para pressionar ainda mais na tentativa de terminar com a política de proteção aos Povos Indígenas Autônomos (“isolados”, no jargão oficial da Funai). Essa política de não fazer contato forçado foi criada em 1997, pois antes dela o governo simplesmente invadia ou autorizava a invasão das terras indígenas e os matava ou expulsava para realizar empreendimentos como hidrelétricas ou estradas. Atualmente, com o missionário Ricardo Dias na chefia da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai, o risco de que os evangélicos aproveitem para fazer contato forçado com os autônomos aumenta.

Suspeitamos que a postura de desrespeito à cosmovisão e relações destes povos com sua espiritualidade singular e diferenciada, permita a presença de tais missionários. Essas pessoas se dizem religiosas, mas muitas vezes são apenas a porta de entrada para diversos interesses de ganância econômica como madeireiras, agricultura de mono cultivo, criação de gado, extração de minérios/garimpo que destroem a natureza e só representam um lucro efêmero que deixam atrás de si solos e rios poluídos e degradado. É uma “economia burra” para o longo prazo, pois representa destruição de possibilidade de vida para as gerações futuras. O trabalho missionário é só uma fachada para roubar as últimas terras preservadas, terras de florestas e de quem nelas vive, como os povos autônomos, as plantas e os animais que são a riqueza de biodiversidade da Amazônia, e do Planeta.

Portanto, é duplamente trágica a morte desse defensor dos índios autônomos, pois ela que poderá ser usada com oportunismo, para que os evangélicos, ligados aos defensores da política da bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia) do Congresso possam aproveitar e seguir destruindo as florestas e os últimos povos livres que nelas vivem. Com fogo, queimadas, exploração ilegal de madeira, extração de minérios/garimpo e monocultura impulsionada pelo “agronegócio”, a Amazônia toda, vai assistindo ao maior desmonte de vidas jamais visto ou imaginado.

Vídeo de Roberto Ossak com Rieli Franciscato em 2018.

É avassalador o contexto atual. Nesse momento, não só os Indígenas perdem com a morte de Rieli; todas e todos nós perdemos um grande aliado, na busca pela manutenção da vida. Não temos dúvidas de que o evento propiciará ainda mais afrontosas investidas contra os Povos Indígenas Autônomos. Muitos setores desta sociedade desenvolvimentista ecocida e de consumo tentarão usar a morte heroica do indigenista para avançar com sua necropolítica, provocando um ecocídio, além do genocídio já implantado no país. Matam aos Indígenas física e culturalmente, num genocídio duplo e qualificado.

Que desafio imenso para os que ficamos, assistir sucessivamente o desmonte de vidas, num sem sentido tamanho.  O que a fazenda faz aí, o que o asfalto faz aí? Encurralam os Povos Indígenas Autônomos de todas as maneiras, queimadas, garimpos, fazendas, exploração de madeira e matérias nativas. Lamentamos por todos os povos que estão agora Isolados que se querem autônomos, pelos Uru Eu Wau Wau e por todos os povos indígenas continente. Lamentamos por Rieli Franciscato.  Lamentamos por todas e todos nós, que amamos a Floresta Viva, e por todos que queremos e pensamos que a Vida seja para Viver. E lutamos por ela! Como escreveram os parentes indígenas da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB): “Nos últimos anos, Rieli vinha denunciando e cobrando melhorias nas condições de atuação das Frentes de Proteção Etnoambiental, que são unidades descentralizadas da Funai. Quem o conhece, sabe que Rieli profetizava grandes tragédias, tal como a que com ele aconteceu, devido ao avanço do desmatamento da região e a paulatina destruição do órgão indigenista do Estado, atualmente nas mãos de ruralistas retrógrados e missionários extremistas. Rieli, vá em paz! Seguiremos tua luta!”

Cartum de Santiago, inspirado na obra de Picasso intitulada Guernica (sobre a guerra civil espanhola em 1936). Santiago eh ganhador de varios premios e salões internacionais de desenho. Nascido em 1950 na cidade gaúcha de Santiago, publicou pela primeira vez no suplemento humorístico O Quadrão, do jornal Folha da Manhã. Começou a trabalhar profissionalmente na Folha da Tarde, onde fez por nove anos a charge editorial do jornal, até o seu fechamento. Colaborou ainda para o Correio do Povo, Coojornal, Pasquim e para O Estado de S. Paulo. É autor de seis livros.

Nota (1): Para ler sobre as histórias de contato do governo brasileiro com os povos indígenas Matis e Korubo:

ARISI, B. M. 2011. Matis y korubo, contacto y pueblos aislados. Narrativas nativas y etnografía en la Amazonia brasileira. Mundo Amazónico, v. 1, p. 41-64. ARISI, B M. 2007. Matis e Korubo: contato e índios isolados no Vale do Javari, Amazônia. Dissertação (mestrado) em Antropologia Social. Florianópolis: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.

A foto em destaque deste artigo mostra Rieli Franciscato, em ação na proteção dos indígenas isolados (Foto: Reprodução Facebook)

Barbara Arisi é jornalista formada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) e antropóloga com mestrado e doutorado pela Universidade Federal de Santa Catarina. Como repórter trabalhou no jornal Zero Hora. É professora concursada pela Universidade Federal da Integração-Latino Americana, em Foz do Iguaçu (PR).  Há 14 anos faz pesquisas na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas.

Araci Maria Labiak é pedagoga e especialista em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Desde meados dos anos 70, assumiu a Causa Indígena. De fins de 1979 a meados de 1994, viveu e trabalhou com os Kanamari do sudoeste do Amazonas, rio Jutaí (T.I. Vale do Javari), rio Juruá e afluentes (T.I. Kanamari do Juruá). Publicou em 2007, ¨Frutos do Céu e Frutos da Terra: Aspectos da Cosmologia Kanamari no Warapekom¨, resultado dos anos de observação, convivência e aprendizado com os Kanamari. Atuou como docente e pesquisadora em seis Instituições de Ensino Superior no Brasil, entre Públicas e Privadas. Hoje vive mais próximo dos Guarani M´bya, no Sul do País. Sua escrita e participação social, continuam num compromisso profundo na busca da manutenção da integridade, no respeito e defesa dos Povos Indígenas. Sua vida hoje se dá entre rezos e celebrações, tecituras e escrita, numa área da Mata Atlântica, em meio a um dos Caminhos de Peabiru. Em apreciar os beija flores e demais seres da natureza, honra e defende a VIDA, tão somente.

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