O Ministério da Saúde (MS) não enviou à Casa Civil pedido para que o Fórum de Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (FPCondisi), principal espaço de participação e controle social da política de assistência às comunidades, continue existindo. Com isso, é grande a chance dele ser extinto.
Como outros órgãos federais, o MS deveria ter encaminhado ao Planalto, até 29/5, o pedido para que o fórum seguisse funcionando, conforme determina o Decreto 9.759, de 11 de abril, que prevê o fim de dezenas de conselhos semelhantes, a partir de 28/6. De acordo com a norma, a Casa Civil vai analisar cada um dos pedidos para a manutenção dessas instâncias.
Lideranças indígenas enviaram à pasta da Saúde uma justificativa, solicitando a continuidade dos colegiados participativos das três esferas do subsistema de Saúde Indígena (nacional, distrital e local). Foram informadas pela Consultoria Jurídica do ministério, no entanto, que seria requerida apenas a sobrevivência dos conselhos distritais (Condisi) e locais (CLSI). A assessoria do MS confirmou a informação.
O FPCondisi permite a troca de informações entre indígenas e gestores, a fiscalização da política pública e a discussão de seus problemas com a participação dos índios, numa perspectiva nacional mais estratégica (leia mais no quadro ao final da reportagem).
A denúncia foi tema do último episódio do “Copiô, Parente“, podcast do ISA feito para povos indígenas.
O assunto só não está encerrado porque o Supremo Tribunal Federal (STF) pode julgar, amanhã (12/6), uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) do PT que questiona o decreto. O partido argumenta que ele desrespeita o princípio constitucional da participação popular e o tema só pode ser regulado por lei. Não é possível garantir, porém, que o caso será apreciado nesta semana, nem quando chegará ao fim. É comum o adiamento de julgamentos em função da mudança nas prioridades da Corte ou da ausência de algum ministro, entre outros imprevistos.
Crise no atendimento
A provável extinção do FPCondisi ocorre em meio à uma crise da Saúde Indígena e pode agravá-la, segundo especialistas e indígenas.
O contingenciamento do orçamento federal já vem afetando a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Além disso, o ministro da Saúde, Henrique Mandetta, determinou a suspensão, por semanas, de parte do repasse de recursos às organizações conveniadas que fazem o atendimento, usando como justificativa acusações genéricas de corrupção.
O atraso de salários, a falta de medicamentos e outros insumos pioraram os problemas na assistência, já prejudicada pela saída dos profissionais cubanos do Programa Mais Médicos. De acordo com a Repórter Brasil, em abril pelo menos três crianças morreram por falta de atendimento adequado, no espaço de 11 dias, no Parque Indígena do Xingu.
O ISA ouviu indígenas, servidores, pesquisadores e consultores para entender os impactos da administração Bolsonaro sobre o subsistema. A assessoria do MS informou que o ministro e a titular da Sesai, Sílvia Waiãpi, não dariam entrevista.
Sesai perde competência de “controle social”
Esse não é o primeiro ataque do novo governo à Saúde Indígena. Desde que assumiu, Mandetta passou a defender a extinção da secretaria e a transferência de parte do atendimento para estados e municípios – a chamada “municipalização”. Pressionado pelo movimento indígena, voltou atrás. O ministro pertence à bancada ruralista, inimiga histórica das reivindicações indígenas.
No dia 17/5, Bolsonaro editou um novo decreto, o de nº 9.975, reestruturando órgãos internos e competências de todo MS. O princípio da “gestão democrática e participativa” e a missão de promover o “controle social” no subsistema foram retirados do texto sobre as atribuições da Sesai. A nova redação fala apenas em fortalecer a “participação social dos povos indígenas no SUS”.
Para as lideranças indígenas, o decreto pretende desmantelar os instrumentos de controle social da política. “São muito importantes esses espaços pra nós podermos fiscalizar o sistema nas aldeias, nos 34 distritos e a nível nacional. E a gente está vendo que isso incomoda. Isso causa um incômodo grande principalmente nesse atual governo”, critica Andreia Takuá Guarani, atual coordenadora do FPCondisi (veja vídeo abaixo).
“O controle social é totalmente retirado do texto. Acho isso gravíssimo. Casa com o decreto que prevê o desaparecimento dos conselhos”, reforça uma fonte que pesquisa o assunto e conhece bem a Sesai há anos.
O médico e pesquisador Douglas Rodrigues, do Projeto Xingu da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), acredita que a corrupção e a influência de políticos sobre o subsistema podem aumentar com o fim do FPCondisi. “Nunca houve tanta ingerência política nos distritos sanitários por parte de vereadores, deputados, prefeitos e governadores como tenho visto nos últimos anos. E o que segura um pouco isso é o controle social”, aponta.
Em nota, o MS respondeu à reportagem que “os Conselhos Distritais de Saúde Indígena permanecem em pleno funcionamento, mantendo o controle social em todo o funcionamento da atenção aos povos indígenas. Os presidentes dos referidos conselhos continuam se reunindo com a secretária de Atenção à Saúde Indígena (Sesai), Sílvia Waiãpi, para debaterem as necessidades e dificuldades de cada um dos povos atendidos”.
Outra medida prevista no Decreto 9.975 foi a eliminação do Departamento de Gestão da Sesai, cujas competências foram repassadas ao Departamento de Atenção Saúde Indígena (Dasi). De acordo com Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a alteração esvazia a secretaria e retira parte de sua autonomia, ampliando o controle direto de Mandetta sobre um orçamento de R$ 1,4 bilhão. “Assim, a Sesai fica à deriva, sem seu braço direito”, avalia Andreia Takuá.
Entre servidores ouvidos pela reportagem, ainda há dúvidas sobre os impactos da mudança. A mesma fonte que pesquisa o assunto há anos, mas prefere não se identificar reconhece que ainda não é possível entender todas as consequências da medida, mas teme que outras diretorias fiquem sobrecarregadas e que a gestão dos recursos seja mais centralizada.
“A nova estrutura regimental promove maior integração entre as áreas do Ministério da Saúde”, respondeu o MS, por meio de nota. “Cabe destacar que a reformulação foi identificada a partir de necessidades de implementar ações mais efetivas, eficientes e contemporâneas e está sendo realizada de forma a priorizar ações de assistência à saúde da população, sempre visando tornar mais eficaz o gasto público”, defende o texto.
“Municipalização disfarçada”
Outra alteração que chama atenção na comparação dos textos do antigo e do novo decreto que descrevem as competências da Sesai é o grande número de vezes em que aparece a palavra “integração”, para designar a necessidade de coordenar o atendimento com o Sistema Único de Saúde (SUS). A norma anterior era mais genérica, prevendo a articulação e integração com “setores governamentais e não governamentais que possuam interface com a atenção à saúde indígena”.
Para as lideranças indígenas, junto com as outras alterações, esta abre caminho à municipalização ou pode ser considerada uma “municipalização disfarçada”.
“Eles tentaram de forma direta a municipalização e não conseguiram. Pelo decreto, impõe essa integração da Sesai com os municípios para já preparar o terreno para uma mudança definitiva. A essência da Sesai sempre foi trazer o SUS para dentro da Saúde Indígena e não o contrário. Agora a Sesai passa a ser mera fiscalizadora das ações dos municípios”, afirmou Issô Truká, membro do FPCondisi e da coordenação da Apib, ao Inesc.
Douglas Rodrigues acredita que a leitura do decreto em si não permite falar em municipalização. Ele lembra que a legislação já prevê a integração – o subsistema é responsável pela atenção primária, nas aldeias e cidades próximas às Terras Indígenas, enquanto a assistência mais complexa está a cargo de municípios e estados. “A Saúde Indígena já é integrada ao SUS. É um componente especial dele, para deixar claro que foge da regra da municipalização”, salienta.
O médico argumenta que, preservando-se o subsistema, a maior integração prevista no novo decreto pode ser benéfica não apenas para melhorar a coordenação entre os diferentes níveis da assistência, mas também para quebrar resistências que ainda existem dentro do próprio ministério sobre a necessidade desse mesmo subsistema.
Rodrigues reconhece, no entanto, que a orientação do novo governo é de restringir os direitos indígenas e que o ministro da Saúde vem questionando o próprio SUS. Nesse sentido, acha legítimas interpretações que apontam para o desmonte da Saúde Indígena. “Tem um contexto, um governo anti-indígena”, acrescenta.
Nas últimas semanas, em reuniões com lideranças indígenas ou em mensagens que circularam por grupos de Whatsapp, Sílvia Waiãpi tem negado o enfraquecimento da Sesai ou que esteja em curso qualquer forma de municipalização.
Participação e controle social da Saúde Indígena
O subsistema de Saúde Indígena foi criado pela Lei 9.836/1999 em função das dificuldades envolvidas na assistência às comunidades indígenas. Entre elas, podem ser citados a escassez de recursos de municípios e estados; custos e questões de logística, em especial no caso de áreas remotas e isoladas; a necessidade de respeitar e valorizar a medicina tradicional; a discriminação aos indígenas; a questão dos conflitos políticos e fundiários locais.
O subsistema tem três níveis, que devem ser coordenados pelo Ministério da Saúde. No nacional ou federal, a Sesai é responsável por formular, coordenar e avaliar a implementação da política. Na esfera regional, existem 34 Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena (Dseis), instâncias de gestão descentralizada responsáveis pela contratação e acompanhamento dos serviços, compra e destinação dos insumos. Em âmbito local, nas aldeias e cidades próximas às Terras Indígenas, é realizado nos postos e polos de saúde e Casas de Saúde Indígena (Casais) o atendimento básico, envolvendo procedimentos mais simples, diagnósticos e encaminhamentos de casos mais complexos.
Para cada um desses níveis, a legislação garante a existência de colegiados participativos que ajudam a formular, acompanhar, fiscalizar e avaliar a política pública: os Conselhos Locais de Saúde Indígena (CLSI), os Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi) e o Fórum de Presidentes de Condisi (FPCondisi). Esse sistema é fundamental para garantir a adequação entre o serviço prestado e as peculiaridades étnicas e culturais dos mais de 250 povos indígenas que existem no Brasil hoje.
Os 390 CLSIs têm caráter consultivo e propositivo e, hoje, são compostos por mais de 5,7 mil conselheiros indígenas. Vinculados aos 34 DSEIs, os Condisi têm caráter permanente e deliberativo e são compostos paritariamente por usuários (50%), trabalhadores (25%) e gestores e prestadores de serviço (25%). Existem hoje mais de 1,5 mil conselheiros distritais. O FPCondisi é composto pelos presidentes dos 34 Condisi, tem natureza propositiva e consultiva e deve fiscalizar e monitorar a execução da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), entre outras ações.
Com informações do Inesc