Por Isabel Harari, jornalista do ISA –
Mesmo debaixo do sol quente, os benadjwyre, as menire e os guerreiros do povo Kayapó-Menkrãgnoti atravessaram dançando e cantando o pátio da aldeia Kamaú até a ngàbe, a casa do centro da aldeia. Assim começou a reunião em que mais de cinquenta indígenas discutiram e aprovaram o seu Protocolo de Consulta, um conjunto de regras para fazer valer seu direito de participar de decisões públicas que dizem respeito à suas vidas e seu território.
Garimpo, retirada ilegal de madeira, grilagem de terras e grandes projetos de infraestrutura impactam a vida dos Kayapó-Menkrãgnoti das Terras Indígenas Baú e Menkragnoti, no sul do Pará. Neste contexto e sem nunca terem sido consultados, os índios decidiram escrever suas regras de consulta. E prometem fazê-las cumprir.
“O governo é obrigado a nos consultar antes de tomar todas as decisões que tratem sobre nós ou sobre o nosso território. Nós temos que saber de tudo que pode afetar nossas vidas e a vida de nossos filhos e netos”, diz o documento. [Leia na íntegra]
Protocolos são as regras que detalham de que forma povos indígenas e povos tradicionais devem ser consultados antes que seja tomada qualquer decisão pública (legislativa ou administrativa) que possa afetar seus direitos. Construção de obras, novas leis, formulação de políticas públicas, por exemplo, devem passar por um processo de consulta. O documento diz como, quando, porque e com quem deve ser feita a consulta.
“Antes do governo fazer qualquer projeto tem que nos consultar. É o que está escrito na Convenção 169 e na Constituição Federal. Todos vão receber, todos vão ver, ler e respeitar a regra que o próprio governo fez”, aponta Doto Takak-Ire, liderança Kayapó-Menkrãgnoti.
O protocolo se baseia no direito constitucional dos povos manterem sua organização social e organização política próprias. É um importante instrumento de garantia e consolidação do direito à Consulta e Consentimento Livre Prévio e Informado (CCLPI), assegurado na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, e pela Constituição Federal.
O documento foi construído em conjunto com nove aldeias que fazem parte do Instituto Kabu, instituição criada em 2008 pelos Kayapó-Menkragnoti com o objetivo de defender seus direitos e assegurar a integridade territorial das TIs Menkrãgnoti e Baú. “Quando os kuben (não indígenas) virem conversar, vamos resolver juntos. Temos uma fala só”, afirma Tomeikwa Bepakati, presidente do Instituto.
Os Kayapó-Menkrãgnoti decidiram fazer o seu Protocolo falado, em forma de vídeo. É o primeiro do mundo. Assista ao making off abaixo e acesse a versão completa aqui.
Ferrogrão
Com quase mil quilômetros de extensão, partindo da região produtora de cereais de Sinop (MT) até o porto de Miritituba (PA) a Estrada de Ferro 170, conhecida como Ferrogrão, visa consolidar o novo corredor ferroviário de exportação do Brasil pelo Arco Norte.
O traçado da ferrovia impactará mais de 20 áreas protegidas nas bacias do Xingu e Tapajós — as TIs Baú e Menkragnoti entre elas. Paralela à BR-163, a Ferrogrão deve acirrar conflitos fundiários e potencializar os impactos socioambientais da rodovia ainda pulsantes na região. [Saiba mais]
“Os kuben de outros lugares já estão chegando nessa região para desmatar, abrir novos comércios, plantar soja e pressionar cada vez mais nosso território. O governo ainda não nos consultou sobre a ferrovia”, alerta o texto do protocolo.
Em 2018 o desmatamento acumulado em uma faixa de 100 km no entorno das TIs Baú e Menkragnoti atingiu 32.583,8 km². “Invasões, divisão das aldeias, ameaças de garimpeiros e de produtores rurais. Esse é o perigo que o projeto da Ferrogrão pode trazer. Já estamos vendo que só de anunciar o projeto, os plantios de soja aumentaram na região”, reitera Doto.
Guajba nho pi’ok, nossas regras
Em seu documento, os índios construíram um passo a passo de como a consulta deve ser feita. Os benadjwyre, que em tradução literal são os “donos da fala”, fizeram um rascunho que depois foi projetado e discutido em todas as aldeias associadas ao Instituto Kabu. Após um processo de aperfeiçoamento e de discussão, o texto final foi aprovado conjuntamente pelas lideranças na aldeia Kamaú.
Uma das regras do protocolo é que qualquer consulta só pode ser realizada na ngàbe, a casa do guerreiro ou casa do meio, espaço tradicional de tomada de decisão dos Kayapó. Ou seja, dentro das aldeias e com a presença de todas as lideranças das aldeias vinculadas ao Instituto Kabu. “Se o governo quer falar de alguma proposta não vai ser mais na cidade Tem que ser na TI Baú ou na TI Menkragnoti”. Também não pode falar só com uma liderança, tem que ser com todo mundo”, frisa Kokoró Menkrãgnoti, secretário executivo do Instituto Kabu.
A escolha do nome do protocolo foi uma disputa acirrada. Oito opções de título na língua mebengôkre foram colocadas na mesa: apresentadas pelos professores, pelas menire (mulheres) e lideranças mais velhas. Após quase uma hora de debate, um jovem professor apresenta a tradução vencedora por consenso: “PI’ÔK JAKAM DJA GA ME MỲJJA KADJY ME IMARI KUMRĔJ ME IBÊ KAYAPÓ-MENKRAGNOTI INSTITUTO KABU KUTE ME IJO ỸRỸ JA”.
O cuidado com a definição do nome do protocolo revela a importância da tradução para os Kayapó-Menkrãgnoti. Em um dos pontos do documento eles exigem que um tradutor seja escolhido pelos benadjwyre para que toda a comunidade entenda a discussão e possa decidir se concorda ou não com o tema tratado. “Nós precisamos confiar na tradução para entender o que está sendo dito”, coloca Kokoba Menkragnoti, cacique da aldeia Menkragnotire.
Com seu protocolo em mãos, os Kayapó-Menkragnoti esperam fazer valer seu direito de serem consultados da forma estabelecida por eles: respeitando seu tempo, sua forma de tomar decisões e sua organização política. “O kuben não vai mais falar sozinho. Eles vão ter que falar com a gente e seguir as nossas regras. Nossas regras estão no nosso protocolo, que deve ser visto pelo mundo”, aponta Bekwyjrati Kayapó, da aldeia Kamaú.
Voz e autonomia
O documento dos Kayapó-Menkrãgnoti junta-se a mais onze Protocolos de Consulta feitos por indígenas e populações tradicionais no Brasil. Cada publicação, elaborada de forma autônoma e independente, é uma importante ferramenta de fortalecimento interno que ajuda a garantir os direitos destes povos.
Cópias dos protocolos dos Wajãpi, dos Juruna (Yudjá) e dos povos do Território Indígena do Xingu passaram de mão em mão durante a reunião na aldeia Kamaú.
A recente decisão que paralisou a mineradora Belo Sun, por exemplo, citou o protocolo feito pelos Juruna (Yudjá) da Terra Indígena Paquiçamba. O Tribunal Regional 1 (TRF-1) ordenou que as atividades da maior mineradora de ouro a céu aberto no Brasil sejam suspensas até que a Consulta Livre, Prévia e Informada seja feita respeitando o protocolo. [Saiba mais]
Doto Takak-Ire fez questão de atestar a importância dos protocolos: “Isso aqui está na lei. É a nossa arma de luta”.
Em mãos
Os Kayapó-Menkrãgnoti foram até Belém, no Pará, para entregar em mãos o seu protocolo para o governo do Pará. Bati Mekragnotire, cacique geral, entregou o livro nas mãos do secretário adjunto de gestão de regularidade ambiental da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade(Semas) do Pará, Rodolpho Zahluth Bastos.
“Se você passar por cima desse papel, estará agredindo a Lei”, alertou Doto, que também participou da reunião. A comitiva também foi até o Ministério Público Federal para levar seu Protocolo.