Por Gabriel Ferreira para o Amazônia Real –
“Foi constrangedor, humilhante. É como se eu não fosse alguém.” Mais de 24 horas se passaram desde que o jornalista Cley Medeiros foi vítima de racismo e agressão física, mas as cenas continuam vivas e doloridas. No minuto em que pisou em uma agência do Banco do Brasil (BB), no bairro Adrianópolis, na zona Sul de Manaus, ele passou a ser monitorado por um segurança da empresa Amazon Security. Antes de ser atendido, e em questão de segundos, foi agredido por esse segurança enquanto estava sentado e seu celular foi parar a alguns metros de distância, quebrado.
Medeiros é negro e há dez anos adotou o cabelo Black Power, em homenagem ao pai que usava o mesmo corte. Há 10 anos, o jornalista frequenta a agência bancária de Adrianópolis, mas foi a primeira vez que sofreu esse tipo de violência. Em pelo menos outras seis ocasiões, foi vítima de racismo em outros bancos de Manaus.
Na última terça-feira (22), por volta das 10h20, chegou à agência do BB. Tinha pressa e uma ansiedade boa para efetuar um pagamento. Não era uma conta qualquer para pagar, mas um boleto de passaporte. Na segunda quinzena de fevereiro, Medeiros foi selecionado para um programa de intercâmbio internacional.
Ainda do lado de fora da agência, descobriu que estava na fila errada. As 5 ou 6 pessoas à sua frente esperavam pelo pagamento do Pasep. Um primeiro segurança se aproximou e pediu que entrasse na agência para retirar uma senha numa máquina. Lá dentro, a perseguição se iniciou, praticada por um outro segurança. Este o impediu de tirar a senha.
“Mais uma vez fui perguntado sobre qual era o motivo de eu estar lá. Expliquei que só queria pagar um boleto. Ele então colocou a mão na arma e com a outra me entregou uma senha”, lembra. A cena incomum para muitos clientes já foi vivida por Medeiros outras vezes. No ano passado, o jornalista amazonense foi selecionado no programa de bolsas para repórteres negros da agência de jornalismo Intercept Brasil, e atualmente produz uma reportagem referente à temática.
Prudente, o jornalista não fez nada a não ser procurar um lugar para sentar e esperar sua vez. A agência estava completamente vazia. Podia, assim, escolher um dos muitos lugares desocupados dentro do banco. Foi a partir desse momento que as cenas explícitas de racismo aconteceram. Ele foi novamente impedido de sentar onde queria pelo mesmo segurança que o atendeu na retirada da senha.
“Com a mão na arma, apontou para que eu sentasse em outro lugar, próximo a uma área onde os seguranças ficam. Nesse momento, percebi que estava sofrendo racismo”, diz o jornalista. À Amazônia Real, ainda tentando buscar algum sentido à agressão que sofreu, Medeiros lembrou-se de um episódio em que se sentiu perseguido dessa forma.
O segurança que praticou o ato racista contra o jornalista
(Reprodução Instagram @Cleymedeiros)
Era o último ano da faculdade de jornalismo, em 2019, quando Cley Medeiros foi impedido de entrar no prédio por um segurança. A máquina de biometria estava quebrada e, por não estar com seu documento de identificação, foi barrado na portaria. Enquanto tentava convencer a ter acesso à sua própria escola, uma aluna branca passou pela catraca. Ela também estava sem a identidade. “Questionei o segurança e ele disse: ‘preto abusado’. Eu fiquei surpreso e comuniquei à direção, que buscou minimizar a situação. Nesse dia eu chorei por horas no serviço de atendimento ao aluno, que conta com um psicólogo, que também buscou minimizar (o episódio)”, lembra.
‘O meu celular caiu no chão’
O jornalista Cley Medeiros (Foto Reprodução Facebook)
Desta vez na agência do BB, Medeiros não chorou diante de mais um ato arbitrário vindo de um segurança. Decidiu não obedecer “a ordem que me pareceu nula, já que um segurança de um banco não deve dizer onde alguém deve ou não sentar. Isso é discriminação, preconceito. Na prática é crime racial”.
Logo depois de se sentar, o jornalista foi pegar o seu aparelho celular para conferir os dados para pagamento do boleto. “Posicionei (o celular) em frente ao documento que estava sobre a minha perna e nesse momento fui agredido pelo segurança, que derrubou o celular”, relata. O segurança falou algo sobre ser proibido o uso do celular no banco, mas parecia que essa regra só valia para homens negros. “Todos estavam usando celulares. O meu celular caiu no chão, quebrou a tela e a parte traseira.”
O gerente do BB viu a cena de agressão ao jornalista e foi até ele. “Quase não consegui escutar o pedido de desculpas enquanto ele mesmo pegava o meu celular do chão. Eu perguntei: ‘o segurança faz isso sempre, ou é só com negros?’”, recorda. O pior naquela situação foi ver o segurança esboçando um sorriso por detrás da máscara após agredi-lo e cometer racismo. “O olhar de tranquilidade que ele tinha me deu medo. Alguns clientes foram solidários, disseram que era pra processar o banco, que aquilo não podia acontecer.”
Cley Medeiros conseguiu pagar o boleto, mas decidiu procurar o gerente da agência. Explicou, didaticamente, que o que havia acontecido com ele era um crime de racismo e que situações como aquela não poderiam acontecer, e em última instância deveria haver um protocolo sobre como os funcionários do banco deveriam agir. “Ele se queixou que não tinha certeza do que poderia fazer, já que o segurança era de uma empresa terceirizada, então pediu desculpas”, diz.
Ao procurar o Serviço de Atendimento ao Cliente do BB, Medeiros descobriu que terá uma resposta em cinco dias sobre a sua demanda imediata: ele precisa de um novo celular para trabalhar. “Sobre os danos imateriais e morais, eu decidi entrar com um processo judicial contra a empresa Amazon Security e o Banco do Brasil, à título pedagógico, pois minha luta é diária, muito além de um processo que pode ter fim”, completa. Ele registrou Boletim de Ocorrência na Delegacia Virtual do Ministério da Justiça e Segurança Pública, mas nada consegue reduzir o sentimento “de revolta”.
Dia contra a discriminação racial
Christian Rocha do INAO (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
É irônico que o 21 de março, um dia antes do caso de racismo contra o jornalista Cley Medeiros, é o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial. O jurista, presidente do Instituto Nacional Afro Origem no Amazonas (Inaô) e secretário nacional do movimento, Christian Rocha, disse que fica com medo dessas datas hoje em dia, mas que elas precisam ser lembradas. Ele comentou o caso de Cley Medeiros a pedido da Amazônia Real.
“Infelizmente, falamos sobre o Dia Internacional sobre a Luta contra o Racismo e no dia seguinte acontece isso no nosso Amazonas. O Amazonas é racista, é preconceituoso, e ele não respeita ninguém. Eu sempre digo aos amigos que são negros, poderosos, que não tem pra onde correr. Você pode ter o que dinheiro que for, você é negro, você tem que abraçar a causa, de forma voluntária, de conscientização”, desabafa.
O movimento negro enfrenta uma longa luta para derrubar todas as formas de racismo e violência. Ao Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), Rocha afirma que já foram enviados ofícios solicitando a realização de mutirão de processos sobre violência contra a mulher negra. Também pediu pressa à Delegada-Geral de Polícia Civil do Estado do Amazonas, Emília Ferraz, em relação aos boletins de ocorrência de racismo. “Já cobrei publicamente celeridade dos processos sobre racismo e muitas das vezes nós não somos atendidos. Nós vamos continuar reivindicando, vamos continuar cobrando a Justiça, para que a Justiça seja feita”, declara.
Para a Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas (Aleam) e a Câmara Municipal de Manaus (CMM), Christian Rocha informou que vai enviar ofícios propondo uma lei que exija que em todos os órgãos públicos seja obrigatório afixar um aviso sobre a Lei 7.716/89, que prevê o Crime de Racismo. A proposta é baseada na lei de desacato ao funcionário público presente no Art. 331 do Código Penal Brasileiro.
“É importante a sociedade debater mais sobre isso, as faculdades, as escolas, e principalmente também aplicar uma lei nas escolas, nas faculdades, que não é só matéria da África, mas sobre a lei acerca do racismo”, diz o presidente do Inaô no Amazonas.
Em 2021, foram registrados somente sete casos de racismo em Manaus, segundo dados apresentados pela Secretaria de Segurança Pública do Amazonas. Mas, na prática, esse número deve ser bem maior. “No ano que ele falou que ele registrou sete casos, em três meses eu ouvi quatro casos. As pessoas não procuram mais a justiça porque elas perderam a credibilidade e a confiança na justiça. Porquê a falta de celeridade nos processos judiciais envolvendo racismo, eles demoram bastante e isso gera uma insegurança em querer denunciar”, disse Christian Rocha.
O que dizem a empresa de segurança e o BB
Agência Adrianópolis do banco do Brasil (Foto Google Street View)
A reportagem da Amazônia Real procurou a ouvidoria da empresa Amazon Security que, por email, enviou uma nota. A empresa garantiu que “qualquer notícia de ofensa a terceiros ocorrida durante a prestação de serviços de segurança será devidamente apurada” e que sanções serão aplicadas ao funcionário se ficar comprovada a denúncia de Cley Medeiros, inclusive “o devido encaminhamento às autoridades competentes”.
A Amazon Security afirmou ainda que em dezembro de 2021 realizou campanhas internas contra qualquer tipo de discriminação, inclusive distribuindo a cartilha “Segurança Sem Preconceito”, da Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores”. “A empresa sempre prezou pelo respeito e igualdade de tratamento entre todos os seus colaboradores e o público em geral, independentemente de origem, cor da pele, credo, orientação sexual ou gênero”, acrescentou.
Por email, a Assessoria de Comunicação do Banco do Brasil enviou a seguinte nota: “O Banco do Brasil informa que apura a ocorrência na agência Adrianópolis. A prestadora de serviço de vigilância afastou o funcionário envolvido no episódio até a conclusão da apuração dos fatos. O BB tem como princípio, o respeito e a diversidade e à pessoa humana, e trata com as medidas cabíveis, toda prática contrária a esses princípios éticos”.
*Crédito da imagem destacada: Cley Medeiros foi perseguido e teve seu celular jogado no chão por um segurança; ele queria pagar um boleto para tirar o passaporte, já que ganhou uma bolsa para estudar nos Estados Unidos. (Foto Google Street View)
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