“O que aconteceu com os Munduruku pode acontecer a outros povos. Eles precisam ter acesso ao processo de implementação desses empreendimentos, participação e acesso à informação e a partir disso, lutar por seus direitos. Hoje isso não ocorre, por isso estes direitos são vilipendiados”, analisa Francisco Forte Stuchi, biólogo/MSc (Mestrado em Ciências) e etnoarqueólogo, em Mato Grosso.
O desrespeito a esta fase de consulta, durante o processo de licenciamento ambiental de grandes empreendimentos que afetam o povo Munduruku, é colocado como um ponto importante para esta etnia, com mais de 13 mil integrantes, e já resultou na formulação do Protocolo de Consulta Munduruku, em 2014. Dentro destes princípios, os indígenas exigem da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e especialmente ao Ibama que não autorizem o licenciamento de operação (LO) da UHE São Manoel, que está em fase final de construção.
A empresa é uma joint venture entre a China Three Gorges, a EDP Brasil e Furnas e deverá gerar 700 megawatts (MW) de eletricidade. Caso haja a autorização para o enchimento de seu reservatório, deverá afetar outro ponto sagrado deste povo, que é o Morro dos Macacos. A FUNAI, em estudos técnicos, já sinalizou que a licença não deveria ser concedida, devido a um conjunto de procedimentos que não foram concluídos para autorizar a operação.
Sete Quedas
Os pajés contam que o complexo de Sete Quedas (Karobixexe) era uma linda cachoeira em formato de escada, lugar onde os mortos estão vivendo (o céu dos mortos), no mundo dos vivos. Um lugar sagrado para os Munduruku, Kayabi e Apiaká, onde também os peixes se procriam, de diversas espécies e todos os tamanhos e onde está a mãe dos peixes. Lá figuravam pinturas rupestres deixadas pelo Muraycoko (pai da escrita) e existe um portal que não é visto pelo homem comum, mas somente por pajés, que podem viajar para outro mundo sem serem percebidos. Seus lugares sagrados são descritos em carta de junho de 2013 e novamente na carta dos Pajés, em julho deste ano, decorrente de um processo de mobilização do povo munduruku, que envolveu cerca de 140 representantes do povo, de diferentes aldeias da etnia.
“Os Pariwati (brancos) têm feito intervenções nos locais sagrados munduruku Karobixexe, a casa sagrada, e Dekuka’a (Morro dos Macacos), onde está a mãe dos animais”, destacam no documento.
Já em 2013, os Munduruku encaminharam uma carta ao Ministério Público e ao Iphan, denunciando que os pajés haviam reconhecido as urnas retiradas pela UHE Teles (sem consentimento da etnia), da região de Sete Quedas, e que consideravam uma violação de seu território e de seu cemitério sagrado ancestral, o que representava um grande risco espiritual, social e ambiental também para os parentes Apiaká e Kaybi.
No artigo “A Gestão do Patrimônio Arqueológico em Territórios Indígenas: a resistência Munduruku e a preservação do patrimônio cultural frente ao licenciamento ambiental de empreendimentos em territórios tradicionalmente ocupados”, o arqueólogo Francisco Pugliese expõe esta situação. Ele explica que as autoridades, à época, decidiram pela dispensa do componente etnoarqueológico Munduruku para o licenciamento ambiental da UHE Teles Pires. Com isso, foi desrespeitada a Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) 169, que o Brasil é signatário, na qual fica estabelecido que deve ocorrer a consulta prévia, livre e informada a estes povos atingidos.
“As pesquisas arqueológicas já dizem que os indígenas estão há milhares de anos e elegeram os locais sagrados, que fazem parte da história de vida deles, sobre todo este território. Estão interagindo com outra parte da natureza não-humana. Nos últimos 500 anos, colonizadores num processo contínuo de denominação, mudaram esta geografia humana e política neste território que eram deles”, afirma Stuchi,
O arqueólogo reitera que no processo de licenciamento, não está sendo cumprida a consulta. “Os indígenas só conseguem participar quando o processo já está ocorrendo e não bate com os cronogramas das obras e aí, geralmente, há pouco a se fazer para diminuir os danos”, explica.
“No caso dos Munduruku, tanto as urnas como o local sagrado destruído são importantes para eles. Precisamos evoluir o nosso entendimento sobre estes povos que já habitavam os territórios e melhorar nossas leis, para que sejam respeitadas. Isso, para que não só nossos cemitérios, nossas igrejas e sagrados e espaços utilitários sejam respeitados, mas desses povos também”, afirma.
Patrimônio espiritual tem precedente jurídico
Os Munduruku reivindicam indenização. O procurador Frazão explica que o valor de indenização só pode ser definido por um juiz em ação própria.
O patrimônio espiritual já tem um precedente jurídico brasileiro, no caso do acidente entre um avião da Gol e um modelo Legacy, que atingiu local sagrado dos Mebengokre Kayapó, da Terra Indígena (TI) Capoto/Jarina, em Peixoto de Azevedo, em Mato Grosso, em 2006, quando morreram 154 passageiros e tripulantes. Em novembro de 2016, por meio de intermediação do MPF, houve o acordo para que a empresa pagar R$ 4 milhões por danos ambientais, materiais e imateriais à etnia.
Os Kayapó expuseram que o local se transformou na “casa dos espíritos”, após a tragédia e se tornou imprópria para o uso da comunidade, devido razões de ordem religiosa e cultural. Os recursos ficaram de ser geridos pelo Instituto Raoni e a prestação de contas à Procuradoria da República, em Barra do Garças, com o objetivo de comprovar o benefício à etnia.