ODS10

Rompendo o ciclo familiar de trabalho doméstico

Por Azmina* – 

Minha bisavó Celeste começou a trabalhar como empregada doméstica aos 7 anos. Eu sempre senti nela rancor por ter sido tirada da escola, como alguém que sabia da sua inteligência e capacidade para correr longe, mas lhe cortaram as pernas. Ela então fazia (e ainda faz, aos 90 anos) questão de contar de como usou os braços pra correr e que voltou à escola para trabalhar como merendeira. Minha avó Ana Maria começou a trabalhar como empregada doméstica ainda adolescente. Faleceu antes dos 50 anos, vítima de um AVC. Kátia, minha mãe hoje com 52 anos, ainda trabalha como empregada doméstica.

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Celeste, Ana Maria e Kátia. Um ciclo de três gerações de mulheres empregadas domésticas que foi quebrado no dia 23 de fevereiro de 2006, data do meu aniversário de 18 anos e também, por acaso, o meu primeiro dia na universidade no curso de Letras em uma faculdade privada com bolsa do ProUni.

Em março de 2017 fui convidada a dar uma entrevista para falar da minha trajetória e se ela condizia com uma pesquisa divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em parceria com a ONU Mulheres: entre 1995 e 2015 caiu 35% o número de empregadas domésticas entre 18 e 29 anos no Brasil. A pesquisa sobre a desigualdade brasileira enfatizava gênero e raça, destacando o avanço das mulheres negras, mesmo ainda ganhando um terço do salário de um homem branco.

Eu era a comprovação da pesquisa em forma de gente: mulher, negra, na época com 29 anos e a primeira a romper o ciclo familiar de trabalho doméstico acessando o curso superior. E eu não era a única, minha rede próxima está repleta de mulheres negras de “primeira geração”. Aliás, quem me ensinou essa expressão foi Mary, que vocês conhecerão mais a frente. O entendimento de que contar a minha e outras histórias é uma forma de celebrar nossas vitórias em meio a tanta luta, me levou a essa reportagem. Contar nossas histórias é contar a própria história do Brasil.

Falar foi fácil, mas o processo de reconhecimento e pesquisa para essa reportagem foi bem mais difícil do que poderia imaginar. Muitas vezes me peguei falando da dor e esquecendo de celebrar. Eu precisei acessar memórias, recontar minha própria história pra mim mesma, o que me causou muita dor.

Um fato que me marcou muito foi quando meus pais engravidaram da minha irmã mais nova e, aos 40 anos, minha mãe teve pela primeira vez uma licença maternidade. Eu na época tinha 18 anos e ao mesmo tempo que vibrei pela conquista, pensava em tudo que ela passou nas três gestações anteriores. Esse fato está diretamente ligado à conquista dos direitos trabalhistas das empregadas domésticas, que vocês também lerão mais a frente.

Outro ponto dolorido foi comprovar a falta de documentos, dados, teses, enfim, produções legitimadas sobre mulheres negras brasileiras que conseguiram romper esses ciclos e alcançaram alguma mobilidade em outros tempos. As mais visíveis carregam na maioria das vezes narrativas com o peso dos estereótipos, hipersexualização e embranquecimento. O Brasil é especialista em ocultar processos indesejáveis. Visibilidade é um direito que dispara outros direitos e num país regido pela falsa meritocracia, ninguém quer visibilizar seus privilégios para não ter que abrir mão deles.

Em meio ao meu esforço de permanecer celebrando as vitórias vieram, como é típico da vida, as perdas. Sem dúvida a maior delas o assassinato da Marielle Franco. Mari já estava na lista das entrevistadas para essa reportagem, não só pela sua trajetória pessoal que corrobora com os números, mas também pela luta em seu primeiro mandato como vereadora para trazer outras mulheres pretas e pobres para espaços que dizem não ser nosso. No um ano em que presidiu a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ela trouxe para o debate pautas como os direitos sociais, os direitos sexuais e reprodutivos, a violência contra a mulher praticada pelo Estado e o combate ao racismo estrutural.

Mas, se o trabalho como empregada doméstica não é mais a única opção, quais são as outras opções? Como essas mulheres se fortalecem para romper outros ciclos, mesmo com tantos limites que ainda existem para o nosso crescimento? Como elas influenciam as gerações seguintes? Busquei responder a essas perguntas nas entrevistas com mulheres negras que, como eu, quebraram o ciclo de trabalho doméstico que marcaram sua ancestralidade.

É importante começar dizendo que todo trabalho é digno. Quando se diz do significado e importância do rompimento dos ciclos familiares de trabalho doméstico no Brasil não é para desqualificar essa função, mas sim para analisar o motivo de gerações de mulheres da mesma família exercerem a mesmo papel na sociedade. Por que algumas famílias brasileiras demoraram séculos até ter a possibilidade de escolher exercer outros trabalhos?

Falar de trabalho doméstico é também fazer um recorte de cor e de gênero. Ainda que homens e mulheres brancas também exerçam essa função, segundo dados do IPEA de 2015, dos 6,2 milhões de trabalhadores domésticos no Brasil, 5,7 milhões são mulheres. Dessas, 3,7 milhões são mulheres negras e 2 milhões são autodeclaradas brancas.

A história da desigualdade
Não é por acaso que os números são esses. Os escravizados, sequestrados de seus lugares de origem ou nascidos em território nacional, eram comprados e vendidos no intuito de realizarem trabalhos dentro e fora de casa. Mas sempre houve diferença entre os gêneros nesses trabalhos e coube às mulheres os trabalhos domésticos. A figura da Mucama é marcada no imaginário brasileiro como a escrava de servir, a negra de estimação, “quase da família”. Essas eram as principais realizadoras dos trabalhos domésticos da Casa Grande, acompanhantes das “sinhás”, conselheiras das “sinhazinhas”, estupradas pelos senhores.

A Lei Áurea, de 1888, tinha o intuito de banir a escravidão do país. Mas nem ela ou as leis anteriores, Lei do Ventre Livre (1871) e Lei do Sexagenário (1885), descreviam que destino deveriam ter os ex-escravizados, como seriam inseridos no mercado de trabalho, que profissões exerceriam, quanto receberiam, como seriam as relações patronais. Ao contrário, o Brasil tratou de se modernizar para o século XX com políticas eugenistas.

Os historiadores Marcelo Mac Cord e Robério S. Souza contam que existe no imaginário coletivo sobre a Lei Áurea a ideia de que a pretensa falta de braços para o trabalho teria exigido dos governantes e fazendeiros promover uma intensa imigração de europeus. “Esse tipo de concepção excludente até hoje ecoa entre aqueles que tentam justificar nossas profundas desigualdades étnicas e sociais”, escrevem no livro “Dicionário da Escravidão e Liberdade”.

Na virada do século 19 para o 20, o Rio de Janeiro, então capital do Brasil, tinha 30 mil mulheres escravas e livres labutando como domésticas, segundo a historiadora americana Sandra Lauderdale Graham. Elas representavam 15% dos habitantes e 71% das trabalhadoras da cidade. Em 1906, a escravidão havia acabado, mas as domésticas ainda representavam 13% da população do Rio e 76% das mulheres trabalhando fora de casa. No livro “Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910”, Sandra descreve a forma de viver na então capital como “um estilo de vida que, em todas as suas variantes, dependente dos criados não apenas para suprir as necessidades da existência diária mas também para exibir uma posição social de privilégios”.

Pouca coisa mudou, segundo a  Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em 2017, o Brasil tinha o maior número de trabalhadores domésticos do mundo, cerca de 7 milhões. São três empregados para cada 100 pessoas.

O pós-abolição fez uma “transição natural” da “escrava doméstica” para empregada doméstica, permanecendo as mesmas relações de poder. Também por isso o trabalho doméstico demorou para ser reconhecido como atividade econômica e as trabalhadoras não foram inseridas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1943. A Constituição de 1988 só lhes deu 9 dos 34 direitos trabalhistas de outras categorias. Era como se para esse tipo de trabalho as mulheres, e principalmente as mulheres negras, estivessem naturalmente habilitadas. Um trabalho que se aprende em casa, que não precisa de formação técnica e, por isso, não merece a mesma valorização. Desvalorização essa que contribui para a exploração e o abuso sexual, moral e psicológico. O trabalho doméstico não está fechado, fora do mundo, ao contrário, marca estruturas de poder e participa das relações sociais patriarcais, racistas e misóginas.

Era comum os ciclos familiares de emprego doméstico no país: bisavós escravizadas formaram avós, mães e filhas empregadas domésticas. Não raro os ciclos familiares ocorriam dentro da mesma família de empregadores, reproduzindo também a lógica escravagista, disfarçada de círculos de confiança ou relações afetuosas, mas poucas vezes questionadoras do porquê ter gerações de mulheres servindo gerações de patrões.

Só em 2013 a Emenda Constitucional 72, conhecida como “PEC das Domésticas”, entrou em vigor, estabelecendo carga horária de trabalho, hora extra, licença maternidade e outros direitos.

Relatora da PEC das Domésticas na Câmara, a deputada Benedita da Silva (PT-RJ) avalia que a crise econômica que o país enfrentou nos últimos anos impactou os efeitos da medida. “Dois anos após a aprovação da PEC das Domésticas o Brasil mergulhou em profunda crise política e recessão econômica. Essa conjuntura econômica, social e política de crise impediu a consolidação dos efeitos positivos da PEC das Domésticas”, diz a deputada em entrevista à Revista AzMina. Segundo ela, crescimento econômico, geração de empregos e educação são fatores importantes no fortalecimento do poder de negociação das trabalhadoras domésticas.

Em sessão solene da Câmara por conta do Dia da Empregada Doméstica, Benedita subiu à tribuna em 2014 com uniforme de empregada para homenagear as trabalhadoras. Reeleita para o terceiro mandato em 2018, ela conta que em sua geração, ser mulher negra e não ser empregada doméstica não era uma opção, mas uma oportunidade rara. Ela celebra os números mas diz que “se isso aconteceu no mercado de trabalho, em virtude da geração de empregos, e nas universidades, por causa da política de cotas, continua extremamente baixo na representação política”.

Empreender para ver a si mesmo
As mulheres negras têm um perfil de empreendedoras por necessidade, segundo a psicóloga Daise Rosas, que coordenou por três anos o Programa Trabalho e Empreendedorismo da Mulher da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República no governo Dilma. A maioria costuma ter baixa escolaridade, nenhum aporte  financeiro e pouca ou nenhuma experiência de gestão financeira. Mas isso vem mudando nos últimos anos, aponta Daise, especialmente no que se refere ao aumento da escolaridade. “As cotas educacionais fazem parte desse processo. Outro avanço é o aumento da formalização entre as mulheres negras, com a criação da figura do Microempreendedor Individual (MEI), o que fortalece a presença econômica delas no âmbito empresarial, com maior reconhecimento.”

É comum que quando uma mulher negra empreenda, ela pense nas faltas que ela teve ao longo da vida e tente resolver essas faltas com os produtos que se propõem a colocar no mercado, conta Jaciana Melquiades, historiadora formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora das atividades educativas no Coletivo Meninas Black Power.

“Nunca é só um produto que está na moda, geralmente ele é pensado, mesmo que inconscientemente, para curar nossas dores, nossas faltas”, diz Jacira, cuja foto dela com a mãe, o pai e o diploma ilustra essa reportagem. Nessa perspectiva, ela fundou a “Era uma Vez o Mundo”, empresa de impacto social que desenvolve brinquedos afirmativos e representativos que promovem educação por meio das ideias de diversidade e sustentabilidade.

“Como quase toda a menina negra da minha geração, eu cresci sem referência de sucesso, de pessoas negras para me inspirar e orientar nos meus desejos de querer ser quando crescer”, conta Jacira. Com pouquíssimos brinquedos que a representassem, ela cresceu com desejos profundos de embranquecimento, de ganhar por exemplo uma rinoplastia (cirurgia de nariz) de aniversário de 15 anos. “Na época em que eu engravidei essas questões ficaram muito fortes e eu comecei a pensar que tipo de referência eu queria passar para o meu filho”, conta.

Educar para intervir na realidade
Para Sinara Rúbia, educadora social, contadora de histórias, instrutora de arte e cultura e pesquisadora em História e Literatura Infantojuvenil Negra, enxergar a potência da pessoa negra também foi o mote para romper os ciclos familiares de trabalho doméstico.

“Eu achei a princípio que o meu vício por narrativas havia surgido na universidade, estudando Letras, tendo contato com autores. Mas hoje eu entendo que esse vício surgiu quando eu era bem mais nova, quando eu ficava pedindo a minha mãe e meus avós toda hora pra contar as mesmas histórias. Na universidade eu tomei consciência da importância dessas narrativas na vida das pessoas e especialmente crianças negras”, diz Sinara.

Em 2007, na monografia, Sinara quis confirmar a hipótese de que a literatura infanto-juvenil, com a presença hegemônica de personagens não negros, somado a outros fatores de falta de representatividade, contribuia para que a criança negra, em contato com essa literatura, se rejeitasse, não se reconhecesse enquanto negra. Sinara entrevistou quarenta meninas em idade escolar e a hipótese se comprovou. O que chegava àquelas meninas era uma literatura em que tudo que era bom, valorizado e positivo, não era ela. Quando ela aprecia nessa literatura era de forma negativa, ruim, desvalorizada. Diante da realidade Sinara escreveu o conto “Princesa Alafiá”, que é a própria história do Brasil, de uma princesa negra e guerreira.

Formação como ponto de chegada
Mary do Espírito Santo é filha de Maria da Penha, neta de Maria de Lourdes e bisneta de Maria América. Além dessas referências, é graduada em Letras e mestra em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio. Atua com formação, facilitação de grupos e articulação institucional. Mary passou boa parte da infância no quarto de empregada das casas dos patrões da mãe, lendo sozinha, sem incomodar os donos da casa. Mas se no início as chegadas eram receptivas, repetiram-se os casos de exploração do trabalho, negação de direitos e até limitações na alimentação das duas dentro da casa.

As horas e horas de trabalho de dona Penha garantiam o aluguel da casa na favela da Rocinha e que Mary pudesse ter o que é um dos fatores primordiais no rompimento desse ciclo: tempo para estudar e possibilidade de fazer escolhas. A chegada à PUC para a graduação em pedagogia veio com a ajuda da madrinha, que trabalhava como secretária do responsável pelas bolsas de estudo da faculdade. “Eu me arrumei, ela me pegou pela mão, a gente entrou na sala e disse ‘Augusto, essa é minha afilhada, ela passou em oitavo lugar no vestibular, mas não tem condição de pagar mensalidade, o que vc pode fazer por ela?’ Ele pegou um papel, assinou e disse ‘bem vinda à PUC, que seja uma fase maravilhosa na sua vida’.”

A fase não foi tão maravilhosa assim. Estudar num ambiente elitista sendo moradora de uma das maiores favelas do Brasil foi um choque de realidade. “Às vezes a gente estava devendo o aluguel enquanto minhas amigas gastavam dinheiro em cadernos e canetas na lojinha da PUC. Era a desigualdade sendo jogada na minha cara.”

Ainda assim ela permaneceu até o fim do mestrado na mesma universidade. “Minha mãe sempre falou: ‘estuda, que estudo ninguém tira de você.’ Mas quando nossas mães falam isso é um campo muito genérico, você vai estudando que nem uma louca, mas sem saber pra onde você está indo. Quando eu defendi o mestrado, saiu um peso tão grande das minhas costas que eu sentei no bicicletário pensei: ‘acabou, acho que eu cheguei onde falaram que eu tinha que chegar’.”

Um corpo no mundo
A perspectiva de suprir faltas, de empoderamento pessoal e coletivo está ligada diretamente ao rompimento dos ciclos familiares de trabalhadoras domésticas no Brasil. Isso porque o racismo está também na forma como o corpo negro é representado na mídia, geralmente ligado à pobreza, à subserviência ou à violência. Pouquíssimas vezes ele é visto no papel de uma mestre, empresária, escritora ou contadora de histórias.

Por esse motivo foi lançado, em 2017, o catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”. Criado pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras (GIN-UFRJ) em parceria com a editora Malê, a publicação traz uma pesquisa composta por 153 profissionais negras atuantes em variados campos profissionais. Coordenado pela professora Giovana Xavier, é uma referência em termos de registro e mapeamento de dados sobre a inserção de profissionais negras no mercado de trabalho.

Essa história começou quando, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2016, a curadoria pretendia se debruçar sobre a produção literária feminina brasileira, mas não tinha nenhuma autora negra na programação. A justificativa foi que a convidada, a cantora Elza Soares, não pôde aceitar o convite. Enquanto isso, a programação paralela do mesmo ano trouxe nomes como Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves.

Aquilombar-se
A internet tem um papel importante para a geração que rompeu os ciclos familiares de trabalho doméstico no Brasil: visibilidade. Foi a partir dela que muitas histórias e trajetórias foram conhecidas, geraram impacto e inspiraram outras mulheres. Os laços geracionais passaram a ser não só de sangue, mas de reconhecimento.

Reconhecimento não só das lutas, mas das vitórias: aumento da escolaridade, aumento da renda, produções acadêmicas, empreendedorismo, participação política. E é a partir do reconhecimento que as mulheres negras se fortalecem e se aquilombam. Quilombo não é onde nos colocam, é onde queremos estar.

Como escreve Conceição Evaristo no poema “Meu Corpo Igual”:

“Na escuridão da noite

meu corpo igual,

boia lágrimas, oceânico,

crivando buscas

cravando sonhos

aquilombando esperanças

na escuridão da noite.”

 

*Reportagem e Roteiro: ANA PAULA LISBOA

Roteiro e Direção de Vídeo: LUANA PINHEIRO

Coordenação e Edição: CAROLINA OMS

 

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