ODS10

Sem orientação da Sesai, indígenas combatem por conta própria novo coronavírus nos territórios

Por: , da Amazônia Real – 

Medidas como restringir o ingresso em terras indígenas, suspender viagens e eventos foram adotadas pelas organizações. Trânsito de garimpeiros e madeireiros preocupa a Terra Indígena Yanomami, que fica entre os estados de Roraima e Amazonas

Na última quarta-feira (11), a direção da Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que está em curso no mundo uma pandemia do novo vírus Covid-19, uma doença que causa infecção respiratória na população. No entanto, até o momento a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde, não anunciou medidas e nem investimentos para prevenir a disseminação da doença nas terras indígenas do Brasil, onde vivem povos reconhecidos pela saúde pública como vulneráveis e de imunidade baixa.

No colo da mãe, criança yanomami é tratada com problema respiratório por causa da fumaça das queimadas (Foto: Prevfogo/Ibama/2016)

 

A Sesai é a responsável por planejar, coordenar, supervisionar, monitorar e avaliar a implementação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, observados os princípios e as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). A secretaria atende uma população de 760.350 indígenas através de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei).

Na Amazônia Legal, 25 Dsei’s atendem uma população de 433.363 pessoas. Até o momento não há registro de casos suspeitos de coronavírus na população indígena.

Os índios isolados Korubo fizeram contato em setembro de 2015 (Foto: CGIIRC/Funai)

Cientes sobre a precariedade das ações da Sesai, principalmente em regiões remotas e de difícil acesso da Amazônia, onde vivem povos isolados, as organizações mais importantes do Movimento Indígena Nacional tomaram medidas para impedir o avanço do coronavírus nas aldeias. Doenças como malária, tuberculose, gripe, hepatite, sarampo, entre outras, têm alto índice nos territórios devido, por exemplo, à invasão de garimpeiros nas terras indígenas. Por este motivo, muitas lideranças temem que a nova infecção respiratória chegue às comunidades pelo trânsito de não-indígenas.

Em entrevista à agência Amazônia Real, o advogado e membro da coordenação executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinamam Tuxá, expôs preocupação com a falta de orientação da Sesai sobre o novo coronavírus, chamado de Covid- 19.

“Não recebemos nenhum comunicado oficial, por meio de ofício ou documento, do Ministério da Saúde e da Sesai sobre o tema. Mas, de forma extraoficial, fomos orientados a evitar aglomerações como aeroportos, e permanecer dentro dos territórios evitando contato com gente de fora”, disse Dinamam Tuxá.

Como medida de prevenção à doença, a Apib anunciou na última quinta-feira (12) o adiamento do 16º Acampamento Terra Livre (ATL), evento que reúne todos os anos, no mês de abril, milhares de indígenas de várias etnias, em Brasília. O ATL também costuma receber vários participantes de outros países, entre indígenas e membros de organizações aliadas, além de ter cobertura da mídia internacional.

“O objetivo do ATL é buscar a promoção e implementação de direitos, não causar problemas, principalmente na saúde. Precisamos proteger as nossas comunidades”, explicou Dinaman Tuxá à Amazônia Real.

Na última sexta-feira (13), a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) anunciou a suspensão do ingresso de pessoas não-indígenas à terras indígenas do Alto Rio Negro, localizadas entre os municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Izabel do Rio Negro e Barcelos, no noroeste do estado do Amazonas, na fronteira com a Colômbia e Venezuela. A região possui a maior diversidade indígena do país, com 23 etnias diferentes, vivendo em 12 terras indígenas.

Outra medida da Foirn foi suspender as viagens interestaduais e internacionais por tempo indeterminado dos membros da organização. À reportagem, o presidente da Foirn, Marivelton Baré, disse que a medida tem o objetivo de proteger indígenas mais vulneráveis, como os idosos.

“A precaução é a melhor medida que podemos tomar. Não podemos esperar o surgimento dos casos para fazer alguma coisa. Também achamos que é um descaso por parte do governo federal não tomar medidas urgentes para resguardar a saúde dos indígenas”, disse.

Marivelton Baré explica que a decisão da Foirn se aplica a todos os segmentos e grupos sociais. “Profissionais da saúde que estão fora do Alto Rio Negro, outros indígenas e até para Funai, que não pode autorizar a entrada de ninguém sem antes nos comunicar. Vamos analisar caso a caso”, explicou.

Nas aldeias da TI Rio Negro é o kumu (pajé) que trata as doenças, mas não o coronavírus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a contaminação pelo Covid-19 se espalha de maneira semelhante à gripe, pelo ar após a tosse, coriza e a liberação de gotículas de quem está infectado. Os sintomas são: febre, tosse, coriza e dificuldade para respirar. Pessoas com mais de 50 anos de idade estão mais vulneráveis, principalmente os idosos. Quem está com o sistema imunológico debilitado e possui doenças crônicas, como as cardiovasculares, diabetes ou infecções pulmonares também pode adoecer gravemente.

Para o coordenador do Centro de Medicina Indígena Bahserikowi’i, antropólogo João Paulo Barreto, da etnia Tukano, a região do Alto Rio Negro não está preparada para enfrentar o coronavírus. “Primeiro pelas distâncias, depois pelo próprio sistema imunológico dos indígenas. Além disso, o preparo para enfrentar a doença exigiria recursos e profissionais treinados”, diz ele.

“Essa doença (coronavírus) não está entre as concepções de saúde e doença tratadas pelos kumuã. Para eles, é uma doença de não indígena. Para curá-la, teríamos que usar a medicina dos brancos mesmo”, afirma João Paulo Barreto.

É no centro de medicina que muitas pessoas, inclusive a maioria não indígena, procuram atendimento de saúde através do conhecimento tradicional dos Kumuã (pajés), em Manaus. Leia mais aqui.

Dseis não têm estrutura, diz liderança indígena

Populações do Vale do Javari cobram pela assistência no Dsei (Foto: Univaja)

Há muita apreensão entre as lideranças indígenas sobre a situação da Terra Indígena Vale do Javari, no sudoeste do Amazonas, na fronteira com o Peru e Colômbia, onde vivem indígenas isolados e de recente contato. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (Funai) há 16 registros em estudo de índios isolados, sendo que 11 são confirmados. O Vale do Javari tem seis povos contatados (Marubo, Matís, Kanamari e Kulina-Pano) e dois de recente contato (Korubo e Tshohom Djapá).

Em nota, a Apib expressou novamente preocupação às consequências de medidas adotadas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro em relação à saúde indígena e contato com povos isolados por missões evangélicas. “Ressaltamos também, que pandemias como estas alertam para o quanto gravoso pode significar uma política de contato com os povos isolados e de recente contato, em razão dos riscos não só de etnocídio, mas também a um doloso genocídio”, diz a Apib. Leia mais aqui.

Dinamam Tuxá confirmou que os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei´s) não estão estruturados para atender casos de Covid-19. “Sem sombra de dúvidas estamos com muito temor, pois se isso [o coronavírus] se instalar nas terras indígenas vai ser o caos. Os distritos estão completamente enfraquecidos, assim como os polos base [de saúde]. Apesar de ter equipes multidisciplinares locais com médicos e enfermeiros, nós sabemos que muitas estruturas estão precárias e sem insumos para amenizar isso tudo, como álcool em gel e máscaras, para que haja o atendimento adequado das comunidades e fazer o devido acompanhamento dessa pandemia”, disse afirmou.

Trânsito de garimpeiros na TI Yanomami

Povo indígena isolado chamado de Moxihatëtëa, na Terra Indígena Yanomami (Foto: Guilherme Gnipper/ FPEYY/ Funai)

Invadida novamente por milhares de garimpeiros, a Terra Indígena Yanomami,  localizada entre os estado do Amazonas e Roraima, está vulnerável há várias doenças, entre elas, o novo coronavírus. No território vive uma população de mais de 25 mil indígenas da etnia Yanomami e Yekuana. Há também presença de indígenas isolados. A Funai confirma a existência de um povo isolado e estuda a de outros seis cujos vestígios já foram registrados. “Essas populações, além de sujeitas a conflitos com garimpeiros, também estão mais suscetíveis a doenças comuns entre os não-indígenas, podendo uma simples gripe dizimar vários integrantes de um grupo”, diz texto da Funai, publicado em 2019.

“Eles (os garimpeiros) entram e saem da TI Yanomami quando querem, têm pista de pouso e trilha dentro da área e fazem a exploração ilegal de ouro bem perto dos locais onde os indígenas circulam”, disse Junior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho Distrital Indígena (Condisi) Yanomami e Ye’kuana.

Segundo Junior Hekurari, o Distrito Especial Indígena (Dsei) Yanomami já conta com equipes treinadas e intérpretes para esclarecer a população indígena sobre o novo coronavírus. “Estamos transmitindo informações e esclarecimentos sobre a doença e seguindo o protocolo determinado pelo Ministério da Saúde para o coronavírus”, garante.

Fronteiras vulneráveis no Vale do Javari

Os agentes de saúde indígena Sebastião Macário (E) e Sérgio Carvalho de Oliveira(D) na aldeia Massapê, onde vivem os Kanamari, na TI Vale do Javari (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

A Terra Indígena Vale do Javari fica no município de Atalaia do Norte, no sudoeste do Amazonas, onde vivem seis etnias contatadas (duas delas são de recente-contato) e um registro de pelo menos 16 grupos indígenas isolados.

A liderança Yura Marubo, que faz parte da direção da organização União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava), destaca a falta de controle nas fronteiras internacionais para uma possível expansão do Covid-19. “A presença do coronavírus no Vale do Javari seria devastadora. Temos uma fronteira aberta e com circulação livre entre o município de Atalaia do Norte e o Peru, com a Colômbia é mais controlado, mas a circulação existe do mesmo jeito”, afirma Yura, que é estudante do curso de Direito.

Yura Marubo criticou a falta de uma política de saúde indígena do governo federal. “Estão brincando de governar o país. Não temos medidas efetivas e de longo prazo, somente medidas paliativas”, disse o advogado.

Com relação à falta de medidas anunciadas pela Sesai, o líder indígena teme que, de última hora, a secretaria faça ações emergenciais contrárias à realidade dos territórios. “Não sabemos nem como vão abordar questões como o isolamento [quarentena], pois entre os indígenas isso não é comum. É provável que as famílias fujam, aí vai ser pior, pois vão se esconder e ficar sem assistência”, alerta.

Com mais de 20 anos de experiência em educação e saúde indígena, Rosimeire Teles, da etnia Arapaso, de São Gabriel da Cachoeira, avalia que os indígenas de toda a Amazônia estão ameaçados pela disseminação do novo coronavírus.  “Ninguém está preparado para essa doença, nem os municípios e nem as comunidades indígenas. Não se trata de uma questão de dinheiro, mas sim de solução, pois não existe remédio contra ela” disse, aletando:

“É uma doença (coronavírus) desconhecida que está chegando a países ricos e pobres, a todas as cidades e lugares. Pessoas como nós, indígenas, são muito vulneráveis a ela, pois temos a imunidade baixa”, afirmou Rosimeire Teles.

O que dizem as autoridades?

Terra Indígena Ajarani, dos Yanomami, em Roraima (Foto: Mário Vilela/Funai/2014)

Procurada pela Amazônia Real, a Sesai informou, por meio da assessoria de imprensa, que o Ministério da Saúde lançou, na quarta-feira (11), um edital para contratar 5.811 vagas médicos brasileiros e assim reforçar o atendimento à população durante a pandemia do coronavírus.

“Por meio do programa Mais Médicos, de forma emergencial, os profissionais serão distribuídos em 1.864 municípios de todo o país, além de 19 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). Capitais e grandes centros urbanos voltam a fazer parte do programa, que vinha priorizando municípios mais carentes”, diz o texto enviado pelo Ministério da Saúde.

O Comando Militar da Amazônia (CMA) também foi procurado pela reportagem. Em diversas cidades da região é em hospitais militares que as populações indígenas procuram assistência como em Tabatinga, na fronteira do Amazonas com Colômbia e Peru, e São Gabriel da Cachoeira, fronteira com Colômbia e Venezuela. Também são os militares responsáveis pelos deslocamentos em embarcações e aeronaves em ações de emergências em regiões de difícil acesso. Até o fechamento desta reportagem o CMA não respondeu às perguntas da Amazônia Real enviadas por email e por whatsapp.

A reportagem também procurou a Fundação Nacional do Índio (Funai) para saber quais medidas o órgão está adotando para evitar ou prevenir a chegada da doenças a territórios indígenas. Por e-mail, a assessoria de imprensa disse que “a Funai não atua diretamente nesse tipo de atendimento às comunidades indígenas, embora atue em apoio logístico às ações da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão subordinado ao Ministério da Saúde”.

Em seu site, a Funai publicou uma nota informando que o ministro da Justiça, Sérgio Moro, determinou o uso da Força Nacional de Segurança para evitar aglomerações como medida preventiva à propagação do novo coronavírus, “tendo em vista a possibilidade de cerca de 150 indígenas comparecerem ao prédio da Funai esta semana”, isto é, nos dias 12 e 13 de março. A decisão de Moro provocou uma reação de liderança e organizações em defesa dos povos indígenas.

Segundo o Ministério Público Federal (MPF), “a Funai usou o novo coronavírus como desculpa para cercear o direito de manifestação dos indígenas”. “Delegações de diferentes etnias — entre as quais a Pataxó e a Kayapó — estiveram em Brasília nesta semana para se reunir com autoridades e se manifestar em prol de suas causas”, disse à BBC.

A assessoria de imprensa da Funai foi procurada novamente para falar a respeito do uso da Força Nacional para impedir a mobilização e responder de que maneira a medida ajudará a impedir a transmissão da doença, mas não respondeu até o momento. A Funai também não respondeu se voltará a tomar medidas semelhantes em outras eventuais mobilizações de indígenas no prédio da Funai. (Colaborou Elaíze Farias e Kátia Brasil)

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