Além da trajetória como catadora, Aline é mãe de 7 filhos, estudante de Direito, presidente de uma das maiores Centrais de Cooperativas do Brasil – a CENTCOOP (Central de Cooperativas de Trabalho de Materiais Recicláveis do Distrito Federal) –, representante do Movimento Nacional dos Catadores e responsável pela Secretaria Nacional da Mulher e Juventude da Unicatadores. A agenda, já apertada, ainda abre espaço para a participação em palestras e eventos nos quais, além de contar um pouco da sua história, Aline Sousa fala sobre conscientização ambiental, reciclagem e da importância da valorização dos/das profissionais que fazem esse trabalho.
No mês passado, como parte das ações do Mês do Meio ambiente Synergia 2023, Aline foi convidada a participar da roda de conversa “A Geração do Plástico e a Realidade das Mulheres Catadoras”, realizada internamente para colaboradores e colaboradoras da Synergia Socioambiental. Com mediação de Fernanda Carvalho, coordenadora de projetos da Synergia, a roda de conversa contou, também, com a presença de Evandro Nicolau – professor, PHD, pesquisador, artista e atual coordenador da área de Educação e Arte do Museu de Arte Contemporânea da USP.
A roda de conversa rendeu uma incrível interação entre participantes e gerou, ainda, a oportunidade de uma entrevista exclusiva com a Aline Sousa, que você confere a seguir.
Synergia Socioambiental entrevista Aline Sousa
Aline, como as empresas privadas podem ajudar o trabalho de catadores, catadoras e das cooperativas?
Acredito que a conexão e a integração das empresas com o trabalho da reciclagem por meio das cooperativas é um grande negócio, principalmente na questão do cumprimento das metas, que provavelmente estão nos planos de gerenciamento de resíduos dessas instituições. Garantir que a empresa vai fazer a destinação correta dos resíduos gerados, integrando na cadeia os catadores e gerando trabalho e renda – e economizando também com isso (o que eu acredito que seja o olhar de toda a empresa) –, é uma parceria muito bacana.
Inclusive, em Brasília, temos a Lei 5610, de 2016, que é a Lei dos Grandes Geradores de Resíduos, que dita quem são os grandes geradores e o que fazer com os seus resíduos, e traz essa responsabilidade para as empresas. Algumas empresas optaram por fazer o trabalho a partir dessa lei com as Cooperativas, ao invés de simplesmente trazer uma transportadora de resíduos e levar para o aterro sanitário. Elas se preocupam em tentar ir às últimas instâncias, corrigir aquele resíduo e tentar recuperar grande parte dele por meio da cooperativa. Essa é uma alternativa sustentável tanto para a empresa quanto para as cooperativas.
Durante a roda de conversa, você falou sobre a questão de o plástico não estar só ali na destinação final, de que a pessoa precisa ter consciência desde o início, quando ela está no mercado, fazendo a aquisição do produto. Você pode falar mais um pouco sobre isso?
Hoje estamos vivendo a guerra dos plásticos, principalmente quando trazemos um recorte para o plástico de uso único. As pessoas precisam ser orientadas sobre os plásticos que vão fomentar a economia circular, que terão todo um tratamento encadeado para o seu retorno como um novo produto, e sobre os plásticos que são uma problemática ambiental, econômica e social. E aí estamos falando dos plásticos que têm pigmentações, os plásticos envelopados, os plásticos de multicamadas e plásticos flexíveis – como os de chocolates, café, ração – que são plásticos que têm uma problemática de recuperação. Precisamos trabalhar uma comunicação massiva com as pessoas na hora de escolher retirar dessas prateleiras de supermercados as embalagens que vão ser um problema ambiental, social e econômico.
Um dia desses eu fui ao supermercado, e na prateleira dos leites tinha dois atrativos de consumo: tinha o leite da garrafinha e o da caixinha Tetra Pak. O da garrafinha estava bem mais barato do que o de caixinha. Por questões econômicas, eu poderia levar o da garrafinha e deixar o da caixinha. Só que, como eu sou catadora – e nós temos o entendimento do caos que as embalagens de garrafinha podem causar no meio ambiente, e de que o mercado não vai absorver elas – eu paguei um pouquinho mais caro e levei a outra, porque eu sabia que ela iria ser reciclada. É esse tipo de entendimento que precisa chegar até as pessoas, para que elas saibam fazer as escolhas corretas.
Como o/a consumidor/a comum – que nem sempre tem esse contato e conhecimento que você tem, já que está no seu trabalho e faz parte do seu dia a dia – consegue ficar mais atento/a a essas escolhas?
A gente tem uma falha, que é o pouco, ou nenhum, investimento, na parte de orientar a sociedade sobre os resíduos, sobre a grandeza da coleta seletiva. Hoje, o que podemos fazer é levar esse conhecimento até as pessoas, esse conhecimento entrar nas empresas, nas casas, nas escolas – para trazer para as crianças o entendimento, de forma simplificada, para que elas já tenham na veia escolar essa temática incisiva da sustentabilidade – entrar nas universidades. E isso é um investimento para a Educação Ambiental, que é um investimento praticamente zero no país. Temos que evoluir e priorizar essa fase, que é de, em massa, orientar as pessoas, utilizando os principais instrumentos que estão em alta nos países, que são as redes sociais e a internet. Hoje, conseguimos alcançar milhares de pessoas utilizando as redes sociais, é o que acredito que seja o caminho para trazermos essas pessoas.
Mas também tem uma outra iniciativa nossa que acreditamos que consegue entrar hoje no dia a dia das pessoas, para pegar um pedacinho do tempo delas e orientar sobre os resíduos, que é o nosso Projeto dos Ecopontos. Os Ecopontos pontuam pessoas que participam da destinação correta segregada dos resíduos, uma tecnologia que eu conheci na Itália, no passado. São lixeiras acopladas que conversam com um sistema tecnológico que vai pontuar aquela pessoa pela destinação correta, seja em parceria com agência de energia, de água ou quaisquer outras entidades privadas que tenham algo interessante para participar do projeto como parceiro e pontuar essas pessoas, como serviços odontológicos, de línguas ou, no nosso ramo de cooperativa, com os créditos.
Tem um conceito que você usou, e que chamou muita atenção, que é o de “sétimo continente”. Você pode explicar um pouco mais sobre isso?
Existe um “sétimo continente”, ele é feito de plástico e está no oceano. Isso é decorrência do descarte incorreto que é feito pelos países e chega até os oceanos, para o oceano resolver o problema.
Temos parceria com uma instituição seriíssima, que é Oceana. Ela, inclusive, está trabalhando com vários Projetos de Leis no Brasil para chegarmos nos níveis de ações da China, por exemplo, que tem o banimento. A Oceana está trabalhando no PL 2524/2022, que é a questão do “Pacto do Plástico”, e ela traz dentro dos seus históricos, também, o “sétimo continente” de plástico. A gente tenta trabalhar com essas ações, por meio dessa forma integrada.
Li em uma matéria que precisaríamos de algo em torno de 27 navios, e não me lembro a quantidade exata de anos, para conseguir limpar esse “sétimo continente”, que foi parar ali por questões de comportamento humano. Não é um continente da natureza. São ações que a gente precisa corrigir.
O que esse “sétimo continente” está falando para nós é que, do mesmo jeito que o comportamento humano, durante décadas, gerou um continente de plástico, isso pode acontecer com os continentes habitáveis. Nós mesmos estamos nos poluindo, e deixando de ter espaços para a garantia da vida para fomentar espaços que vão tirar a vida, ser um caos da própria vida.
Não tem como não falar do seu momento de entrega da faixa presidencial. Como essa visibilidade que você ganhou tem ajudado no trabalho das cooperativas e colaborado para a causa de uma forma geral? As pessoas e as empresas estão mais interessadas em saber sobre o trabalho dos catadores e catadoras?
Eu já vi um ganho ali, desde o primeiro dia, pelo fato de as pessoas passarem a saber que nós existimos. A ansiedade da visibilidade de todo um trabalho feito nos bastidores pelos catadores, a importância da própria atividade econômica exercida, os impactos positivos gerados com todo esse trabalho na cadeia, até o fim da indústria, e de chegar com o resultado na questão da saúde pública, na questão de garantia da qualidade de vida das pessoas, isso, para mim, já foi uma grande conquista.
Independentemente de ações de política pública e de parcerias com empresas, eu já vejo que isso foi um grande salto, porque, até então, além de invisibilizada, essa categoria, que é uma multidão de pessoas, ainda estava muito marginalizada.
Existe ainda um preconceito não somente sobre nós, enquanto pessoas, mas sobretudo pelo material, pelo trabalho exercido e nas condições em que conseguimos exercer. Tem até um ditado que a gente aprende quando é criança que fala “Ó, cuidado com o homem do saco!”. E o “homem do saco” que as crianças aprendem, nada mais é do que eu, do que os catadores. Só depois que crescemos, e que atuamos nesse setor, é que vamos saber que a gente é aquele “homem do saco” que faz medo, que os pais orientam a ter medo. Vem desde o início a cultura de preconceito.
A subida na rampa foi importante por isso, porque as pessoas falavam “Ué, mas existe catador? O que é isso? O que é que faz?”. Até chegaram a duvidar da nossa própria legitimidade de atuação no setor, da minha própria. O ganho maior foi a visibilidade. As consequências de toda essa visibilidade, eu vejo que, paulatinamente, vamos chegar a resultados bem satisfatórios para o setor, como por exemplo, viver do trabalho, e não sobreviver, trazer dignidade, aquecer essa narrativa sobre a coleta seletiva junto às populações, de que não é apenas um serviço prestado, que se encerra quando o carro do lixo recolhe o resíduo. E, sim, de que ali começa o ciclo do resíduo, quando ele sai da porta. É falarmos mais sobre a temática da sustentabilidade. Afinal de contas, eu estou fazendo parte de um dos principais conselhos desse país, que é o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável. Precisamos, hoje, em parceria com vários setores, trazer essa conexão, e de forma mais como a valorização do trabalho do que meramente uma questão social.
Eu sei que muitos nos veem mais como uma pauta social do que uma pauta econômica. Mas quando falamos de cooperativas e organizações de catadores, não estamos falando só de um espaço de transformação social, estamos falando de um modelo de negócio, de uma instituição que gera milhares de empregos e renda para as pessoas que, por algum motivo, não estão no trabalho formal e acharam na reciclagem um caminho para a sua sobrevivência.
Em relação ao trabalho de catadores e catadoras, o que você espera que seja, agora, um foco do Governo? Existe alguma área específica em que você sinta uma necessidade de mudança para melhorar o trabalho de vocês e a sustentabilidade, como um todo?
A própria questão da nossa inserção dentro do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável já é uma ação importantíssima, fundamental. É preciso mudar primeiro o olhar do gestor público, para que ele entenda todo esse impacto para chegar até a população. Então, trazer o “S” [de sustentabilidade] na pauta econômica já foi um avanço de tamanho imensurável, porque ele vai provocar aqueles 200 membros que compõem o conselho de empresas, da sociedade civil e do próprio governo, para uma mudança não só comportamental, mas uma mudança de cobrança, mudança no aspecto legal. O governo está vindo num ritmo em que ele já acredita nesse novo modelo de economia, que há anos é fomentado, mas que – assim como nós [catadores/as] – também estava invisível, que é a economia circular.
Precisamos trabalhar para um ritmo de economia que seja menos danoso à sociedade, às pessoas e instituições e para nós catadores, porque, no ritmo em que estávamos indo – e ainda estamos engatinhando para banir esse tipo de economia, que é linear – a gente só estava fazendo um trabalho paliativo. E essa questão sustentável não tem que ter um olhar e um tratamento paliativo. Precisamos, de fato, atuar na raiz disso, e a raiz é quando você traz regulamentações e resoluções em que você fiscaliza a questão do desmatamento.
As pessoas acham que o desmatamento é uma questão distante do trabalho da reciclagem, mas não é, porque quando você vai orientar sobre o aspecto ambiental e sobre a reciclagem, você fala sobre a preservação da natureza, sobre a preservação das árvores. Então, quando você fala da contramão disso, que é a utilização da matéria virgem, você está falando de derrubar árvores. E derrubar árvores que são, inclusive, benéficas para a saúde humana, para plantar árvores como o eucalipto, somente para fazer papel e celulose, prejudicando o solo. São cadeias que conversam.
Eu vejo que a nossa retomada hoje, de forma institucional, dentro do Ministério do Meio ambiente – que agora tem um departamento de resíduos sólidos, o que nunca teve – é para trazer mais quente essa pauta e trazer todos os setores envolvidos para a discussão. Isso já é um avanço. A retomada, de forma ampla, do CONAMA [Conselho Nacional do Meio Ambiente], também é um avanço.
Hoje, o que precisamos para ajudar o catador e ver essa mudança é, de fato, a valorização da prestação de serviço remunerado. Não dá para as pessoas acharem que o catador vai sobreviver apenas vendendo material reciclável, porque não vai. O material reciclável não tem valor agregado, ele não é competitivo com a matéria virgem, ele tem vários entraves para conseguir seguir o seu fluxo da cadeia produtiva – questão tributária, questão de logística, de qualidade, o resíduo ainda chega muito contaminado da população para nós – tem todos esses entraves. Não dá para achar que a venda do material vai garantir a sobrevivência daquele grupo, não vai. A gente sobrevive da prestação de serviço. Hoje, o que você está fazendo comigo aqui, nós duas [Aline se refere à entrevistadora da Synergia], estamos trabalhando. Você, aí na sua empresa, e eu aqui na minha. Nós recebemos para isso. Então, nada mais justo do que os catadores, que estão lá reciclando, criando e recuperando, recebam por isso também.
Até então, temos falado bastante da questão do Governo e das leis, mas eu gostaria que você deixasse a sua mensagem final para esse consumidor ou consumidora que vai fazer o descarte. Como desenvolver essa consciência em relação ao consumo dele/a?
Muito bacana. Eu sempre escolho essa pauta para encerrar as minhas participações. Acredito que se não for para pessoas entenderem a importância de reciclar o que ela optou por gerar, se essa separação não se dá por conta dos catadores, da questão econômica – porque quando aterramos resíduo, aterramos dinheiro –, que elas possam parar 1 minuto do seu tempo e pensar que, por trás de todo resíduo, tem uma mãe de família, um pai de família, e às vezes até crianças (pela questão de trabalho infantil em lixões) que precisam desse minuto de separação, de entrega e de responsabilidade social e ambiental do descarte correto, para gerar trabalho e renda para nós.
Se não for por nós, mesmo com tudo isso que eu já falei, de forma bem romântica, que seja pelo seu filho, pelo seu neto, que seja por algum futuro ente da sua família que, porventura, poderá vir a existir, porque estamos falando da garantia da qualidade de vida dessa pessoa. É onde você vai escolher que tipo de ar essa pessoa vai respirar, que tipo de oxigênio vai chegar para ela, em que tipo de ambiente essa pessoa vai poder viver e em quais condições. Se não for por nós, que seja pelos seus próprios familiares.
Não somos adeptos a qualquer alternativa de punição às pessoas por não separarem o lixo, porque, antes de sermos catadores, também somos moradores. Então acreditamos, sim, na conscientização. Acreditamos, sim, que as pessoas têm capacidade de se adequar, de mudar seus atos e escolher, de fato, o consumo de produtos sustentáveis. É uma mudança, isso é uma transição de economia. Sem sombra de dúvidas, quando a população passar a consumir e a escolher de forma correta, e a entender todos esses processos, será uma transição de economia no país. Eu acredito nisso.
*Obs: Publicado no âmbito da parceria de conteúdo entre a Envolverde e a Synergia Socioambiental