ODS14

A cooperação entre golfinhos e pescadores artesanais pelo mundo

Por Elisa Ilha* para o Fauna News – 

pesca cooperativa entre botos-de-Lahille e pescadores artesanais para capturar tainhas, no sul do Brasil, tem sido um tema recorrente na coluna Aquáticos. Essa interação de cooperação, se caracteriza por inúmeras singularidades que estão associadas aos estuários onde ocorrem (em Laguna, Santa Catarina, e na barra do rio Tramandaí, Rio Grande do Sul), aos pescadores artesanais de tarrafa (que através de gerações aprendem e compartilham saberes sobre ela) e aos botos-de-Lahille (que são uma espécie endêmica de águas costeiras e estuarinas do oceano Atlântico Sul Ocidental).

A pesca cooperativa no sul do Brasil é considerada única por ser antiga e ritualizada, sempre iniciada pelos botos e dependente do conhecimento mútuo entre eles e os pescadores. Além disso, os pescadores artesanais de tarrafa reconhecem cada boto pelo seu “jeitão”, dão nomes a eles e identificam as relações de parentesco entre as gerações de botos que pescam junto com eles.

Mas será que, além dessas duas localidades no Brasil, existem outras interações de cooperação entre pescadores artesanais e odontocetos (botos e golfinhos)? Onde e como será que elas ocorrem?

Apesar de existirem há centenas de anos, são poucos os registros de interações de cooperação entre odontocetos selvagens e seres humanos registradas ao longo do mundo. Além do Brasil, existem registros em Mianmar, no sudeste asiático (onde ainda é frequentemente observada); na Mauritânia, no noroeste da África (onde é considerada praticamente extinta); na Índia (onde, na verdade, não pode ser considerada cooperativa); e na Austrália (onde existem apenas registros históricos). Essas interações envolvem diferentes espécies de odontocetos e diferentes artes de pesca artesanais para capturar diferentes presas.

Austrália

Na Austrália, as evidências da pesca cooperativa entre golfinhos e povos originários desse continente são antigas e principalmente associadas a mitologia, lendas e histórias orais desses povos (como os Bundjalung). Elas foram amplamente relatadas por autores no século 19. De acordo com as regiões onde ocorreram e as descrições dos odontocetos, acredita-se que a espécie envolvida nas interações cooperativas era o golfinho-nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus), sendo a tainha (Mugil spp.) a presa mais comumente capturada (existem várias espécies de tainha ao redor do mundo).

Essas interações se davam a partir do posicionamento dos pescadores na água, que observavam o mar, aguardando a presença dos cardumes. Quando os grupos de peixes eram detectados, os pescadores começavam a bater com as suas lanças ou redes na superfície da água ou no solo arenoso para chamar a atenção dos golfinhos. Os golfinhos, por sua vez, começavam a conduzir os cardumes em direção aos pescadores que, então, lançavam suas redes ou lanças. Assim como ocorre no sul do Brasil, esses golfinhos pareciam se beneficiar com a dispersão dos peixes, ocasionada pelo impacto dos instrumentos de pesca na superfície da água, sobre os cardumes.

Ainda na Austrália, existem evidências da cooperação entre povos originários e orcas (Orcinus orca) para capturar baleias-verdadeiras, descritas a partir da perspectiva dos povos originários e da perspectiva dos colonizadores. Essa interação foi documentada entre 1840 e 1930. Nessa “caça cooperativa”, as orcas alertavam os povos originários sobre a presença de baleias-jubarte (Megaptera novaeangliae) durante a temporada migratória, conduzindo-os até elas. Enquanto as orcas assediavam as baleias, os baleeiros artesanais matavam as baleias com seus arpões. Diferente da cooperação com os golfinhos-nariz-de-garrafa, onde a interação era iniciada pelos povos originários, aqui eram as orcas que sinalizavam o início da interação.


Uma das orcas cooperativas, conhecida por Old Tom, nadando ao lado de um bote baleeiro e um filhote de baleia-jubarte entre eles, na década de 1900, em New South Wales, Austrália – Fonte: Charles Eden Wellings/domínio público

A perda dessas interações cooperativas na Austrália é principalmente atribuída a ações diretas dos colonizadores (como a morte deliberada de golfinhos-nariz-de-garrafa por espingardas, assustando-os de maneira que os golfinhos não regressaram mais), assim como pela saída dos povos originários dos territórios tradicionais (quando eles saíram de Twofold Bay, no sul da Austrália, as orcas parecerem ter migrado para a região norte do país).

Mauritânia

Na Mauritânia, no continente africano, populações do povo Imraguen interagiam cooperativamente com os golfinhos-nariz-de-garrafa. Em um registro de vídeo de 1970 (no YouTube), é possível assistir a essa interação. Na presença de cardumes, os pescadores entram na água com suas redes. Ao bater na água com troncos de madeira, eles chamam a atenção dos golfinhos. Os golfinhos criam, então, uma barreira para os cardumes nas águas rasas, conduzindo os peixes para as margens onde estão os pescadores.

As mulheres, também pescadoras, são as responsáveis por realizar todo o processamento da tainha após a captura. Um dos trabalhos que descreveu essa interação, interpreta que o “splash” na água (causado pelos troncos para chamar a atenção dos golfinhos) poderia ser uma tentativa de imitar o som das tainhas que saltam na água.

Entretanto, a interação entre os Imraguen e os golfinhos-nariz-de-garrafa, assim como outros métodos tradicionais de pesca, tem desaparecido devido à pressão exercida pela pesca industrial (principalmente ilegal) nos territórios tradicionais, levando a perda desse conhecimento. Atualmente, os Imraguen são apenas mil pessoas, que vivem em dentro do Parque Nacional Banc d’Arguin, na costa atlântica da Mauritânia.

Índia

Já no sudoeste da Índia, mais recentemente, foi documentado, no estuário de Ashtamudi, uma pesca artesanal de tarrafa que aproveita o padrão de comportamento alimentar do golfinho-corcunda-do-Indo-Pacífico (Sousa chinensis) para avaliar a disponibilidade de peixes. Contudo, diferentemente das demais, essa interação não pode ser entendida como cooperativa.

Isso se dá porque é o movimento dos golfinhos em busca das suas presas que sinaliza para os pescadores qual é o melhor momento para lançarem suas tarrafas. Porém, apesar dos benefícios para os pescadores (como a maior eficiência na pesca e a maior riqueza de presas), não há nenhum indício de que os golfinhos se beneficiem dessa interação.


Pescador lançando a tarrafa em frente ao golfinho-corcunda-do-Indo-Pacífico: a interação entre eles não é entendida como cooperativa – Fonte: Kumar et al. (2012)

Mianmar

Por último, chegamos em Mianmar, no sudeste asiático, onde até hoje se observa de forma ativa e frequente a pesca cooperativa entre pescadores artesanais de tarrafa e uma espécie de golfinho endêmica dessa região, conhecida como golfinho-do-Irrawaddy (Orcaella brevirostris). Essa espécie recebeu o nome do rio Irrawaddy, onde ela aprendeu a pescar de maneira mutuamente benéfica com os pescadores. Atualmente ameaçados de extinção, vivem menos de 70 indivíduos no rio Irrawaddy.

A comunicação entre pescadores e golfinhos é feita através de sinais e foi construída a partir de anos e anos de prática, coordenando a habilidade de arremesso das redes pelos pescadores com a confiança dos golfinhos. Os golfinhos-do-Irrawaddy conduzem os cardumes em direção aos pescadores, que estão posicionados em seus barcos com as tarrafas em mãos. Quando os cardumes estão próximos aos barcos, os golfinhos sinalizam o momento de lançar as tarrafas.

A Área Protegida dos golfinhos-do-Irrawaddy (Myanmar’s Irrawaddy Dolphin Protected Area) é o único lugar onde se pode observar a pesca cooperativa com essa espécie (e você pode assisti-la no YouTube). Essa foi a primeira área aquática protegida do país e abriga sete vilas de pescadores cooperativos, que também ajudam a proteger o golfinho-do-Irrawaddy.


No rio Irrawaddy, a Área Protegida dos golfinhos-do-Irrawaddy é cenário da pesca cooperativa com os pescadores artesanais de tarrafa – Fotos: brumadolphins.com e medium.com

Entretanto, assim como na Mauritânia e no Brasil, em Mianmar também são poucos os pescadores artesanais que mantêm viva a prática da pesca cooperativa nos dias de hoje. Ela é ameaçada por práticas modernas de pesca (como a pesca elétrica ilegal que, por vezes, eletrocuta os golfinhos-do-Irrawaddy) e pelo desenvolvimento econômico na região, dificultando a perpetuação dessa prática tradicional interespecífica ao longo do tempo.

Em todos os locais onde a pesca cooperativa entre pescadores artesanais e odontocetos acontece ou aconteceu, ela fez e faz parte da cultura das comunidades locais. Entre os relatos do leste da Austrália, por exemplo, sabe-se que a relação entre humanos e golfinhos tinha um significado mais profundo para os participantes humanos que apenas retornos econômicos vinculados à pesca. Na Mauritânia, por sua vez, há relatos de que os golfinhos podiam ser entendidos como “uma divindade próxima” e em Mianmar, eles são considerados “como parentes da família”. O afeto e a proteção com os golfinhos são também inúmeras vezes relados no sul do Brasil: “todo mundo deveria saber o que acontece aqui, sobre os botos e da pesca com eles. Saber como eles ajudam o pescador…”, “o boto é tudo para nós aqui na Barra. já salvou muito a comida na panela.”

Portanto, salvaguardar as interações de pesca cooperativa em nosso país e no mundo é salvaguardar patrimônios culturais materiais e imateriais, que refletem a riqueza do contínuo entre natureza e cultura. Garantir o direito aos territórios tradicionais e as territorialidades dos povos e comunidades tradicionais é, assim, uma das formas mais efetivas de assegurar a conservação da biodiversidade e de toda a cultura a ela associada.

* Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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