Por Paulina Chamorro, National Geographic Brasil –
Em entrevista exclusiva, o cientista propagador da Teoria de Gaia fala sobre a importância da cosmovisão indígena e oferece uma solução simples para salvar o planeta das mudanças climáticas: replantar as trilhões de árvores que derrubamos.
Antonio Nobre é um cientista que fala das ciências da terra com amor. Pode parecer estranho ler essas palavras em uma mesma frase, mas, após ouvi-lo, em poucos minutos entendemos que seu ponto de partida é múltiplo e que muito do que a ciência não calcula também entra na equação de Nobre.
Um dos principais propagadores da Teoria de Gaia aplicada, Nobre traduziu os rios voadores para a população brasileira e faz da divulgação científica misturada com saberes tradicionais um ato de amor pela natureza.
Em entrevista exclusiva e inédita realizada em outubro de 2020, o agrônomo, mestre em biologia, doutor em ciências da terra, ex-pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e pesquisador aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais conversa por videoconferência sobre como salvar o planeta.
Há seis anos, Nobre publicou o relatório O Futuro Climático da Amazônia, onde discorreu sobre alguns “segredos da floresta” – como os rios voadores e a bomba biótica, um teoria que ele afirma ter captado os mecanismos que provam que a Terra é um grande organismo vivo. Hoje, junto do grupo Biotic Pump Greening Group, formado por uma equipe multidisciplinar de cientistas, defende que, para curar as doenças que afligem o organismo Terra, devemos ‘reajardinar’ o planeta, plantando de volta as trilhões de árvores que derrubamos ao longo dos séculos.
Tudo está relacionado, e Antonio Nobre avisou há tempos.
Paulina Chamorro, National Geographic: No seu mais recente livro, A vida não é útil, o filósofo, escritor e líder indígena Ailton Krenak fala da Teoria de Gaia e que você é um “continuador dessas especulações sobre diferentes linguagens que o organismo Terra utiliza para se comunicar conosco”. Como as ciências da Terra e a cosmovisão indígena se aproximam para você?
Antonio Nobre: Uma vez eu estava tendo uma conversa com os indígenas, em Manaus, em um evento organizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e outras organizações e a gente estava começando esse diálogo. Os organizadores me pediram que falasse sobre a floresta, fotossíntese, carbono porque estava começando essa coisa de vender carbono e de que floresta vale pela massa dela. Quando terminei a apresentação, os indígenas começaram a se manifestar. Tinha alguns bem jovens e um deles pegou o microfone e disse: ‘Cientista acha que sabe muito, cientista não sabe nada. Cientista acha que vê a Terra com satélite lá de fora, mas ele não entende nada do que vê. Cientista sabe muito menos do que o sábio indígena’.
Quando ele terminou, eu peguei o microfone e falei: ‘Queria dizer o seguinte, 1/16 do sangue que corre na minha veia é de indígena e tem um outro tanto que é de quilombola. Tem uma maior parte que é de branco europeu, como a maior parte dos brasileiros chamados brancos. É uma mistura aqui. Então, eu não gostei de vocês falarem que a gente não sabe nada, porque eu me sinto parente de vocês. Eu estudei ciência, não estudei a ciência indígena, estudei a ciência do branco e eu estou aqui com a disposição da gente conversar, trocar ideias’. E partir daí começamos a conversar, houve um diálogo.
Anos mais tarde, o ISA publicou um livro chamado Manejo do mundo, e eu fiz um capítulo desse livro, começando por contar essa história que eu acabei de contar. Depois, ainda nesse capítulo, eu fui estudar um pouquinho do que outro sábio, o Davi Kopenawa Yanomami, tinha falado e, registrado por Bruce Albert, publicado no livro A queda do céu, que é um livro clássico, importante, da sabedoria yanomami, sobre vários assuntos. Eu peguei o que era atinente ao que eu fazia, a parte de clima, floresta, e fui fazendo uma comparação. Ele falava uma coisa e eu ia buscar o rebatimento daquela coisa fazendo a tradução na ciência. E o que eu vi? Que tudo o que o livro falava era extremamente fundamentado na melhor ciência, sem ele conhecer nada da ciência do branco. Ele conhecia a ciência que ele chama do saber dos espíritos da floresta. E isso daí foi um exercício que me abriu um campo de progressão. Inclusive, algo que mudou minha carreira de cientista, que era puramente cientista duro, das ciências da natureza, mas que está acostumado a fazer de acordo com a liturgia da ciência.
Eu percebi que a ciência, com todos os seus valores – eu não estou desmerecendo em absoluto a ciência – também tem suas coisas não explicáveis, aquilo que não é alcançado. Tem defeitos também, inclusive em relação à vaidade, ao ego. Tem uma espécie de preconceito contra o saber da natureza, como se o saber tivesse que ser arrancado da natureza usando esmeril, martelo, talhadeira. Então, na minha perspectiva, não era uma postura receptiva, de contemplação ou uma postura filosófica. É uma postura de ir lá, colocar instrumento, medir, olhar imagem de satélite e arrancar da natureza um conhecimento e apresentar para o mundo: ‘Olha o que eu descobri’.
Eu percebi isso. Fiz também uma autocrítica e comecei a olhar aquela sabedoria indígena. Uma sabedoria sintética, que é transmitida por fábula, que encanta através da sua poesia porque não é só um saber frio, um saber calculista, é um saber eivado das energias da natureza, eivado da espiritualidade que existe na natureza que eles veem e reverenciam. É uma relação também de filho para mãe, a mãe terra, a mãe natureza. E uma relação de reverência inerente. Ela já é assim, sempre foi. Claro que existem desvios, tem povos indígenas que já não se ligam mais, que foram muito influenciados por essa cultura europeia que veio para cá e que se desenvolveu de forma parcial.
A partir desse momento de reconhecimento da beleza e do poder da simplicidade do conhecimento indígena, eu comecei a reavaliar o meu conhecimento científico pelo viés reducionista, aquele viés cartesiano, racionalista, e perceber também que a sabedoria não é restrita ao intelecto. A sabedoria é uma propriedade do universo. E quando nós – como intelectos ou como seres cognitivos ou conscientes, ou pelo menos que buscam a consciência – começamos a olhar para sabedoria do universo sem colocar o ego na frente, ou seja, como seres contempladores ou contemplativos, a gente percebe a grandiosidade desse saber que já existe na natureza e que, quando nós estudamos e nos inteiramos e absorvemos esse saber, a gente está, na realidade, pegando um empréstimo. Nós estamos tomando algo pré-existente, já configurado por uma inteligência superior e nos apropriando, nos embebendo daquele saber, daquele conhecimento.
N.G.: Estamos vivendo uma última chance do equilibrio de Gaia?
A.N.: As pessoas não se dão conta de estarem existindo em um mundo de complexidade absurda que está enfermo. E como a gente percebe que ele está enfermo? Febre, calor, frio em alguns lugares. Em 2019, teve dois fenômenos: a Besta do Leste (Beast from the East), uma massa de ar polar do polo Norte deslocada para cima da Rússia que depois chegou na Europa e congelou tudo, até nas pirâmides do Egito nevou. E lá no polo norte, que esquentou não sei quantos graus Celsius acima do normal. Está ficando tudo confuso, como fica nosso corpo quando está enfermo. A gente tem febre, a gente começa a ter mal-estar, a digestão não funciona direito, dá dor de cabeça. O planeta Terra é vivo, não há mais nenhuma dúvida em relação a isso e nenhuma controvérsia no mundo científico. Finalmente, a teoria de Gaia hoje começa a ser reconhecida como uma das teorias mais importantes da história, que descobriu o funcionamento do planeta. O planeta é vivo e hoje nós temos os mecanismos que mostram sua fisiologia, a relação dos ecossistemas – a vida na Terra é responsável pela regulação planetária. Como a vida na Terra está sob ataque intenso e destrutivo, é normal esperar a crise climática que vivemos. Se você pegar um ser humano e começar a atacar os fígados, os rins, o coração, chega uma hora que o corpo vai, inicialmente, cair enfermo e, depois, morto.
Então, a possibilidade de matarmos Gaia existe, está em curso. Na realidade, nós estamos matando Gaia porque no momento em que todos os ecossistemas da Terra mostram sinais de falência, aumentam as atividades destrutivas, não só de governos, mas de empresas e indivíduos com motosserra, trator.
“Eu peguei [no livro A Queda do Céu, de Davi Kopenawa Yanomami] o que era atinente ao que eu fazia, a parte de clima, floresta, e fui fazendo uma comparação. Ele falava uma coisa e eu ia buscar o rebatimento daquela coisa fazendo a tradução na ciência. E o que eu vi? Que tudo o que o livro falava era extremamente fundamentado na melhor ciência, sem ele conhecer nada da ciência do branco.” POR ANTONIO NOBRE
Eu queria só fazer uma menção ao fato de que a covid-19 é o primeiro freio de arrumação que Gaia está apresentando para essa humanidade, que ficou perdida na sua própria ilusão de grandeza. A covid-19 bloqueou o planeta. E aí, o que vamos fazer com isso? A primeira coisa que a covid fez foi mostrar que era mentira que não podemos frear o ‘desenvolvimento’ ou a economia. Mentira. A gente freou este ano [2020]. Morreram pessoas? Muitas morreram, muitas ficaram gravemente enfermas, muitas perderam emprego e, não obstante, não acabou a humanidade, nem acabou a civilização. Agora, temos a oportunidade de aprender a lição com a covid sobre o que os povos indígenas, há 500 anos, e os cientistas, há 30 anos, vem berrando e dizendo: ‘Está errado, esta forma de existir na Terra é enferma e ela vai matar a todos, não só os humanos, todos os seres’. Uma grande extinção já está em curso.
Concluindo, a situação do planeta Terra é de um ser enfermo. Não por acaso veio uma enfermidade nos humanos para, de certa forma, produzir uma certa imunidade para a Terra. Então, a covid é como se fosse um anticorpo contra o agente infeccioso. Quem é o agente infeccioso? A mentalidade humana, não o ser humano. Nós somos surgidos da natureza, mas a nossa mentalidade é que nos colocou nessa posição de antagonismo com a vida que nos dá suporte e é, de certa forma, ou, de forma total, uma mentalidade suicida. Se você destrói o que te mantém vivo, você morre. É suicídio se você faz isso por deliberação, que é o que a humanidade tem feito. Por deliberação, está indo lá destruir a floresta Amazônica, destruir o Pantanal. Agora, eu fiquei sabendo, em volta da Ilha de Galápagos, uma frota de barcos chineses vorazes arrasta tudo que tem de vida marítima por lá.
N.G.: Queria que contasse sobre a regulação biótica do ambiente, que é como a Teoria de Gaia passou a ser reconhecida. Que caminhos são esses? E como chegamos aos rios voadores da Amazônia?
A.N.: Victor Gorshkov e Anastassia Makarieva já tinham publicado – e foi assim que eu os conheci – um livro chamado Regulação Biótica do Ambiente em um período em que [a teoria de] Gaia ainda era controversa no meio científico, principalmente pelo rechaço que os neodarwinistas lhe dedicavam desde o começo. Fizeram oposição cerrada, ridicularizaram Gaia. E o James Lovelock e a Lynn Margulis – quando lançaram a teoria de Gaia, hipótese de Gaia na época, nos anos 1970 – lançaram-na como uma ideia, como o Copérnico lançou a ideia de que a Terra girava em volta do Sol e não o Sol em volta da Terra. Mas eles não indicaram muitos mecanismos para seu funcionamento. Mais tarde, o James Lovelock começou a esclarecer alguns mecanismos de como a vida regularia o clima da Terra. Mas, ainda assim, ficou a noção do Copérnico, que Lovelock e Margulis apenas constataram que a Terra era um sistema autorregulado. James Lovelock trabalhou com a Nasa nas primeiras tentativas de mandar sondas para outros planetas, Marte e Vênus. Dessas aventuras ele depreendeu que a Terra é um lugar muito especial, que os nossos dois vizinhos são lugares especiais ao seu modo, mas Vênus é superquente e Marte é superfrio. Não tem condição nenhuma de vida nesses lugares e a Terra é este lugar extraordinário. Então, eles tiveram um momento Eureka: a Terra é viva, é essa a explicação. A Terra é viva. Lá nos anos 1990, Victor Gorshkov e outros autores construíram a teoria da regulação biótica do ambiente, que eu chamo de Gaia 2.0. Por quê? Você sabe, os russos não vão ao banheiro sem escrever uma equação, eles são muito quantitativos. No caso, eram dois físicos de partículas subatômicas. Tudo é equação. É como se eles fossem Newton ou Einstein: eles tinham essa visão quantitativa e teórica da ciência. Então entraram nesse campo de ciência do sistema terrestre, ou ciência de Gaia, e lançaram esse livro. Saiu em 2000, eu comprei o livro, li e falei: ‘Mataram a charada de Gaia!’ Esses cientistas russos vieram e mostraram o que James Lovelock e Lynn Margulis não tinham mostrado: os mecanismos de regulação planetária, com as equações em baixo. Eles demonstraram Gaia – sem se referirem ao termo Gaia, mas chamando de regulação biótica do ambiente.
Naquela época, não se devia falar Gaia se quisesse ser levado a sério. ‘Ah essa pessoa deve ser religiosa, muita perseguição mesmo.’ ‘Herege, está do lado de uma teoria que não tem nenhum fundamento.’ Muitos biólogos fizeram esse lamentável papel, de desmerecimento de Gaia, por incrível que possa parecer, porque biólogo é quem estuda a vida. Como é que pode quem estuda a vida ter sido o pior inimigo da teoria que dizia que a Terra é viva? Foram eles que a descarrilaram por, praticamente, 40 anos. Recentemente, um deles começou a voltar, porque agora já há uma imensidão de evidências informando que Gaia é real. Eles começaram a voltar tardiamente e falar: ‘Não, não, eu acho que Gaia pode mesmo, pode ser darwinizada e não sei o que’. Mas tardiamente. Bom, melhor tarde do que nunca.
Eu entrei em contato com [Victor Gorshkov e Anastassia Makarieva] e depois a gente começou a trabalhar juntos.
Essa interação com os russos progrediu quando eu estava trabalhando no Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), um projeto que juntou gente de três continentes. Cientistas da América Latina – principalmente os brasileiros, mas não só –, América do Norte – com o pessoal via Nasa – e Europa, muitas instituições, universidades. Na realidade, acho que chegou, em algum momento, a mais de mil cientistas. Eu estava trabalhando na Amazônia, estudando tudo aquilo há décadas e, nessa época, montei – junto com o pessoal da Universidade de Edinburgo, da Escócia – a primeira torre de fluxo na Amazônia, em 1995. Depois, em 1998, montei – com o pessoal da Universidade de Wageningen, da Holanda – a primeira torre de longo prazo, que está funcionando até hoje, perto de Manaus, em 1998. E depois ajudei a construir esse projeto. A gente estava observando o que a floresta estava fazendo e eu comecei a fazer essas indagações, os mistérios da Amazônia que eu conto lá no meu relatório de 2014. As indagações eram: Como a floresta subsiste eras geológicas? Essa foi uma ponderação que eu fiz. Como a floresta subsiste aos cataclismos planetários, aos desastres naturais que atingem Gaia, e continua existindo? Ela tem que ter uma capacidade extraordinária. E eu propus isto, que ela teria a capacidade de gerar seu próprio conforto climático, que implicava importar umidade do oceano para gerar chuva.
Nessa época eu tinha lido a Regulação biótica do ambiente, do Gorshkov e da Makarieva, e eu entrei em contato com eles e começamos a colaborar. Isso foi em 2004. Aí, houve um encontro de ideias e a gente interagiu muito em cima do que estávamos aprendendo no projeto LBA. Eles já estavam trabalhando com essa noção de que a floresta controla a atmosfera, e eu trouxe a vivência e os dados da Amazônia e essa hipótese. Dois anos depois, eles apresentaram a teoria da bomba biótica. Basicamente, eles compreenderam a física do fenômeno. Isso era o contrário da crença dos meteorologistas da época, que achavam que tinha floresta na banda equatorial porque chovia na banda equatorial. A teoria da bomba biótica demonstrou que chove na banda equatorial por ação das florestas. Se você tirar a floresta, acaba a chuva.
“A semente é um milagre tecnológico – se você olhar por qualquer ângulo, se você pegar uma semente e estudá-la, entender o que tem dentro de uma semente, como ela funciona. […] Essa tecnologia nós não temos, é a tecnologia de Gaia. ” Por ANTONIO NOBRE
Já tem 16 anos que a gente trabalha em colaboração. Publicamos muitos trabalhos mostrando os mecanismos da bomba biótica de umidade até o ponto de perceber que a forma mais efetiva de lidar com as mudanças climáticas não é somente parar de emitir gases poluentes – CO2, metano, óxido nitroso, todos os gases que ajudam a aquecer o planeta.
A forma necessária, indispensável, para regular o planeta é restaurar os ecossistemas da Terra, porque foram os ecossistemas da Terra que mantiveram e que geraram este ambiente confortável, este clima amigável que temos o privilégio de ter na Terra. Não existe nenhum outro corpo celeste conhecido com condições semelhantes e a única explicação que nós temos aqui é a vida. Então, o que tem que se fazer? Restaurar a vida na Terra, restaurar a vida. Tem um outro nome para isso, em inglês se chama rewilding, wild de selvagem, re de reconstruir o selvagem, reconstruir a natureza. Nos últimos 200 anos, a humanidade aniquilou três trilhões de árvores grandes. Três trilhões, ou seja, metade do que a Terra tinha. Então, você imagina um pinguço cortando metade do fígado fora, o fígado que processa o álcool. Foi o que a gente fez. A gente cortou metade das florestas do mundo e é por isso que o aquecimento global está acelerando. Também por conta da poluição, mas não é só a poluição, o principal é a destruição dos órgãos que mantém o planeta funcional e amigável.
Concluindo: esse processo na ciência é muito lento. Veja o caso de Gaia. Em 1974 saiu o livro do Lovelock e da Lynn Margulis e depois foi controvérsia, controvérsia, controvérsia, e só começou a virar uma unanimidade agora em 2017, em 2018 – mais de 40 anos a gente perdeu no processo. Agora não temos mais esse tempo. Claro que a teoria da bomba biótica também foi controversa, mas não tanto quanto a hipótese de Gaia. Já tem muita gente aceitando, mas tem uma banda de meteorologistas que odeia a teoria, acha que está errada porque mostramos algumas inconsistências na disciplina deles. Está atrasando, não está chegando. Então o que a gente resolveu fazer? O mesmo que a gente fez com os rios voadores. Os rios voadores eram uma coisa meio lateral, que existia desde 1992. Dois americanos, acho que são irmãos, descreveram um aerial river para explicar um fenômeno de uma inundação na Califórnia. Mas, depois, o conceito ficou meio pegando poeira nos escaninhos da ciência. Em 2004, o José Marengo descreveu os jatos de baixos níveis, os monções da América do Sul, que explicavam mais ou menos o transporte de umidade da Amazônia para o centro-sul da América do Sul. Antes disso, em 1979, o professor Enéas Salati já tinha sugerido uma ligação entre a evaporação da floresta Amazônica e as chuvas no Sul, Sudeste do Brasil, mas ficou nisso.
Aí eu encontrei o Gérard Moss, que é aviador, e a Margi Moss, esposa dele. Eles eram empreendedores, tinham feito o projeto Brasil das Águas – pousaram com um hidroavião em todos os rios e lagos do Brasil pegando amostras e mandando para limnólogos. Eu dei a ideia para o Gérard: ‘Por que você não segue os rios de vapor na Amazônia?’. Ele pegou a ideia e depois convidamos cientistas – o professor Salate, o Carlos Nobre, o José Marengo. Fizemos um grupo e montamos o projeto Rios Voadores. Esse projeto trabalhou muito a comunicação. Em 2008, saiu uma reportagem no Fantástico. Em 2009, na BBC, um documentário belíssimo. Em 2010, dei uma palestra no TED e a história foi ficando sexy, atraente, capturou a imaginação das pessoas antes de tornar-se uma unanimidade científica. Mas a ciência veio atrás, ocorreu uma retro-fertilização. De 2012 para frente, saíram artigos na Nature e outras revistas científicas sobre os rios aéreos da Amazônia. Hoje já é um fenômeno consolidado.
N.G.: Sobre o grupo da bomba biótica, como é esse projeto e quanto tempo temos?
A.N.: Formamos o Biotic Pump Greening Group como um grupo internacional de cientistas e sabedores, e a nossa proposta é, ao estudar sistemas e mecanismos de Gaia, entender como é que funciona. E um dos lugares que nós mais nos aprofundamos nesse entendimento foi a Amazônia. Como a América do Sul foi aquinhoada com esse berço esplêndido? Por que a Amazônia é o que é? Por que ela teve a capacidade de sobreviver por mais de 50 milhões de anos aos cataclismos planetários? Nesse período de 50 milhões de anos, a Terra foi impactada por meteoros, passou por aquecimento e resfriamento, teve as glaciações, correntezas oceânicas e atmosféricas mudaram, e a floresta Amazônica aguentou firme. Estudando esse fenômeno de florestas autorreguladas pudemos desenvolver a teoria da bomba biótica.
A teoria da deriva dos continentes demorou décadas décadas para ser demonstrada. Hoje, é matéria básica para qualquer geólogo, não tem um geólogo que não sabe que os continentes se deslocam. Mas demorou 70 anos até ser aceita. Gaia, 40 anos. Para a bomba biótica nós não temos nem mais um ano, já estamos comprometendo a habitabilidade do planeta. Nós estamos em condição terminal de enfermidade de Gaia, por isso as mudanças climáticas. A reação que nós temos que ter é uma reação exponencial, uma reação de multiplicação, além da geométrica. E a humanidade tem capacidade, eu tenho certeza que sim. Sabe por quê? Porque em agosto do ano passado, isso só para dar um exemplo, o povo de um país na África Oriental chamado Etiópia plantou 353 milhões de árvores em 12 horas. É um país que tem 109 milhões de habitantes, ou seja, seria equivalente a cada habitante plantar três mudas de árvore. E a China, nos últimos 25 anos, plantou uma área de floresta equivalente ao que o Brasil destruiu nos últimos 40 anos, 800 mil km².
Claro, esses plantios têm problemas, não vingou tudo, a mesma coisa da Etiópia, várias mudas vão morrer. Mas o fato é, como humanidade podemos conseguir se quisermos. Se a gente se colocar, somos mais de sete bilhões de seres com a capacidade cognitiva, a capacidade de mudar o mundo a ponto de gerar uma nova era geológica, chamada antropoceno. O ser humano, essa cultura que tomou o planeta, essa tal de civilização tecnológica, tem, hoje, a mesma competência que as eras geológicas de milhões de anos do passado tinham para mudar o planeta, só que temos feito no sentido destrutivo. Nós estamos propondo com esse grupo que nós somos capazes de replantar Gaia, usando uma expressão cunhada por uma amiga e ativista, a Suprabha Seshan, da Índia. Ela é do Gurukula Botanical Sanctuary, que fica em Kerala, na parte ocidental da Índia e faz um belo trabalho de resgate de plantas e restauração ecológica de florestas. E ela tem esse lema: ‘Temos que ‘reajardinar’ a biosfera’, gardening back the biosphere. Esse conceito transmite tudo que quer ser e é: uma horticultura ecológica.
Nós precisamos fazer um trabalho enorme de reparação de Gaia, e nos é facultado fazer esse trabalho por conta de uma tecnologia absolutamente fantástica da natureza chamada semente. As pessoas raramente param para se dar conta da semente. Claro, você come no seu cereal todo dia. Mas a semente é um milagre tecnológico – se você olhar por qualquer ângulo, se você pegar uma semente e estudá-la, entender o que tem dentro de uma semente, como ela funciona. Pegaram um sarcófago do Egito com 3 mil anos de idade, tinha sementes dentro, plantaram e germinaram. Imagina um carro parado 3 mil anos, você chegar lá e tentar dar partida no carro. Nada. Na verdade, não encontraremos um carro, vai ser uma ruína metálica irreconhecível depois de 3 mil anos. Pense, uma estrutura que tem alguma coisa viva dentro dela, tem um embrião vivo, durar 3 mil anos e você botar na terra com água, sol e germinar! Eles germinaram sementes, encontradas em um sarcófago, de uma palmeira que estava extinta na natureza. Essa tecnologia nós não temos, é a tecnologia de Gaia. Gaia já passou por muitos cataclismos e não existe um ser vivo que não tenha um propágulo de reprodução. As plantas têm sementes, os fungos têm os esporos, as bactérias têm os cistos, os animais têm ovos e desenvolvimento como nós. E isso está tudo na nossa mão, demonstrado viável. A Etiópia foi lá e plantou 353 milhões de árvores.
Eu fiz uma conta usando a mesma taxa de plantio desse dia verde na Etiópia. Se a humanidade inteira fizer – claro que tem gente que não vai poder plantar, que vive em lugares gelados –, mas fazendo as coisas de maneira generosa, em dois meses nós plantamos um trilhão de árvores no planeta inteiro. Dois meses. Então, por que não estaria ao alcance? Está ao alcance dessa humanidade, dessa geração. E a gente ainda [pode] usar a tecnologia para acelerar, para plantar em lugares que hoje não são apropriados para o plantio de árvores, como os desertos, por exemplo. Com a teoria da bomba biótica, estamos mostrando que é possível porque a natureza fez isso ao longo de milhões de anos. Nós podemos acelerar o processo, a gente sabe como, porque aprendemos nos ecossistemas que hoje funcionam, ou que funcionavam, e estão sendo destruídos agora.
Nós não queremos fazer uma coisa que só nós sabemos. A gente quer compartilhar, a gente quer juntar, a gente quer unir, puxar todas as capacidades e competências, que não são poucas, que tem na Terra, inclusive, e especialmente, as dos indígenas. Porque eles têm uma capacidade de síntese que nos remete à matemática, que nos sugere elegância. A demonstração de um teorema em poucas linhas tende a ser vista pelos matemáticos como uma demonstração elegante. E não é elegante da moda, nem elegante da frivolidade, é elegância genuína do poder da simplicidade, como E=mc² do Einstein. Uma equação simples e que dá conta de processos grandiosos. Isso eu vejo na sabedoria indígena. Toda essa complexidade que eu estou falando aqui, intelectivamente, dos sistemas vivos, dos mecanismos, das maquinarias, os indígenas têm uma competência em sintetizar em uma frase, em uma sabedoria que é potente, é autoexplicativa e que muitas vezes usa conceitos da fábula e, portanto, captura a imaginação das pessoas, o cérebro direito, a narrativa, a contação de história. Ali, embutido naquela semente de sabedoria, tem toda essa complexidade que eu, aqui do meu lado da ciência reducionista, estou cavando na terra que nem um tatu, como disse um dia Davi Kopenawa. Todo esse conhecimento detalhista, minucioso, com microscópio, é empacotado em uma frase pelos sábios indígenas, com sabedoria, com poesia. Não que seja inútil [o conhecimento científico], ao contrário. A gente pode com a ciência esmiuçar, cavar como um tatu, essa potência da simplicidade e da elegância que os indígenas têm ao descrever como funciona Gaia, ao descrever como funciona a vida, não só Gaia. Como funciona também a cultura, uma cultura que não é divorciada da mãe Terra, da mãe corpo, ela é integrada, ela tem uma relação de amizade, não de hostilidade, de guerra, de luta, mas, ao contrário, de amizade, de embrace, de abraçar. E essa conexão é urgente e indispensável porque, se eu pegar toda a nossa sabedoria teórica ou prática ou tecnológica ou de engenharia e tentar resolver o problema da Terra, como muitos estão propondo – geoengenharia, de jogar poeira lá na estratosfera para esfriar o planeta, botar um espelho no espaço, jogar ferro no oceano para fertilizar as algas –, tudo isso é loucura, é distopia pura. Vai levar a gente a destruir mais rápido o resto que ainda sobra da parte viva de Gaia por estar entrando em conflagração ignorante com a complexidade astronômica de funcionamento, de estrutura da mãe Terra.
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