Por Emily Costa e Elaíze Farias para o Amazônia Real –
Além de destruírem a floresta, contaminar os rios, causar conflitos e ameaçar e atacar comunidades, os garimpeiros que exploram ouro ilegalmente na Terra Indígena Yanomami (Roraima e Amazonas), a maior do país, também contribuem para tirar o alimento dos indígenas, que são exímios caçadores. Mas fazem isso não para alimentação e sim por diversão, segundo relato de Julio Ye´kwana, presidente da Associação Wanasseduume Ye´kwana (Seduume), à Amazônia Real, ao comentar o mais recente relatório da Hutukara Associaçao Yanomami (HAY) sobre os impactos do garimpo ilegal no território.
“Não tem mais caça perto das comunidades. Os garimpeiros estão matando anta, porcão [porco-do-mato ou queixada]. Matam só por matar, pra brincar e colocar no rio e deixar boiar. Nós dependemos do mato. Estão matando nossos alimentos, nossas carnes, nossos peixes. Não queremos que essa destruição aconteça”, disse o presidente da associação, que mora em uma comunidade da calha do rio Uraricoera, na região de Palimiú, à reportagem. Ele também afirmou que o rio Uraricoera, o principal do território Yanomami, está “destruído, morto, barrento”. “Não tem mais como pescar”, desabafou.
O relatório “Yanomami sob Ataque”, lançado na segunda-feira (11) pela Hutukara Associação Yanomami, com apoio do Instituto Socioambiental (ISA), mostra que o crime do garimpo ilegal impacta gravemente a principal fonte de alimento dos Yanomami, que é a caça. Os indígenas estão abandonando as roças e agora dependem dos garimpeiros para se alimentar. A relação, no entanto, é de absoluta desigualdade. “Alguns (Yanomami) trabalham como carregadores em troca de pagamento em dinheiro ou ouro para depois comprar nas cantinas dos acampamentos, onde um quilo de arroz ou um frango congelado custam um grama de ouro ou 400 reais”, diz o documento.
Facilitado por uma rede de lavagem de dinheiro que envolve supermercados, postos de gasolina e restaurantes na capital Boa Vista (RR), o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami deu um salto de 46% em 2021, como mostra o relatório produzido pela HAY.
O relatório traz também denúncias de aliciamento de jovens, abusos sexuais de meninas indígenas, contaminação por doenças sexualmente transmissíveis, desativação de postos de saúde e explosão dos casos de malária.
O documento, de 84 páginas, joga luz sobre a rede criminosa e os impactos recentes do garimpo no território de 9,7 milhões de hectares e que abrange os estados do Amazonas e Roraima. Afirma que 16 mil indígenas de 273 das 350 comunidades Yanomami estão diretamente afetados pelo garimpo ilegal, que está longe de ser uma atividade artesanal e de pequena escala, resultando não só em destruição ambiental e sanitária, mas também em abusos físicos e violência. O levantamento se baseia em imagens de satélite, sobrevoos, além de dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai/Ministério da Saúde) e informações levantadas por pesquisadores, entre eles indígenas Yanomami.
Os pesquisadores Yanomami que participaram da elaboração do documento não são identificados por questões de segurança. O documento traz depoimentos fortes, traduzindo a calamidade que vem devastando o território.
“Anteriormente, as mulheres Yanomami não tinham a doença do abdômen. De fato, os homens tampouco estavam doentes, por isso as pessoas estavam com saúde. Portanto, nós Yanomami não conhecíamos essas doenças ‘warasi’ que deixam lesões na pele, quando as mulheres não sofriam de sangramentos. Agora, depois que os garimpeiros catadores de ouro, por causa do veneno da cachaça, começaram a transar com as mulheres, aprendemos o nome desta doença”, diz uma pesquisadora.
A Amazônia Real procurou a Fundação Nacional do Índio (Funai) nesta terça-feira (12) para comentar sobre o relatório, mas não teve retorno. Ao portal G1, a Funai enviou uma nota em que afirma desconhecer o estudo realizado pela Hutukara e atribui o aumento do garimpo na Terra Yanomami à presença de garimpeiros da Venezuela na região e ao “fluxo migratório decorrente da crise humanitária”.
O relatório da Hutukara foi lançado no mesmo dia em que indígenas de mais de 200 povos, entre eles os Yanomami, os Kayapó e os Munduruku – os três mais afetados pelo garimpo ilegal no Brasil – marcharam na capital federal contra o avanço dessa atividade sobre os territórios indígenas durante o Acampamento Terrra Livre, que acontece em Brasília.
Os indígenas jogaram lama, tinta vermelha e deixaram placas que lembravam barras de ouro em frente ao Ministério de Minas e Energias (MME), cuja competência envolve a exploração, a produção e o comércio de minérios no Brasil.
“Em 2021 houve um incremento anual de 1.038 hectares, atingindo um total acumulado de 3.272 hectares (na Terra Yanomami). Esse é o maior crescimento observado desde que iniciamos o nosso monitoramento em 2018, e, possivelmente, a maior taxa anual desde a demarcação da TI, em 1992”, destaca o relatório. “De 2018 a 2021, a área impactada pelo garimpo mais que dobrou, saindo de 1,2 mil hectares para 3,2 mil de área devastada”.
Mineração aprovada vai piorar
Garimpo no rio Uraricoera, Terra Indígena Yanomami (Foto: Bruno Kelly/HAY
A Amazônia Real entrevistou um dos pesquisadores responsáveis pelo levantamento da Hutukara. Ele destacou que, além de mapear as atividades de garimpo em campo, o relatório também pontua a necessidade de ações mais efetivas para o combate à atividade ilegal, como maior fiscalização na venda de combustíveis de aeronaves, além de ações coordenadas e “vontade política”. “Esse discurso de que ações como essas são enxugar gelo só favorece quem não quer resolver o problema”, disse o pesquisador que, por questão de segurança, terá a identidade preservada.
“A gente faz denúncia, os policiais entram, mas não conseguem retirar os garimpeiros Eles não prendem e nem apreendem. Nós que moramos nas comunidades sabemos o que acontece. Não queremos mais esse governo Bolsonaro. Depois que ele assumiu, aumentou mais o garimpo. Muito, muito, muito. Ele acabou com as instituições, principalmente a Funai, que virou inimiga dos povos indígenas”, disse o presidente da Associação Wanasseduume Ye´kwana, Júlio Ye´kwana, à Amazônia Real.
A região de Palimiú, onde Julio mora, é onde aconteceram no ano passado vários episódios de ataques aos Yanomami por garimpeiros ligados ao PCC. Julio Ye´kwana lembra que, apesar de os policiais irem até a região, nada mudou.
Para a liderança, o que acontece na Terra Indígena Yanomami, com a atividade do garimpo funcionando ilegalmente e sem punição, pode se estender a outros territórios indígenas caso a mineração seja aprovada.
“Isso (mineração) vai ser muito a sério, vai matar muita gente. Se o PL 191 for aprovado, vão acontecer muitos problemas. A população das comunidades vai morrer de fome. Vai ter doenças, câncer. Dizem que se for legalizada a mineração vai trazer benefício. Isso é mentira, estão nos enganando. Está acontecendo isso agora em nosso território, com várias doenças que afetam o desenvolvimento das crianças. Imagina se a mineração for aprovada”, afirmou a liderança.
Abusos sexuais e malária
Canteiro de garimpo no Parima, Terra Indígena Yanomami (Foto: Bruno Kelly/HAY)
O relatório também revela depoimentos de indígenas sobre o assédio de garimpeiros a mulheres e meninas Yanomami e o contato cada vez maior dos indígenas com doenças sexualmente transmissíveis levadas pelos não-indígenas. Traz também o caso de três garotas de aproximadamente 13 anos que morreram em 2020 após sofrerem abusos sexuais por parte dos garimpeiros.
Segundo os relatos, “são vários os casos de estupros e assédio de crianças e mulheres” no território indígena por parte dos garimpeiros. “Em um deles, conta-se de um ‘casamento’ arranjado de uma adolescente Yanomami com um garimpeiro mediante a promessa de pagamento de mercadoria, que nunca foi cumprida”, afirma o documento.
Os registros crescentes de malária entre os Yanomami também aparecem no relatório, que detalha esse avanço, com base em dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Em relação à malária, segundo o documento, a região mais afetada é a de Palimiú, onde foram registrados em 2020 um total de 1.800 casos, duas vezes o número de moradores, o que quer dizer que os 900 Yanomami dessa região enfrentaram quase duas malárias cada um.
O aliciamento dos jovens indígenas pelos garimpeiros intensificou em 2021, segundo o relatório. Isso tem sido mais comum na região das comunidades do Xitei. Segundo denúncia da Hutukara Associação Yanomami, o processo de aliciamento começa nas cidades de Boa Vista e Mucajaí, quando os jovens são abordados pelos garimpeiros oferecendo roupas, material de higiene e ferramentas.
“Os jovens que fazem esta intermediação são frequentemente presenteados com armas e assim passam a defender os interesses dos invasores contra o restante da comunidade que se opõe à atividade”, diz o relatório.
Julio Ye´kwana disse à Amazônia Real que os garimpeiros se aproveitam do pouco conhecimento dos jovens e os enganam facilmente. “Mas esse pessoal que é a favor é uma minoria. Pouca gente está envolvida no garimpo. São principalmente os jovens. Eles são fáceis de ser manipulados. Estão sendo aliciados, enganados pelos garimpeiros”.
Internet liberada e crime organizado
Aeronave e Helicópteros na pista do Jeremias, Homoxi, Terra Indígena Yanomami (Foto: Bruno Kelly/HAY)
Segundo o relatório, o acesso à internet via satélite e rádio permite a comunicação em tempo real nos garimpos. A conexão vem a partir de antenas instaladas por empresas de Boa Vista que anunciam esse tipo de serviço livremente em redes sociais. Assim, é via WhatsApp que os invasores conseguem se comunicar tanto entre as zonas de garimpo como fazer contato com pessoas nas cidades. Dessa forma, recebem informações sobre operações antes mesmo das equipes policiais chegarem a campo.
Em junho do ano passado, a Amazônia Real revelou como os garimpeiros sabiam dias antes sobre a operação Omama, realizada pelos órgãos ambientais, Exército e pela Polícia Federal em Roraima. “Atenção, operação. Três dias de operação aí galera: terça, quarta e quinta. Vamos ficar [inaudível]. (…). Paredão, Boqueirão. Todos os becos e vielas”, disse um líder do garimpo, em áudio que circulou três dias antes da operação ser iniciada.
Esse tipo de vazamento é recorrente, diz o relatório. “Diariamente nos grupos de garimpeiros circulam mensagens com avisos sobre a movimentação dos órgãos de proteção, tais como: ‘helicóptero do Exército circula o Uraricoera’; ‘carro do Ibama passou pela rodovia 332’”, denuncia o relatório.
“A recorrência do vazamento de informações sobre operações contra o garimpo indica a existência de conexões com pessoas dentro dos órgãos de fiscalização que têm acesso a informações confidenciais sobre os planos de ação policial. Como resultado, a efetividade das operações é comprometida e a organização do garimpo esbanja resiliência”.
O relatório da Hutukara também traz outras denúncias já reportadas pela Amazônia Real em 2021, como a presença de garimpeiros ligados à facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), que domina o tráfico de drogas em Roraima e foi responsável pelos ataques armados na região de Palimiú – um dos suspeitos, ligado ao PCC, foi preso pela Polícia Federal em agosto do ano passado.
Também consta no relatório o episódio da morte de um Yanomami atropelado por um avião do garimpo na pista do Jeremias, na região de Homoxi – já dominada pelos garimpeiros. O documento relata que familiares das crianças mortas no acidente na aldeia Macuxi Yano, em outubro de 2001, com uma draga de garimpo, ficaram tão devastadas que abandonaram a região e passaram a morar em barracos de lona à margem de um rio quase morto, situação que foi confirmada durante sobrevoo realizado no início deste ano. Até o momento ninguém foi responsabilizado pelo acidente.
O levantamento atribui a aceleração no avanço do garimpo a seis razões principais: o aumento do preço do ouro no mercado internacional, a falha na regulação do mercado do minério no país, a fragilização dos órgãos ambientais e de proteção aos indígenas e às políticas do governo Bolsonaro, além da crise econômica e de inovações técnicas nos garimpos, como o acesso à internet.
Sobre o envolvimento de empresários de Boa Vista com a lavagem de dinheiro do garimpo, o relatório cita o caso de Rodrigo Martins de Mello, processado pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2021. Ele, parentes e uma rede de ‘laranjas’, que movimentaram R$ 425 milhões em dois anos, foram alvo de uma operação em outubro passado, cuja investigação apontou que o grupo utilizava uma empresa de táxi aéreo e outra de poços artesianos para o transporte de insumos e mão de obra para as áreas de garimpos. O empresário foi citado pela investigação “Ouro do Sangue Yanomami”, publicada pela Amazônia Real e Repórter Brasil, como um dos envolvidos com a mineração ilegal no território indígena.
Após a divulgação do relatório, o Ministério Público Federal em Roraima apresentou um novo pedido à Justiça para obrigar a retomada de operações policiais na região, com a permanência de equipes na terra indígena até a retirada total dos 20 mil garimpeiros que operam na região.
O MPF também afirmou que entre agosto de 2020 e fevereiro de 2022 foram registrados 3.059 alertas de novos pontos de extração mineral na região que compreende a Terra Indígena Yanomami, afetando uma área de 10,86 km², ao passo que as operações executadas em 2021 pelo Governo Federal não foram sequer capazes de conter o avanço da atividade ilegal no território.
O órgão ainda classificou a situação da terra indígena como uma “crise humanitária” e afirmou que o relatório da Hutukara traz à tona pelo menos três crimes contra a dignidade sexual de vulneráveis, crime de trabalho escravo e disseminação de bebida alcoólica entre povos indígenas de recente contato. “As
comunidades indígenas estão cada vez mais próximas do garimpo e não podem usufruir de seu habitat tradicional, já completamente degradado pelo desmatamento e poluição dos rios”.
Corrutela de garimpo no rio Uraricoera, Terra Indígena Yanomami (Foto: Bruno Kelly/HAY)
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