Por Lúcio Flávio Pinto, Amazônia Real –
Oito pessoas – físicas e jurídicas – venderam, por 10 bilhões de reais (R$ 14 bilhões em valor atualizado), 37 toneladas de ouro extraído ilegalmente na Amazônia Legal. Por ser uma lavra predatória, a extração causou prejuízos socioambientais de mais de 27 bilhões de reais, segundo cálculo da Polícia Federal. Ontem, a PF realizou operação para cumprir 17 mandados de busca e apreensão em Itaituba e Novo Progresso, no Pará, e em Cuiabá, no Mato Grosso.
A Justiça Federal determinou ainda o sequestro ou bloqueio de bens no valor mais de R$ 290 milhões, além da suspensão de atividades ligadas à mineração das pessoas presas e de uma empresa que adquiriu bilhões de reais em ouro da Amazônia nos últimos anos.
Não foi difícil para a polícia cumprir os mandados judiciais, três meses depois de iniciar as investigações. O processo de extração e comercialização de volumes fantásticos de ouro na Amazônia é muito conhecido. O ouro ilegal, lavrado na bacia do rio Tapajós desde 1958, é “esquentado” com Permissões de Lavra Garimpeira, obtidas por cooperativas, a maioria delas de fachada.
Só nesta semana, a Cooperativa dos Garimpeiros e Mineradores do Brasil (Coogamibra) renovou a licença de operação, expedida no ano passado, para extração e beneficiamento de minério de ouro em Altamira e Novo Progresso. A Cooperativa Mista de Exploração Mineral e Extrativismo Vegetal de Novo Progresso também renovou sua licença para Altamira.
Várias cooperativas como essas, que conseguem renovar com facilidade suas licenças nas administrações municipais, e empresas, incluindo Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários estão sob investigação. Foram elas que declararam a aquisição de cerca de 37 toneladas de ouro entre janeiro de 2021 e setembro de 2023.
São números impressionantes, que indicam a existência de uma ampla cadeia de intermediários entre a extração primária do minério e seu comprador final, que pode legalizar a origem ilícita da garimpagem ou manter a sua circulação pelo mercado ilegal, no qual já atuam com desenvoltura as organizações criminosas das grandes cidades.
O deslinde dessa cadeia é difícil, mesmo quando as operações policiais chegam ao seu termo na justiça. Um exemplo claro dessa complexidade é a decisão da decisão do final de 2019 do Tribunal Regional Federal da 1ª região, com sede em Brasília, conforme a nota então distribuída pela sua assessoria de comunicação social:
Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com sede em Brasília (grifei os trechos mais importantes):
Devido à decisão que indeferiu o pedido de restituição de aproximadamente 3,7 kg de ouro apreendido pela Polícia Federal em cumprimento a mandado de busca e apreensão, uma distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários recorreu ao TRF 1ª Região a fim de garantir a restituição do bem.
Sustentando ser a proprietária do minério, a empresa afirma que o ouro foi adquirido de forma legal, observando as normas que regulam o mercado, conforme mostram as notas fiscais, e que o objeto da investigação é a conduta de um de seus mandatários como pessoa física, não se confundindo com as atividades de pessoa jurídica da instituição.
Em primeira instância, o juiz federal Marcel Queiroz Linhares, da Subseção Judiciária de Sinop/MT, negou o pedido de restituição porque, apesar de os comprovantes fiscais demonstrarem que a origem do bem é lícita, o caso exigia o princípio da cautela em razão dos indícios de que o minério poderia ter sido objeto de “esquentamento” por parte dos investigados, tornando o ouro de interesse ao processo.
Posteriormente, o Ministério Público Federal (MPF) se manifestou a favor do arquivamento do inquérito policial em função da ausência de provas suficientes para ajuizar uma ação penal, argumentando não ter “suporte probatório apto a comprovar que os investigados tinham ciência das irregularidades cometidas pelos Postos de Compra de Ouro, uma vez que a empresa apenas recebia o minério e a documentação fraudulenta emitida de forma ilegal pelos Postos”.
Ao analisar o caso, o relator, desembargador federal Cândido Ribeiro, concluiu haver a provável boa-fé da distribuidora, com base na ausência de provas da autoria do delito. “Deve-se considerar, num raciocínio a fortiori, que mesmo na hipótese de condenação, com a imposição de perda do bem apreendido em favor da União, encontra-se expressamente ressalvado, no inciso II do artigo 91 do Código Penal, o direito do lesado ou do terceiro de boa-fé, pelo que maior razão terá tal ressalva quando sequer existe investigação ou feito em curso, como na hipótese sob análise”, ressaltou o magistrado.
Nesse contexto, a 4ª Turma do TRF1 entendeu que mesmo que o ouro tenha, aparentemente, origem ilícita, não se justifica a manutenção da apreensão do bem no âmbito criminal, com prejuízo a terceiro que o adquiriu de boa-fé.
Com essas considerações, o Colegiado, acompanhando o voto do relator, deu provimento à apelação da empresa para garantir ao proprietário a restituição do ouro apreendido.
A imagem de destaque é de autoria de Bruno Kelly (Amazônia Real) e mostra ouro ilegal no garimpo do rio Madeira, Rondônia em 2023.
Lúcio Flávio Pinto
Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com