por Samyra Crespo* –
Meados dos anos 90. Quem era das ‘ciências humanas” não se misturava com a turma das “ciências da natureza”. A sociologia não conversava com a biologia. A última vez que tentaram deu num tal de darwinismo social, Deus me livre! Era bem assim. Cada um no seu quadrado. Corta.
O pano de fundo era a redemocratização do País. As universidades à míngua.
A Fundação Ford financiava o maior encontro anual de cientistas sociais do Brasil: ANPOCS – que vem a ser a Associação Nacional de Pós Graduação em Ciências Sociais. A nata da ciência social brasileira. Não havia internet, nem teleconferência e todos viajavam horas para São Pedro, Poços de Caldas ou Caxambu, para ver /ouvir os maiores intelectuais brasileiros em conferências, palestras e discussões de grupos. Balneários e estações de água decadentes, estadia barata. A maioria viajava se ônibus ou de carona.
Nessa terceira categoria – grupos – se organizavam as turmas de esquerda, direita, volver e também as panelinhas das universidades mais prestigiadas. Elas determinavam a agenda. Antes de se tornar um grupo temático permanente, era possível organizar grupos temáticos transitórios – com a função de oxigenar e trazer novos temas.
Eu como doutoranda, e depois com meus plenos poderes acadêmicos reconhecidos, frequentava o grupo permanente Religião e Sociedade. Por uma razão prática: minha tese foi sobre a democratização das escolas católicas no Brasil e a relação programática desse projeto com a teologia da libertação. Mas já estava com um pé em outras águas. Ouvi falar que um novo grupo ia se apresentar – o nome? Ecologia e Sociedade. Pedi ao meu amigo Eduardo Viola que me convidasse.
Caxambu, cidade serrana de Minas onde a ANPOCS aconteceu por anos seguidos.
Lá fui animada pela minha recente pesquisa “O que os brasileiros pensam da Ecologia “. Note-se, a palavra meio ambiente nem era universal ainda para nomear os ativistas ambientais e aqueles primórdios de uma ciência social brasileira ocupada com a relação Ambiente&Sociedade.
Ali encontrei uns 12 gatos pingados. Os bambas da ANPOCS os consideravam todos uns ETs.
Lembro bem do grupo: José Augusto Pádua do Rio, Paulo Vieira, Eduardo Viola, Hector Leis e Julia Guivant de Florianópolis, Leila e Lúcia Ferreira – as irmãs – de Campinas, Clóvis Cavalcanti de Recife, Isabel Carvalho e outros que foram chegando aos poucos como Pedro Roberto Jacobi, Roberto Pereira Guimarães, não dá para falar de todos que foram se agregando.
Digamos que os grandões da Academia não davam a mínima para nós e negavam que o tema da sustentabilidade tivesse qualquer corpo teórico de respeito. Quando muito, era uma ideologia política. Quanto às ciências ambientais eram estas – a maioria – ciências da natureza e seu lugar não era ali.
Meio Ambiente podia ser tratado no âmbito da geografia (física e humana) e o livro de Toynbee (historiador) – A Humanidade e a Mãe Terra, traduzido desde os anos 70 – sequer constava da bibliografia de universidades como USP, PUCs, federais, etc.
Esta falta de entendimento de como crescia todo um novo campo – interdisciplinar, de conhecimento e de como o Paradigma Ecológico iria sedimentar robustos estudos nas ciências sociais – levou a Coordenação da ANPOCS a cortar o grupo de discussão. A alegação era a de que “havia grupos demais”, muita dispersão e que isto encarecia os encontros.
O que fazer?
Foi então que o core-group do tema Ecologia e Sociedade resolveu investir num caminho solo: fazer seu próprio encontro nacional. Com seus próprios meios promover a interdisciplinaridade e a transversalidade do novo campo.
Reunir a fauna, a flora e todos os “esquisitos” que desejavam construir essa nova grade de disciplinas no Brasil. Muito trabalho, sem lenço e sem documento. Sem financiador a princípio.
Surgiu então a ANPPAS- Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Sociedade e Meio Ambiente. O PROCAM da USP, só para citar um exemplo coroado, nota máxima na avaliação das pós graduações da CAPES – é filhote dessa história.
História recente, com menos de 25 anos – e narrativa de todo um esforço intelectual para compreender e contribuir – com independência – para o conhecimento, mas não só, das relações complexas entre nós, nosso ambiente e a política. Só para lembrar: todos os governos e a maioria das ONGs recorrem ao trabalho das universidades. Algumas mantêm centros de excelência em temas importantes como mudanças do clima e outras especialidades.
Lembro-me bem do I Encontro Nacional em Campinas, após superarmos uma disputa (normal) pela coordenação, entre o pessoal do Rio, Campinas e Florianópolis. Decidiu-se pela rotatividade. Democrático e salutar para as amizades. Foi emocionante ver jovens cientistas, ativistas e os primeiros doutorandos do Brasil nas novas e então apenas descortinadas disciplinas deste campo que naquele momento se autoafirmava no cenário acadêmico brasileiro. Sob a batuta inicial de Pedro Roberto Jacobi e das irmãs Ferreira o sonho se tornou realidade.
Vida longa marcou a ANPPAS e sua determinante influência na proliferação de cursos sobre Meio Ambiente e Sociedade nas universidades brasileiras.
Esta memória, que prezo e celebro aqui, é para lembrar que fizemos e continuamos a fazer a nossa parte.
Em um momento em que a cultura e as universidades – e também o meio ambiente – se acham tão ameaçados, quero aqui deixar esse testemunho de um trabalho apaixonado, dedicado e rigoroso de toda uma geração. Ainda na ativa, sempre no bom combate. (#Envolverde)
Este texto faz parte da série sobre o ambientalismo brasileiro que venho publicando, desde abril, no site Envolverde/Carta Capital
Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”.