Por Unicamp –
Onde estão o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips? Esta pergunta, feita desde o dia 5 de junho de 2022, é também um guarda-chuva para diversos outros questionamentos que demandam respostas do Estado brasileiro. Povos indígenas do Vale do Javari, região onde desapareceram Bruno e Dom, cobraram, durante manifestação na manhã desta segunda-feira (13), em Atalaia do Norte (AM), ações para a proteção da Terra Indígena (TI), das suas populações e dos ativistas parceiros.
“Estamos nos manifestando porque estamos tristes. Estamos protestando pelo desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips. Eles protegiam nosso território. Pedimos que o governo nos garanta proteção. Somos constantemente ameaçados em nossas terras”, disse a liderança do povo matis, Binã Wassá Matins, da Aldeia Paraíso.
Na região de Atalaia do Norte, cidade de cerca de 20 mil habitantes, localizada no extremo oeste amazonense, indigenistas e indígenas se mobilizam nas buscas e na cobrança ao Estado, oscilando entre a esperança de uma notícia positiva e a desesperança.
Eles ainda vivenciam a dor pelo assassinato, sem resposta, do servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai) Maxciel dos Santos, em 2019, e temem que crime semelhante tenha ocorrido com Dom e Bruno. “Hoje podem ter sido eles, ontem foi Maxciel, e amanhã, quem será? Nossos defensores não podem ser assassinados”, disse a cacica Pemem Mayurura.
Críticas ao governo de Jair Bolsonaro, ao desmonte e ao aparelhamento da Funai também deram o tom às falas das lideranças, que cobraram ainda maior fiscalização ambiental.
A base da Funai no Javari conta apenas com cerca de 10 servidores, número insuficiente para a fiscalização da Terra Indígena, que é a segunda do país em extensão, com uma área quase do tamanho de Portugal. Para agravar o quadro, a base do Ibama da região, que funcionava em Tabatinga, foi desativada em 2018.
A região, que foi demarcada em 2001, concentra uma população de cerca de 6,5 mil indígenas de 26 etnias. Em torno de 15 são grupos de indígenas isolados ou em isolamento voluntário. “O Vale Javari grita, pede socorro ao mundo todo. Esse Brasil, essa Amazônia, essa Terra Índigena tem que ser protegida e preservada”, afirma a liderança Kurá Kanamari.
Manifestação reuniu hoje, em Atalaia do Norte, representantes de cinco etnias indígenas (Foto: Antonio Scarpinetti)
Membros da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), organização responsável pela denúncia do desaparecimento de Dom e Bruno, repudiaram a tentativa da direção da Funai de criminalizar o movimento indígena. No dia 11, a Funai acionou o Ministério Público Federal contra a Univaja, alegando que Dom e Bruno entraram em contato com povos indígenas sem autorização.
“Não podemos contar com a Funai. São muitos os servidores que querem se empenhar, que querem exercer sua função, mas não há apoio efetivo da coordenação do órgão”, afirma Manoel Chorimpa, membro da Univaja do povo Marubo.
Chorinpa vincula a nomeação de coordenadores da Funai, pelo governo Bolsonaro, ao fato de não ter havido manifestação de solidariedade ao desaparecimento de um servidor do quadro de carreira do órgão.
Negligência e escalada de violações
O acesso principal para chegar a Atalaia do Norte requer cruzar Tabatinga e Benjamin Constant, em um percurso fluvial e terrestre. Os três municípios estão em uma zona de fronteira com a Colômbia e com o Peru.
A região sofre com falta de acesso a serviços básicos e com a movimentação do narcotráfico, mas também é um local onde se encontram rios e nações, o que resulta em peculiaridades idiomáticas e culturais.
No território, os povos indígenas vêm presenciando uma escalada de invasões e violência. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aumentou em 9,2% a violência letal, entre 2018 e 2020, em municípios de floresta do Norte do país. “Ultimamente, a política de proteção do governo brasileiro tem deixado a desejar e a consequência é o aumento do número de invasões”, assinala Manoel Chorimpa.
“O Estado deixou de dar assistência. O desaparecimento do nosso parceiro indigenista e de um jornalista, que também é nosso parceiro e apaixonado pela Amazônia, ocorre neste contexto”, continua.
Chorimpa menciona as ameaças por parte de pescadores ilegais e garimpeiros. “As ameaças têm sido sistemáticas e têm chegado às áreas dos indígenas isolados e de recente contato que habitam a região. A atuação do Estado é praticamente inexistente”.
A atuação de Bruno no desmonte das ações ilegais de garimpo, é um das razões das ameaças, analisa o membro da Unijava. “Ele organizava operações contra balsas de garimpo, deixando revoltados os responsáveis. O governo federal, que por meio do Ibama, da Polícia Federal, do Exército, devia fazer algo, não faz nada. Sobra para nós, que nascemos na região, vivemos aqui e vamos morrer aqui. Essa é a nossa realidade”.
Garimpo, desmatamento e madeireiros
Os povos indígenas do Javari elaboraram uma carta pontuando as denúncias que já foram realizadas sobre as invasões ao território. “De 2020 a 2022, nós encaminhamos dezenas de ofícios para diferentes órgãos públicos[…], denunciamos a presença de balsas de garimpo nos rios Jutaí e Curuema, onde habitam nossos parentes Tsohom-dyapa, de recente contato, e os isolados korubo. Denunciamos o desmatamento na região do município de Ipixiuna, dentro do igarapé Limão. Denunciamos o desmatamento feito pelos madeireiros”, diz trecho do documento.
A carta também denuncia o assédio de pescadores e caçadores ilegais na tentativa de cooptar os povos indígenas e pede providências do Poder Público em relação à situação.
O documento foi lido na manifestação, durante a qual as etnias também frisaram que irão resistir à tentativa do governo e dos grupos que tentam se apropriar dos recursos da TI do Vale do Javari.
“Nós estamos chorando por conta desse governo. Quando assumiram, falaram que não iam demarcar um centímetro de terra para os indígenas, e cumpriram a ameaça. O governo não faz nada contra fazendeiros e o agronegócio que querem invadir a nossa terra. Nós vamos resistir. Enquanto matam um, nasce outro. Nós somos mulheres, geramos frutos”, disse Silvana Marubo.
O desaparecimento de Bruno e Dom
Bruno e Dom desapareceram no dia 5 de junho, durante o percurso entre a comunidade ribeirinha São Rafael e a cidade de Atalaia do Norte. Bruno é servidor da Funai e havia sido afastado pelo governo Bolsonaro. Atualmente, trabalhava em parceria com a Univaja. Vinha sofrendo ameaças.
Semanas antes do desaparecimento, lideranças indígenas da Unijava se reuniram com o Ministério Público Federal para pedir providências quanto às intimidações, mas não tiveram respostas.
Bruno acompanhava Dom Phillips, jornalista que estava no local colhendo depoimentos e informações para um livro. Britânico, ele vive no Brasil há 15 anos e escreve sobre temas relacionados ao meio ambiente.
Na manhã desta segunda-feira, uma falsa informação sobre o encontro dos corpos chegou a ser difundida pela mídia. A Polícia Federal desmentiu na sequência a versão de que os corpos teriam sido encontrados.
*Crédito imagem destacada: Manifestantes protestam contra o desmonte de políticas públicas e o desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips (Foto: Antonio Scarpinetti)
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