ODS16

Que país é esse?

por Marcello Rollemberg, para o Jornal da USP – 

Sem o Censo este ano, ficará ainda mais difícil se entender o Brasil – e o que se fazer para a imagem no espelho não ser deturpada 

É  um trocadilho inescapável – talvez pouco inspirado, é verdade –, mas necessário: sem o Censo 2021, o Brasil perderá o bom senso. Sem sabermos exatamente quem e quantos somos, o que fazemos, pensamos e desejamos, a imagem do País tende a ficar desfocada. O Censo é o Brasil diante do espelho, e não se pode correr o risco de essa imagem sair deturpada. O poeta é a antena da raça, ensinou no século passado o americano Ezra Pound. Esqueça-se a postura ideológica do autor de Os Cantos e vamos nos ater à frase. A pertinência e a atualidade são enormes, ainda mais na situação atual. Como? Explica-se. Em 1980, ainda em meio à ditadura militar, o poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna escreveu no poema Que País é Esse?:

Uma coisa é um país,  
outra um ajuntamento. 
Uma coisa é um país,  
Outra um regimento. 
Uma coisa é um país, 
Outra o confinamento. 

Hoje, pouco mais de 40 anos depois, a pergunta ressoa forte por todos os quadrantes nacionais. Afinal, que País é esse?

O problema é que, sem o Censo Demográfico – adiado do ano passado para este e, por enquanto, cancelado por falta de verba –, a resposta se torna cada vez mais difícil de se dar. E sem essa resposta, a implementação de políticas públicas, por exemplo, fica extremamente comprometida. E justamente no momento em que o País vê os números da covid-19 tomarem contornos cada vez mais trágicos e com a economia, a saúde e a educação desnorteadas.

Éramos cerca de 200 milhões de almas em 2010. E hoje, quantos somos? Sabe-se que somos, miseravelmente, menos 400 mil devido ao coronavírus. Mas quantos somos?, deve-se repetir. Isso, só o Censo pode responder. “Realizado a cada dez anos, o Censo Demográfico brasileiro é a única pesquisa que coleta dados como o número de habitantes em todo o País, a situação de vida e características dessa população em níveis muito internos, além de ser o primeiro a tratar do tema da fecundidade e o único na América Latina a colher informações sobre renda. As informações do Censo orientam a criação de políticas públicas e investimentos por parte dos governos ou entidades privadas”, esclareceu o Jornal da USP em reportagem publicada no último dia 27 de abril.

Censo Demográfico de 2021 corre risco de não acontecer, tal como o Censo programado para 2020 – Foto: Agência Brasil via IBGE

Mas, por mais importante e essencial que seja, o Censo programado para 2020 não andou – culpa do novo coronavírus. Ficou para este ano, mas continua patinando e corre seríssimos riscos de não acontecer. Isso porque o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, responsável pela coleta das informações dos brasileiros, viu as 200 mil vagas temporárias para agentes se esvaírem diante do profundo corte de orçamento aprovado recentemente pelo Congresso: 96% dos recursos previstos para a realização da pesquisa foram cortados, e o instituto viu sua verba cair de R$ 2 bilhões para pouco menos de R$ 72 milhões. E caiu ainda mais, quando o governo federal retirou mais uma fatia de R$ 17 milhões, praticamente inviabilizando qualquer possibilidade de realização do Censo em 2021. Na verdade, o governo chegou realmente a cancelar a pesquisa. “A grande questão é avaliar qual é o impacto orçamentário real do Censo no montante do orçamento brasileiro. É preciso pensar nele como um investimento, ou seja, eventuais custos retornam na forma de crescimento econômico e melhoras públicas mais focalizadas”, já alertava para o Jornal da USP no Ar, da Rádio USP, em 2019, o professor Rogério Barbosa, mestre e doutor em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) da USP.

Rogério Barbosa – Foto: Reprodução/IESP-UERJ

E a situação só não está completamente perdida porque o ministro Marco Aurélio Melo, do STF, determinou que o governo adotasse “medidas voltadas à realização do Censo”, em uma esteira de ações contrárias à determinação governamental que inclui um manifesto público assinado por ex-presidentes do IBGE, alertando para os riscos da falta de Censo – e de bom senso, repita-se. “Nosso último Censo ocorreu em 2010, e, sem ele, o Brasil se junta ao Haiti, Afeganistão, Congo, Líbia e outros Estados falidos ou em guerra que estão há mais de 11 anos sem informação estatística adequada para apoiar suas políticas econômicas e sociais”, alerta o manifesto. A determinação de Marco Aurélio vai na mesma linha de argumentação. “Como combater desigualdades, instituir programas de transferência de renda, construir escolas e hospitais sem prévio conhecimento das necessidades locais?”, questionou o ministro do Supremo, devolvendo o problema para o Planalto. “Sem os dados do Censo não dá para mapear o analfabetismo, não dá para saber sobre escolaridade, não dá para saber onde se precisa criar escolas”, fez coro, em entrevista recente, o historiador, professor e cientista político Luiz Felipe de Alencastro.

“Há uma série de questões que decorrem do Censo até a administração pública. É o Censo que serve de base para os repasses do Fundo de Participação dos Municípios, que é uma transferência constitucional da União para os Estados e o Distrito Federal. Ou seja, os municípios e os Estados não vão saber como eles vão poder organizar a administração pública.”

População brasileira nos Censos Demográficos

ANO POPULAÇÃO
1872 9.930.478
1890 14.333.915
1900 17.438.434
1920 30.635.605
1940 41.236.315
1950 51.944.397
1960 70.992.343
1970 94.508.583
1980 121.150.573
1991 146.917.459
2000 169.590.693
2010 190.755.799

Bússola social

Além do mais, especialistas lembram que uma base fundamental e estruturada de dados viabiliza parcerias com organizações internacionais, como Banco Mundial, ONU e a OMS. Sem esses dados concretos e avalizados, a realização de possíveis convênios fica comprometida. Ou seja: o País, sem Censo, é como um transatlântico navegando em meio a uma neblina densa e sem bússola. No caso, uma bússola social que indica o norte para o melhor combate contra as mazelas do País. Que, frise-se, não têm sido poucas ultimamente.

“Dados oriundos do recenseamento seriam essenciais para o planejamento de políticas de saúde e de distanciamento social, de otimização dos transportes e de outras maneiras de reduzir o contágio da covid-19”, afirmou em finais de abril Eduardo Marques, pesquisador do CEM e professor do Departamento de Ciência Política da FFLCH da USP, ao repórter do Jornal da USP Gustavo Zanfer. “Um outro exemplo é a questão da densidade habitacional e das áreas de precariedade habitacional, como favelas e loteamentos clandestinos irregulares, que têm o Censo como única ferramenta de pesquisa que consegue descer a esse nível. Poderíamos fazer uma customização de políticas”, reiterou o professor. A realização do Censo vai muito – muito mesmo – além de milhares de pessoas responderem a perguntas em uma pesquisa sobre a realidade das famílias brasileiras.

Mais do que uma foto tirada por uma grande angular, essa realidade do País é colocada em um microscópio e esmiuçada como uma boa e atenta pesquisa deve fazer. Sem esse retrato social, sem essa imagem no espelho, o Brasil perde chances de se conhecer melhor, as políticas públicas continuam engessadas ou inexistentes. E a pergunta corre o risco de permanecer indefinidamente sem resposta: que País é esse?

(Jornal da USP/#Envolverde)