Por Sônia Araripe, Editora da Revista Plurale –
Jovem de periferia cria ONG que é referência em gestão compartilhada de favelas é considerado um dos maiores empreendedores sociais do país, com apenas 34 anos. Escritor e palestrante, Edu Lyra já falou para plateias em Harvard, conquista adesões do setor privado e foi apontado como um dos 15 jovens capazes de mudar o mundo, pelo Fórum Econômico Social. ONG trabalha para transformar favelas em lugares dignos para se morar.
O fundador da Gerando Falcões explica que o projeto da Favela 3D está sendo testado em quatro comunidades em diferentes regiões, passando por métricas. O plano é “prototipar”, como ele fala, para depois entregar esta tecnologia social pronta para os gestores que quiserem seguir. O jovem que cresceu em Guarulhos, filho de ex-presidiário, vizinho de traficantes e assaltantes, sabe que a solução precisa envolver os moradores das favelas, de baixo para cima e de dentro para fora. E que a Educação fará toda a diferença. A Gerando Falcões já formou mais de 700 líderes em comunidades. Edu Lyra assegura que não pretende seguir o caminho oficial da Política partidária e alerta ser preciso revermos nossos heróis, dando mais valor para quem está fazendo a transformação social. “Estes são os verdadeiros heróis do Século 21”.
A seguir, a entrevista para Plurale.
Plurale – Nós já acompanhamos há alguns anos a sua história e também a ONG Gerando Falcões. Mas gostaríamos, por favor, que você contasse para o nosso leitor de Plurale um pouco mais sobre a sua trajetória e como surgiu esta ideia da ONG Gerando Falcões. Lembrando que você é periférico, filho de um ex-presidiário, viveu na favela desde o nascimento e tinha como vizinhos traficantes e assaltantes. O que foi o grande diferencial, na sua opinião, para tornar-se um dos maiores empreendedores sociais do país?
Edu Lyra – Eu vivi a pobreza extrema na pele viva. Eu superei a pobreza extrema. Quando eu nasci é como se o sistema tivesse pendurado uma bomba-relógio no meu pescoço – e a certeza que eu tinha que, um dia, a bomba iria explodir. A minha meta, a minha obsessão de vida era desarmá-la. Consegui. A partir daí, entendi que poderia criar um programa para desarmar bombas-relógio da pobreza em escala. A Gerando Falcões nasce assim– primeiro de uma indignação: de que toda pobreza é um massacre humano. E depois da certeza de que era possível desarmar outras bombas-relógio em escala.
Plurale – Você tem dito que quer terminar as favelas antes do bilionário Elon Musk, considerado o homem mais rico do mundo, conseguir colonizar Marte. Acredita que isso é realmente possível?
Edu Lyra – Acredito. O mundo está em uma grande encruzilhada, tanto do ponto-de-vista ambiental quanto do social. Precisamos fazer um esforço e construir algo que nunca foi feito antes, em uma velocidade de tempo jamais imaginada, para salvar o futuro das próximas gerações. Precisamos dar uma resposta para os temas ambiental e da pobreza gigante. Ou seremos engolidos por isso. Um exemplo: o número de favelas no Brasil, na última década, era de 7 mil; e hoje já são mais de 14 mil. Tem o crescimento da pobreza, a ampliação da desigualdade. E não podemos chegar a um estágio em que isso não seja reversível. Precisamos ter planos para esta década, para 2050… e engajar todas as forças do País: a academia, os governos, a iniciativa privada, a sociedade civil, as ONGs – e trabalhar de uma forma coordenada, para uma direção comum, para fazer a superação da pobreza e salvar o planeta. Isso é mais do que urgente. Ou a gente faz ou a gente faz. Ou seremos lembrados como a geração que sentenciou as próximas.
Plurale – Pois é… mas isso já foi tentado tantas vezes… e não avança. Para falar, é algo que, relativamente, parece simples. Mas para executar é tão difícil, em um um cenário tão polarizado, tão dividido, com tanta desunião. É como se cada um estivesse indo em uma direção… sem saber que caminho tomar. No fundo, é como se cada um tentasse a sua sobrevivência, seguindo em frente, “tocando o barco”. Você realmente acredita que é possível chegar a este consenso? Não te passa esta sensação de desânimo, já que um pouco de tudo foi tentado?
Edu Lyra – Foi tentado por quem? As grandes mudanças, em geral, não vêm de governos. As grandes mudanças vêm da sociedade civil. Qual a grande oportunidade que eu enxergo?
É a nossa capacidade de inovar. A sociedade civil pode inovar e os governos seguirem. Não é o governo que puxa a fila. É a sociedade civil que puxa a fila e os governos, de uma forma geral, seguem. Então, qual é o meu grande empenho na Gerando Falcões? É entregar a favelas 3D, transformando territórios antes negligenciados em territórios dignos, digitais e desenvolvidos. Prototipar esta solução como uma tecnologia social para o Brasil e depois entregar para os governos, para o Brasil. Isso funciona – e está funcionando. Contratamos uma agência israelense para provar isso com evidências. O próximo caminho é entregar isso para o Brasil e aí, os governos e a sociedade devem tomar uma decisão. E esta decisão não cabe a mim. Vai querer continuar atolada, sentenciando gerações e gerações? Quem nasce pobre neste país nasce sentenciado. Um ou outro consegue escapar. A minha história é uma tremenda exceção, de alguém que conseguiu escapar da prisão de segurança máxima, que é a pobreza. Mas precisamos decretar o shut down nesta prisão, temos que destruir esta prisão. Temos que absolver estas gerações deste modelo no Brasil. É difícil? É super difícil. É algo quase contra-lógico? É. Mas a gente tem que fazer isso antes que seja tarde demais.
Plurale – Fale mais, por favor, sobre o projeto Favela 3D, digno, digital e desenvolvido.
Edu Lyra – Estamos fazendo quatro laboratórios do Favela 3D: dois em São Paulo, sendo um na Favela Marte, em São José Ribeirão Preto, e outro na Favela dos Sonhos, em Ferraz de Vasconcellos; também na Favela Vergel do Lago, em Maceió, e no Morro da Providência, no Rio de Janeiro. O que a gente faz nesses territórios é combinar políticas públicas e tecnologias sociais na favela, para destravar valor e quebrar o ciclo da pobreza. Começamos com um grande diagnóstico social da favela, sempre envolvendo os moradores, para entender a geografia física, humana e social do local. E, portanto, entender o nível de pobreza. Depois a gente entra em uma segunda fase daquilo que chamamos de imaginação cívica, onde juntamos a favela para reimaginar a própria favela e criar um grande Plano de Desenvolvimento Social, a partir da favela. E, por fim, vai para a fase de execução, que compreende construir acordos sociais da favela com governos, da favela com a iniciativa privada e da favela com a sociedade civil, para mobilizar recursos para executar o Plano. É um projeto que nasce de dentro para fora, de baixo para cima, porque ninguém entende mais da favela do que quem mora lá. Este morador precisa ser o principal agente transformador do processo. Cidadãos compactuados com a sociedade. No Favela 3D, fazemos uma intervenção física no território, no que chamamos de urbanismo social, e uma intervenção humana, nas pessoas. Combinamos o hardware com o software e isso gera uma explosão, aquilo que a gente chama do milagre da inclusão, da transformação. Quando a gente olha para a pobreza, as pessoas acham que é só falta de dinheiro no bolso. Mas a falta de dinheiro no bolso é só um dos vários níveis de pobreza. Há vários tipos de pobreza: a pobreza econômica, a pobreza menstrual, a pobreza mental, a pobreza energética, a pobreza de oportunidades… Nós entendemos a pobreza como um fenômeno multidimensional, portanto, a solução tem que ser multisetorial. Por isso criamos ecossistemas de mudança, onde trabalhamos com a sociedade, governos, academia, iniciativa privada, com startups… para conseguir dar um salto quântico, não um salto incremental. Porque é isso que precisamos dar no Brasil, um salto quântico.
Plurale – Educação no Brasil é um gargalo gigantesco também, sem dúvida. Você mesmo diz que a Educação fez a diferença no seu caso, que você é resultado desta base. E é uma base forte no Gerando Falcões, através da Falcons University, que tem formado lideranças jovens. Como é que este modelo funciona?
Edu Lyra – Nós criamos a Falcons University – uma universidade de liderança social, de ensino da favela para a favela; formamos dois públicos. O primeiro é formar lideranças de favelas. Buscamos outros Edus e outras Dudas, digamos assim, no sentido figurado, líderes de favela que estão causando impacto. Uma vez que a gente encontra, “embarcamos” estas lideranças em um grande processo de formação, que tem uma fase inicial de seis meses, com 12 módulos, envolvendo Captação de Recursos, Gestão, RH, Dados, Inovação Social, Políticas Públicas, Transparência, Comunicação… para acelerar as capacidades destas lideranças. E depois isso vai para uma fase de trabalhar em colaboração, para a execução de projetos na ponta, na última milha. Temos hoje 707 líderes no nosso ecossistema e temos presença, através deles, em quase 4 mil favelas. E assim, através destas lideranças, entregamos serviço de educação, desenvolvimento econômico e cidadania. Temos em andamento um grande projeto de formação de pessoas para a evolução de papel de superação da pobreza nas favelas. Educação cidadã, educação econômica, educação cultural, educação para a vida, educação empreendedora.
Plurale – Como isso ganha escala? Formou 700 e atinge umas 4 mil favelas. Ou a ideia não é ganhar escala e sim prototipar e virar uma referência como possível política pública. Qual é o caminho?
Edu Lyra – Queremos, sobretudo, com o Favela 3D, comprovar a tese. O Brasil faz muitas políticas públicas, mas sem evidências de que aquilo funciona. Desde o começo, quando começamos a pensar o Favela 3D, entendemos que deveríamos ter uma grande agência de avaliação de impacto, de economia comportamental, para fazer o processo de avaliação. Entender o que deu certo e errado. Qual foi o resultado econômico e social? Fez com que a gente pudesse entender a mudança de processos nas favelas… estamos coletando estas evidências. Acreditamos que, nos próximos três a quatro anos, iremos entregar – ano a ano – uma grande tecnologia social de superação da pobreza a partir do Favela 3D, lastreada por evidências científicas. E isso será um grande documento, ou plataforma, de advocacy, para a gente influenciar decisores e consultores de políticas públicas para implementar a tecnologia nas suas cidades, estados e no País. Este é o meu sonho. Sonho todos os dias.
Plurale – Você já foi sondado por políticos? Pretende se engajar formalmente na política? Qual a conexão deste cenário com a política? Lembramos também que, no Brasil, os planos e gestões políticas costumam ter datas… e muitas vezes são interrompidos pelo resultado das urnas. Este é um ano eleitoral.
Edu Lyra – Sou como um atleta olímpico no campo social, atrás da medalha de ouro. E a minha medalha de ouro é a superação da pobreza. A minha roupa, a minha vestimenta, é a do empreendedor social. Acredito que você pode influenciar a vida social do País de diferentes formas. E a ferramenta que eu uso é através do empreendedorismo social, criando um grande ecossistema de líderes que sejam capazes de liderar processos de mudança social em escala na favela, trabalhando em colaboração com a academia, governos, iniciativa privada, ONGs e sociedade civil. A minha mulher certamente não me deixaria entrar para a política.
Plurale – Quem são os nomes que te inspiram hoje, além do empresário/ investidor Jorge Paulo Lemann? Quais seriam os nomes de líderes a que deveríamos ficar atentos?
Edu Lyra – O Brasil deveria começar a olhar para os grandes inventores sociais, que estão tentando transformar o país. Valorizam demais a produção de riqueza econômica. Isso é importante. Mas devemos olhar quem está pensando a economia verde, transformar recicláveis em energia etc. Olharia para Amanda Oliveira, do Instituto As Valquírias, para o Celso Athayde (fundador da Cufa – Central Única das Favelas), o Saulo Ricci, criador do Coletando. Para estas pessoas, que são agentes de mudanças sociais no Brasil. Empresários também, tem que olhar para o Elon Musk, para a corrida espacial que ele está protagonizando. No Brasil, olharia muito para o que o Elie Horn (fundador do grupo Cyrela e um dos maiores filantropos do Brasil e do mundo) está falando e produzindo, no campo da filantropia. E também para a Escola de líderes, do Jorge Paulo Lemann. No campo da política, da Ciência, da Inovação…que estão fazendo a diferença. São os heróis do Século 21. Temos que repensar nossos heróis. Nada contra jogador de futebol. Mas o que é mais importante: o hexa ou quem está revolucionando o país com solução para as questões sociais? É isso o que eu penso.
*Crédito da imagem destacada: FOTO DE FLÁVIO SAMPAIO/ DIVULGAÇÃO GERANDO FALCÕES
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