por Ricardo Abramovay* –
Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável sintetizam as mais importantes ambições das sociedades humanas para esta década. Aprovados pelo conjunto dos países que formam as Nações Unidas, eles estabelecem dezessete metas a serem atingidas até 2030.
Na maioria das vezes, os ODS são apresentados sob a forma de dezessete figuras, uma ao lado da outra. Em torno de cada uma destas figuras, a ONU constituiu alvos específicos (169, no total) e um sistema global e anual de avaliação (com 229 indicadores).
Mas a melhor representação gráfica dos ODS e que melhor capta seu alcance foi exposta num trabalho do prestigioso Stockolm Resilience Center, elaborado por Johan Rockström e Pavan Sukhdev. Ela é conhecida como o “bolo de noiva”, formado por três camadas superpostas. A vantagem desta forma de ver os ODS é que ela deixa clara a integração orgânica, a coerência interna dos 17 ODS, o que é mais difícil perceber pela exposição das figuras uma ao lado da outra.
Mesmo que se leve em conta que os ODS foram aprovados em 2015 e que, de lá para cá, o mundo mudou muito (basta pensar nos impactos da pandemia), os ODS são ainda uma orientação estratégica decisiva para governos, empresas, organizações da sociedade civil e cidadãos. Não se trata aqui de explicar cada um desses dezessete objetivos, mas de ressaltar sua lógica interna.
O bolo de noiva é formado por três camadas. A maior é a biosfera, ou seja, o conjunto dos ecossistemas terrestres de sustentação da vida no planeta. Os ODS definem objetivos para preservar e regenerar a vida nos solos por meio do ODS 15, que inclui as florestas, mas também se refere à maneira como se produzem alimentos, fibras e energia e como se mantém ou se destrói a biodiversidade terrestre. O ODS 14 refere-se à vida subaquática, ou seja, os corais, as espécies de peixes e mamíferos aquáticos e a própria poluição dos oceanos e dos rios. A disponibilidade de água limpa é abordada no ODS 6 e ela exige o estudo do ciclo da água em seus diferentes usos, do consumo humano ao industrial e agrícola e também para o saneamento básico. O sistema climático está no ODS 13, que foi fortalecido pela decisão de vários países de reduzir pela metade as emissões de gases de efeito estufa até 2030 e neutralizá-las até 2050.
Esta primeira camada do bolo de noiva não pode ser tratada como um conjunto de recursos aos quais a humanidade recorre infinitamente para satisfazer seus desejos e suas necessidades. Essa visão do mundo natural predominou até cinquenta anos atrás. Hoje, ela entrou em colapso, em função do avanço da erosão da biodiversidade e dos eventos climáticos extremos.
Colocar a natureza como a base de sustentação da vida social e econômica não tem nada de trivial. A cultura predominante nas escolas e universidades é que a dominação humana sobre a natureza, nossa capacidade de adaptá-la a nossos projetos, é o fundamento de nossa capacidade de criar riqueza. Os ODS são um convite a romper com este ponto de vista.
A segunda camada do bolo de noiva é a sociedade. Aqui fica nítida a inspiração dos ODS no pensamento do filósofo e economista indiano Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia de 2008. Desenvolvimento, para Sen, é ampliar as liberdades substantivas dos seres humanos, é poder dispor das bases para que os potenciais das pessoas floresçam. Desenvolvimento se refere menos a coisas e à obtenção de coisas e muito mais àquilo que as sociedades fazem com a riqueza que criam. A riqueza é um meio, um instrumento. Ela não pode ser finalidade: a finalidade (de natureza necessariamente ética) é e tem que ser melhorar a vida social e a relação entre sociedade e natureza, como bem mostra o recém-lançado livro do economista Flávio Comin sobre Amartya Sen.
É o que explica os oito componentes da camada do bolo referente à sociedade: a erradicação da pobreza (ODS 1), a fome zero (ODS 2), a boa saúde (ODS 3) e a educação de qualidade (ODS 4) são premissas básicas da dignidade humana. Mas, para que a vida social se aproxime do valor representado pelo desenvolvimento sustentável, são necessárias outras quatro condições. A primeira refere-se a cidades e comunidades sustentáveis (ODS 11). Isso supõe que se suprima o apartheid territorial que joga muitas vezes a maioria da população em regiões periféricas e desprovidas de serviços e trabalhos de qualidade. A disponibilidade de energia limpa (ODS 7) é fundamental e aqui é importante lembrar que parte importante da espécie humana ainda depende do carvão e do esterco como base para a cozinha e para o aquecimento. Mas, além disso, o desenvolvimento supõe paz, justiça e instituições fortes (ODS 16) e igualdade de gênero (ODS 5).
Os oito objetivos da camada do bolo referente à sociedade mostram que o desenvolvimento sustentável almeja objetivos políticos, culturais e institucionais: uma sociedade cujas cidades têm energia limpa e cujas empresas reduzem suas emissões, mas onde a representação política das mulheres é baixa está se distanciando do desenvolvimento sustentável.
A terceira camada do bolo refere-se à economia. A mensagem do Stockolm Resilience Center é clara: a economia não é uma esfera autônoma da vida social. Ao contrário, ela está incrustada na política, na cultura, nos hábitos e na maneira como nos relacionamos uns com os outros. Uma sociedade sem paz, justiça e instituições fortes não será economicamente forte. Mais do que isso: se é verdade que o ODS 8 preconiza crescimento econômico, essa meta está ligada ao que a OIT (Organização Internacional do Trabalho) define como trabalho decente. Três outros objetivos compõem a vertente econômica dos ODS. A indústria, a inovação e a infraestrutura (ODS9), a redução das desigualdades (ODS10), o consumo e a produção responsáveis (ODS12).
Os ODS tornam-se ainda mais importantes diante do empenho, vindo tanto dos Estados Unidos como da União Europeia, de colocar as mudanças climáticas e a luta contra as desigualdades no centro de suas políticas econômicas. O mundo está sepultando a ideia que dominou o pensamento econômico das últimas décadas, de que se os mercados funcionarem bem, a vida social melhora.
Os ODS fazem dos cuidados com a vida e com a sociedade o fundamento da atividade econômico. E com isso rompem com o ridículo dos que enchem a boca para dizer que, quarenta anos atrás, estudaram economia na Universidade de Chicago.
*Ricardo Abramovay é professor Sênior do Programa de Ciência Ambiental do IEE/USP.
Foi Autor de “Amazônia: Por uma Economia do Conhecimento da Natureza” (Ed. Elefante/Terceira Via, São Paulo).
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