Por Mario Osava para IPS –
O estigma e a discriminação são feridas sociais que se busca exorcizar no I Encontro Latino-Americano e Caribenho de Pessoas Afetadas pela Doença de Hansen, também conhecida como lepra, um termo já abandonado pelos especialistas no Brasil, onde o evento reúne centenas de ativistas.
Os direitos e a integração dessas pessoas em todos os aspectos da Estratégia Mundial para a Hanseníase 2016-2020, da Organização Mundial de Saúde (OMS), são os temas do encontro, realizado na cidade brasileira do Rio de Janeiro, entre os dias 12 e 14 de março. Nesta reunião serão estabelecidas as estratégias da região, assim como em outros encontros que já aconteceram nas últimas semanas na Ásia e na África.
O objetivo é que todas as experiências e propostas se alinhem para o Congresso Mundial sobre a doença, a ser realizado nas Filipinas em setembro, destacou durante a sessão de abertura Kiyomi Takahashi, da Fundação Nippon, que dá um suporte especial ao encontro.
O Brasil ocupa uma posição de destaque nesse debate, pois é considerado o único país que ainda não eliminou a doença e registra a maior incidência no mundo, com 25 mil a 30 mil novos casos por ano, 95% do total das Américas, de acordo com dados oficiais.
É um número inaceitável de “uma doença que tem cura e é tratada no sistema de saúde pública”, destacou Artur Custódio, coordenador do brasileiro Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), que organizou a reunião latino-americana junto com a Federación de Entidades de Personas Afectadas por la Lepra, da Colômbia.
Além disso, o Brasil destaca-se por abolir a palavra lepra, que carrega uma alta carga acumulada de preconceitos. Desde 1995, a lepra passou a ser referida como hanseníase, ou doença de Hansen, no país, embora a Organização Mundial de Saúde e a Organização das Nações Unidas geralmente usem ainda o termo lepra para designar a doença.
Claudio Salgado, presidente da Sociedade Brasileira de Hansenologia, considera adequado que o Brasil não esteja entre os países que classificam a doença como eliminada, uma vez que o critério é de menos de um caso para cada dez mil habitantes.
As estatísticas mascaram a realidade de uma doença que permanece oculta. Elas apontam que, de 5,3 milhões de casos em 1980, houve uma queda para 597 mil em 2001, mas não atingiram a meta de eliminação prevista pela OMS até o ano 2000.
Os dados oficiais indicam que, de 2003 a 2005, os casos recuaram quase 65% no mundo, caindo para 169.709, um resultado considerado “impossível em epidemiologia”, explicou Salgado à IPS. Para ele, quando o combate a uma doença como a hanseníase é adequado, sua incidência cai de forma constante, mas de forma lenta e regular, não abruptamente ou em saltos, detalhou.
Os números nem sempre dão uma real dimensão da realidade. Como exemplo Salgado mostrou os dados da cidade de Palmas, capital do Estado do Tocantins, onde um esforço para o diagnóstico precoce apontou um aumento entre 2013 e 2016, de 41,9 casos para 219 casos por dez mil habitantes. Isso significa, segundo ele, que, quando se decide tratar a doença seriamente, o número de pessoas afetadas aumenta.
Outro indicador do Brasil mostra um problema adicional: há 39% de “demanda espontânea” por tratamento, o que aponta para a falta de informação e assistência. Isso ocorre porque as consultas espontâneas ocorrem em “casos avançados de sequelas já aparentes”, difíceis de tratar e por vezes incapacitantes, ressaltou Salgado.
“A meta de eliminação em 2000 teve um efeito positivo, ampliando iniciativas e programas de informação e assistência. Mas declarar que a meta foi alcançada gerou o efeito colateral de abandono do compromisso”, lamentou Salgado, que atua como professor da Universidade Federal do Pará, na Amazônia brasileira. Para ele, essa situação está levando à perda de conhecimentos, com redução da pesquisa em universidades e dos serviços de prevenção e tratamento. Somando-se a isso o estigma da doença, a tendência é que o número de casos volte a crescer.
Faltam pesquisas para explicar porque a doença afeta tantas pessoas no Brasil e tem baixa incidência do outro lado das fronteiras, disse Jorge Dominguez Sobrino, do Ministério da Saúde do Peru, que trabalha na prevenção e tratamento da hanseníase na província de Alto Amazonas, na fronteira com o Equador. “Talvez diferenças genéticas sejam uma causa”, ponderou à IPS.
No Peru, o número de novos casos indica a “eliminação”, mas há alta predominância em algumas províncias, especialmente em cidades pequenas. “Há uma grande prevalência oculta”, reconheceu Sobrino.
O diagnóstico precoce é um direito primário em relação à hanseníase, concordaram Salgado e Custódio. Será necessário rever e mudar algumas bases das estratégias para eliminar a doença. Uma preocupação dos especialistas é a identificação de muitos casos em crianças, indicando contágio por parentes ou pessoas próximas não diagnosticadas.
Uma contradição nos dados oficiais é exatamente que muitos países, que declararam ter baixado a hanseníase a uma taxa inferior a um caso por dez mil habitantes, apontam um número preocupante de crianças afetadas.
Além disso, onde há menos casos registrados, como no sul do Brasil e em outros países latino-americanos, são mais sérios os danos nos afetados, devido ao diagnóstico tardio, quando os efeitos já estão instalados, como perda de nervos periféricos, dedos ou membros inteiros.
A hanseníase, presente na humanidade desde tempos imemoriais, é uma doença infecciosa e crônica, causada pelo bacilo Mycobacterium leprae, como definido pela OMS, que afeta principalmente a pele, os nervos periféricos, a mucosa das vias aéreas superiores, os olhos e outras estruturas.
Norah Salcedo, da cidade de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, é uma das pessoas que sofreram danos irreversíveis nos membros e precisa de muletas. “Não há tratamento adequado no meu país, os pacientes continuam a perecer sem assistência”, queixou-se à IPS.
A Bolívia é um país que “eliminou” a hanseníase, de acordo com dados oficiais. A ignorância sobre a doença é grande, reconheceu Salcedo, assim como a peruana Silvia Uieacu.
Sete países latino-americanos estão representados nesta primeira reunião regional dos afetados, que reúne autoridades de saúde e representantes de organizações internacionais, como a Organização Pan-Americana de Saúde, e instituições japonesas, especialmente a Fundação Nippon, além de especialistas da Alemanha e Estados Unidos.
O Brasil também atrai a atenção internacional por conta da compensação para as vítimas do sistema de segregação nos chamados leprosários, onde os doentes eram isolados. Essa prática foi mantida por lei no país até 1986, embora já se soubesse sobre a possibilidade de cura desde 1941 e que o tratamento interrompe a infecção.
Desde 2007, o Estado brasileiro compensa as pessoas isoladas, mas agora a organização Morhan procura estender a reparação aos filhos que foram separadas de seus pais. Estima-se que cerca de 16 mil crianças sofreram essa separação forçada.
São políticas que interessam aos movimentos semelhantes em outros países da América Latina, explicaram os participantes durante os debates do primeiro dia.
Muitas pessoas segregadas nesses “leprosários” continuaram a viver neles depois da desativação, porque eles não têm chance de voltar para suas comunidades de origem ou de reconstruir suas vidas, destacaram os ativistas.
Edição: Estrella Gutiérrez
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