ODS3

Mães atrás das grades: direito a prisão domiciliar ainda não é cumprido

Por Samanta Dias, de Azmina – 

Há um ano, o STF concedeu prisão em casa para mulheres com filhos pequenos, mas apenas 21% delas tiveram o direito concedido, segundo dados obtidos pela AzMina

Com três filhos de idades inferiores a quatro anos, Ana*, 21 anos, cumpria prisão domiciliar por causa de uma condenação em primeira instância por tráfico de drogas. No fim de março de 2018, policiais foram até sua casa, em Londrina, no Paraná, e a prenderam novamente sob a mesma acusação de porte de drogas – no caso, 13 gramas de crack e 8 de cocaína.

74% das mulheres presas no Brasil têm filhos. Crédito: Unsplash

As duas crianças mais velhas, com entre 1 e três anos de idade, foram separadas e acolhidas por avós e tios avós paternos. O pai não demonstrou interesse pelos filhos. O bebê, ainda dependendo de amamentação, ficou com a avó de Ana, uma senhora de 65 anos com problemas de saúde. O pai do bebê também estava preso. Ana tem direito à cuidar dos filhos em prisão domiciliar, mas seu direito não é respeitado.

O caso de Ana é representativo de boa parte das mulheres presas no Brasil hoje: são jovens, negras, periféricas, têm filhos, foram presas por envolvimento com o tráfico de drogas e ainda não foram julgadas. Há um ano, mulheres como Ana conquistaram no Supremo Tribunal Federal (STF) o direito de cumprir prisão domiciliar para poderem cuidar de seus filhos.

Mas a decisão ainda está longe de ser cumprida em sua totalidade: apenas 21% das mulheres elegíveis para a concessão da prisão em casa tiveram esse direito concedido no último ano desde a decisão do STF, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) obtidos pela Revista AzMina por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

O STF concedeu em fevereiro de 2018 Habeas Corpus (HC) Coletivo para todas as gestantes e mulheres mães de crianças menores de doze anos, que estivessem em prisão preventiva, o direito de serem encaminhadas para a prisão domiciliar. As exceções seriam crimes praticados com violência e grave ameaça ou contra os próprios filhos, ou ainda situações excepcionais, as quais os juízes deveriam fundamentar ao STF.

“O encarceramento feminino

é um fenômeno perverso, que tem danos sociais que

extrapolam os muros da prisão, o corpo

da mulher e sua família” 

diz Natalie Fragozo, advogada do Coletivo de Advogados de Direitos Humanos (CADHu), o autor do pedido de Habeas Corpus Coletivo que deu início a esta história.

O relator do HC Coletivo, o ministro Ricardo Lewandowski tem reforçado a decisão desde então porque a medida encontra resistência na cultura de encarceramento que marca o judiciário brasileiro, avalia o defensor público federal Gustavo de Almeida Ribeiro, coordenador da equipe da Defensoria Pública da União que atua no STF.

“A gente percebe a resistência na aplicação dessa decisão”, diz o defensor. Ele conta que não é raro encontrar situações comuns usadas como “excepcionais” para não conceder o benefício. “A decisão tem uma cláusula que diz que é para conceder a prisão domiciliar salvo situações excepcionalíssimas. O que não ultrapassa o normal não deveria ser invocado como algo excepcional.”

Resistência
O caso de Ana é também característico dessa resistência do Judiciário. Na segunda prisão, o juiz manteve a prisão preventiva de Ana na audiência de custódia por considerar que ela era reincidente no crime e, por isso, colocava a segurança de seus filhos em risco. Isso é o que consta nos documentos do processo criminal. Em sua defesa, Ana relata que sua casa foi invadida por policiais sem mandado, que teriam atribuído a ela a posse das drogas que teriam sido encontradas nas redondezas.

Em novembro, em uma nova audiência do processo, a defesa de Ana pediu que a prisão fosse convertida em prisão domiciliar, considerando a necessidade dos filhos terem a presença da mãe. Com indícios de que teria o pedido negado, o advogado de Ana decidiu  fazer uma reclamação diretamente ao STF. Em dezembro, o ministro Lewandowski concedeu habeas corpus de ofício autorizando a prisão domiciliar para Ana e orientando o juiz do caso a dar o mesmo andamento para as mulheres sob sua jurisdição que estivessem em situação semelhante.

Ao longo de 2018, foram necessárias outras manifestações do ministro em outros casos para esclarecer a abrangência do HC: também deveria ser aplicado para pessoas acusadas de tráfico de drogas e para mulheres sem condenação definitiva. A decisão sobre o caso de Ana foi a manifestação mais recente, que deixou claro que ser reincidente não impedia a concessão de prisão domiciliar.

O Brasil tinha, em junho de 2016, 42 mil 355 mulheres encarceradas, segundo a 2ª Edição do relatório do Infopen, sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro, organizado pelo Depen e lançado em 2018. Isso coloca o Brasil na quarta colocação no ranking da maior população feminina encarcerada no mundo, atrás de Estados Unidos, China e Rússia. Entre 2000 e 2016, a taxa de aprisionamento de mulheres aumentou em 455% no Brasil. No mesmo período, a Rússia diminuiu em 2% o encarceramento deste grupo.

Tráfico de drogas
O tráfico de drogas é o outro nó a ser desatado nos casos das mães encarceradas. Isso porque em torno de 60% das mulheres presas no Brasil respondem a crimes relacionados ao tráfico de drogas. A maioria, no entanto, não tem ligação com grupos criminosos, atuando como coadjuvantes, embalando os produtos em casa, fazendo pequenas vendas no portão ou servindo como “mulas”.

Nesses casos, alguns juízes têm usado uma atitude moralizadora, além do “critério da excepcionalidade”, para justificarem suas decisões de manter essas mulheres presas em casas de detenção, segundo Natalie, do CADHu. Ela conta que juízes afirmam, por exemplo, que as mulheres que traficam expõem os filhos à situação prejudicial e de risco, além de serem modelos negativos para eles.

“A incidência do tráfico de drogas está associada a uma condição de vulnerabilidade econômica, além disso, está associada a prover a sobrevivência da família de uma maneira que seja compatível com o cuidado com os filhos. O pequeno varejo e o empacotamento podem ser feitos sem impedir o trabalho doméstico. Se o sistema de justiça considera esse contexto, que é a incidência majoritária, como excepcional, a decisão não avança um centímetro na proteção dos direitos das mulheres e das crianças”, argumenta a advogada do CADHu.

Há ainda o caso de mulheres estrangeiras que acabam no sistema carcerário brasileiro por servirem de mulas para grupos internacionais de tráfico de drogas, lembra o defensor público Gustavo. Não poucas vezes suas famílias estão sendo chantageadas em seus países de origem, segundo ele. De acordo com os dados de 2016 do Infopen, 529 cidadãs estrangeiras estavam sob custódia em unidades prisionais brasileiras, 323 delas oriundas das Américas e 120 da África.

“A maioria dos juízes vê o tráfico de drogas, e é mesmo, como crime que gera problema social muito grave”, diz a juíza, Fernanda Jacomini, que atua na Justiça Estadual de São Paulo. Ela aponta que o problema da prisão domiciliar é a falta de instrumentos de monitoramento como a tornozeleira eletrônica, como é o caso de São Paulo.

“Você não tem como fiscalizar, não sabe onde a pessoa está. Como já foi decidido pelos tribunais superiores, o tempo de prisão domiciliar deve contar no tempo de prisão, então será descontado da condenação final. Mas a realidade de fato é que, sem controle, elas podem não estar em prisão domiciliar, então o que os juízes geralmente estão fazendo, para evitar descontar uma pena que não foi cumprida, é dar a liberdade provisória”, relata Fernanda.

Estudos da criminologia relacionados com questões de gênero mostram que as penas do Estado costumam ser aplicados com maior rigor sobre as mulheres, observa Natalie, do CADHu. Isso porque além de violar a lei do Estado, ao cometer crimes elas violam a “tradição de gênero”, ou seja, não se comportam conforme o que se espera de uma mulher.

Aplicação da medida
O ministro Lewandowski deve apreciar em breve um pedido feito pelos advogados envolvidos no processo do Habeas Corpus Coletivo para criar oficialmente um grupo de monitoramento sobre a aplicação da medida. A intenção é receber periodicamente os dados dos órgãos de segurança pública, assim como analisar o embasamento das decisões judiciais negando a prisão a domiciliar. “Nós tínhamos dois momentos, ganhar o HC para deixar essa porta aberta e agora que ganhamos, como vamos executar isso da melhor forma possível? Essa é a importância do grupo voltado para a execução”, ressalta Gustavo.

O caso de Bruna*, 39 anos, poderia estar entre os analisados por este grupo. Ela cumpre pena há dez anos no Distrito Federal e já chegou a ter acesso ao regime de trabalho externo. Seus cinco filhos estão sob os cuidados de sua irmã mais nova, Camila*, de 23 anos. A filha mais velha já atingiu idade adulta e os demais têm entre 10 e 16 anos. Camila sustenta os cinco sobrinhos mais os seus dois filhos com uma renda de cerca de 1.500 reais por mês, além de uma ajuda de até 300 reais que os pais aposentados, que moram no Nordeste, mandam para complementar as despesas dos netos.

Logo após a decisão do STF começar a valer no ano passado, a defesa de Bruna entrou com o pedido de prisão domiciliar. Mas a solicitação foi negada com o argumento de que ela não era essencial para os filhos, uma vez que estavam sendo cuidados por familiares. “Mesmo que a gente dê todo carinho, não é amor de uma mãe. Bruna nunca foi uma mãe ruim, acho que ela tentou dar o melhor para os filhos fazendo o errado”, diz Camila. Atualmente, Bruna está sem defensor público.

A Associação de Apoio aos Presos, Egressos e Familiares do Distrito Federal afirma que atualmente existem cerca de 700 mulheres privadas de liberdade na penitenciária feminina da região, a maioria mães. De acordo com o Depen, em um ano, 32 mulheres foram atendidas pelo HC e receberam prisão domiciliar no DF.

Lei ignorada
O hapeas corpus para presas que são mães foi o primeiro HC Coletivo aceito na história do judiciário brasileiro. A ideia principal é assegurar os direitos das crianças de acordo com a Lei 13.257/2016, conhecida como Estatuto da Primeira Infância. Ela trouxe aspectos práticos sobre gestantes e mães encarceradas e mudou o artigo 318 do Código de Processo Penal autorizando a conversão de prisão preventiva em domiciliar quando a mulher estiver grávida ou for mãe de crianças de até 12 anos incompletos.

A lei, no entanto, foi ignorada. Tanto que gerou polêmica sobre a equidade do sistema penal quando foi aplicada no caso da advogada Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral. Presa na Operação Calicute, desdobramento da Lava Jato, em dezembro de 2016, ela recebeu três meses depois o direito de prisão domiciliar para cuidar dos dois filhos.

Diante do não cumprimento da lei, o CADHu protocolou o pedido de Habeas Corpus Coletivo no STF para garantir o direito a prisão domiciliar para as mães de crianças. “Enxergamos o viés discriminatório da Justiça penal no que envolve o encarceramento feminino como uma janela de visibilidade. Então nossa fala veio dizer que Adriana Ancelmo tinha direito e o que deveria chocar é que nenhuma outra mulher neste país estava gozando desse direito”, conta Natalie, do CADHu.

*Os nomes verdadeiros foram preservados a pedido das fontes

(#Envolverde)