Erica Malunguinho, Matuzza Sankofa e outras mulheres comentam sobre resistência contra preconceitos e machismo
Reconhecer as mulheres trans na luta feminista por direitos e por segurança significa protegê-las da violência e superar estigmas, já que o Brasil lidera o ranking dos países que mais matam mulheres e pessoas trans no mundo. E quando se fala em violência, as não físicas também podem traumatizar e dificultar suas vidas em sociedade.
A violência verbal contra mulheres é uma marca infeliz na vida de mulheres trans. Recentemente, uma profissional da Polícia Militar de Santa Catarina, Priscila Diana Brás e Silva, denunciou o descumprimento de uma decisão judicial para ter seu nome social reconhecido. A ação havia sido ganha há quase um ano e a policial ainda sofria com a resistência do Comando da PM Catarinense. O caso teve desfecho no fim do mês de fevereiro e a alteração foi confirmada pelo comando da Polícia Militar.
“A linguagem inclusiva é um recurso para unir as mulheres, já que até elas mesmas acabam reproduzindo frases machistas no dia a dia”, afirma Camila Rocha Irmer, linguista brasileira do aplicativo de idiomas Babbel. “A linguagem pode ser também uma arma. Assim, é a partir da conscientização linguística que a gente começa a acabar com machismos enraizados”, completa a especialista.
Se até mulheres protegidas por um emprego têm dificuldade de acessar direitos, por outro, nas ruas, elas ficam expostas a muitos tipos de violência, como relata Matuzza Sankofa, coordenadora geral da ONG Casa Chama, que acolhe pessoas trans. E a violência verbal é uma delas. Por isso, Matuzza reforça a necessidade de usar termos que reparam discriminações históricas.
“As travestis, muitas vezes não se reconhecem no termo ‘mulher’ e tratam-se como uma ‘mulheridade’”, explica Matuzza. “O termo travesti é um nome político”, explica sobre a necessidade de coexistência dos termos “travesti” e “mulher trans” para que não haja risco de se fazer distinções de caráter higienista entre as “corpas” transvestigêneres.
Mulheridades
A educadora e deputada estadual Erica Malunguinho reforça que o pertencimento da população T no movimento feminista não é objeto de negociação. “Em minha trajetória, sempre estive ao lado de mulheres negras cis companheiras de luta que comprendem os entrelaçamentos e as interseccionalidades das nossas identidades. O feminismo negro sempre foi incompativel com a transfobia. Na nossa comunidade, de mulheres negras, esse é um assunto que está em outras resoluções”, afirma.
Ela chama a atenção para outra forma de violência que é a objetificação da mulher trans e travesti, uma vez que o Brasil é líder na procura por pornografia de mulheres trans e travestis, tendo 90% dessa população em situação de prostituição.
“Então, para além da misoginia a que as mulheres cis estão expostas, nós enfrentamos cotidianamente a transfobia – logo a transmisoginia. Frases como: ‘é homem ou mulher?’, ‘é gato ou é lebre’, ‘traveco’,’você parece mulher de verdade’… interjeições diversas, além de olhares de desprezo, nojo, reprovação, colocam nossa identidade nesse lugar de desumanização”, afirma a Erica.
Para a deputada, a educação um primeiro passo para que todo conjunto da sociedade entenda a diversidade como uma regra. “Ser mulher é negociar sua própria vida em torno da abjeção, objetificação, inferiorização… é aprender desde sempre a se proteger. Entretanto, consciente disso, é reescrever uma longa história para o sentido da liberdade, do direito ao próprio corpo e da emancipação coletiva”, completa Erica.
Espaços
A visibilidade trans vem sendo construída nos vários campos de atuação e aos poucos ganhando legitimidade nas diversas esferas da sociedade. A artista Alice Marcone, cantora, atriz e roteirista, de 26 anos, começou sua transição durante a faculdade, quando tinha 18 anos.
A cantora faz parte de um movimento recente na música sertaneja, o “queernejo”. A vertente artística se ampara no caminho aberto pelo “feminejo”, que canta a força e as dificuldades das mulheres, para trazer ao público a perspectiva LGBTQIA+ dentro de um movimento musical bastante marcado por discursos machistas e homofóbicos.
Mercado
O campo do trabalho é um lugar onde as pessoas esperam ser acolhidas, mas é consenso que a mudança é um processo que leva tempo. A internacionalista Alexandra Saphyre de Oliveira, de 52 anos, é mulher trans redesignada há mais de 10 anos. Ela conta que já vive a realidade de um mercado preocupado em incluir pessoas trans, mas ainda se vê longe de ser reconhecida e plenamente respeitada como mulher, sem a necessidade de um sufixo para acolhê-la dentro do universo feminino.
“Eu me formei internacionalista pela Universidade Federal do ABC, pratico inglês, francês, italiano e espanhol diariamente, e o máximo que consegui como emprego foi ser recepcionista terceirizada”, conta. Alexandra levanta ainda um outro aspecto da inclusão linguística, que é a continuidade desse acolhimento para além do processo seletivo ou da integração de uma ou um novo funcionário. “O que eu percebo é que algumas empresas pretendem ganhar pontos juntos a opinião pública, se projetando como inclusivas. Uma empresa para a qual trabalhei colocou uma meta para contratação de uma recepcionista trans, mas quando eu me recusei a ser apresentada com base nesta característica, senti uma certa resistência por parte da empresa”, afirma.
Com foco em garantir um ambiente de trabalho inclusivo para pessoas transvestigêneres e não binárias, o aplicativo de idiomas Babbel, inspirado pela TransEmpregos, criou o ebook Orientações para a Inclusão Linguística de Pessoas Trans, assinado pela doutora em Linguística e pesquisadora da Universidade de Birmingham (Reino Unido), Carmen Rosa Caldas-Coulthard. O material, já foi acessado por cerca de 3 mil corporações e tem como principal objetivo fornecer informações e repertório para a evolução das políticas de inclusão corporativas.
“A adequação linguística pode ser feita no dia a dia das empresas com ferramentas simples, como uma indicação na assinatura de email a respeito de como ela ou ele prefere ser tratade”, explica Camila Irmer. “As orientações linguísticas partiram de uma pesquisa profunda sobre linguagem inclusiva e engenharia linguística. O Dia Internacional da Mulher é um ótimo momento para avaliar o quanto nós, mulheres, também somos responsáveis por fazer a sociedade mais inclusiva. Nós podemos sim ser mais acolhedoras e respeitosas com todas as mulheres – inclusive as mulheres trans”, finaliza a especialista. (Arebo/#Envolverde)