por Vitória Mendes, para a Agência Pública –
Projeto da ditadura militar no sudeste do Pará expulsou mais de 20 mil pessoas de suas casas; até janeiro último, as famílias ainda estavam recebendo indenizações pelo estrago
Apenas em janeiro deste ano, a Eletronorte, Centrais Elétricas do Norte do Brasil, terminou enfim de pagar indenizações para milhares de famílias deslocadas compulsoriamente de suas casas por causa de uma mega-hidrelétrica na Amazônia. Não, não se trata de Belo Monte, mas de uma história que, mais de 30 anos depois, ainda não acabou para aquelas pessoas: a construção da Hidrelétrica de Tucuruí pelo regime militar.
Entre setembro de 2016 e janeiro de 2017, a empresa de energia pagou R$ 5.088,00 a 2.343 famílias removidas à época da construção da barragem no rio Tocantins. A indenização refere-se a um programa social compensatório que deveria gerar renda através de cooperativas em cada município que faz parte da região do lago de Tucuruí, no sudeste do Pará, o Proset. Não deu certo. “O rastro dessa barragem nos trouxe muito prejuízo”, conta o morador da zona rural do município de Breu Branco, Carlito Nascimento: “Muito prejuízo e muito sofrimento pra todo mundo”, resume a aposentada Olgarina Araújo.
Assim como eles, todos os primeiros moradores do município foram parar lá contra a vontade. O Novo Breu, como é chamado pelos mais antigos, só nasceu por causa da vila de Breu Branco, um dos territórios inundados pelo lago artificial formado pela hidrelétrica. Com 2875 km² de área, o lago formou 1.660 ilhas e levou para o fundo todos os territórios que ficavam entre os municípios de Tucuruí e Jatobal, interligados pela Estrada de Ferro Tocantins, além de terras dos municípios de Jacundá e Itupiranga. Um processo que desde o levantamento inicial, feito por técnicos do governo militar em 1978, até a remoção nos primeiros anos da década de 1980 expulsou mais de 23 mil pessoas de suas casas.
“Quando chegou o tempo da mudança, eles chegaram com o caminhão, botou a mudança em cima, já tinha as casinha aqui pronta, casa de madeira, com telha Brasilit, e aí nós recebemos as casas. Até fiquemo alegre, porque eu não tinha uma casinha como aquela, com banheiro dentro de casa. Só que nós fomos colocados dentro de uma casa, com a mulher e os filhos, sem apoio nenhum”, conta Carlito Nascimento.
Após 32 anos desde a conclusão da primeira fase da obra, as memórias permanecem vivas. Construída entre 1975 e 1985 pela empreiteira Camargo Corrêa e operada pela Eletronorte, a hidrelétrica chegou à vida dessas pessoas acompanhada da promessa de progresso e desenvolvimento para a região. O objetivo era gerar energia a baixo custo para projetos de extração mineral como a Alumínio Brasileiro AS (Albrás) e a Alumina do Norte do Brasil S.A. (Alunorte), no Pará, e o Consórcio de Alumínio do Maranhão (Alumar).
Um dos relatórios da Comissão da Verdade (CNV) destaca que tanto a Usina Hidrelétrica quanto a Estrada de Ferro Carajás foram construídas para apoiar a exploração do minério no Pará e impactaram diretamente não apenas camponeses, como também vários povos indígenas da região. “Os Parakanã, por exemplo, contatados e removidos para possibilitar a estrada Transamazônica, seriam removidos novamente para dar lugar ao lago de Tucuruí. Seriam deslocados cinco vezes entre 1971 e 1977”, afirma a CNV.
Apenas a primeira fase da obra custou US$ 7,5 bilhões, e até hoje existem controvérsias quanto ao valor total, já que o regime era pouco transparente sobre os gastos e a imprensa, censurada. Hoje, Tucuruí gera mais de 8.000 megawatts e abastece parte do Pará, Maranhão, alguns estados do Nordeste e, complementarmente, do Sudeste e Sul do Brasil.
Um relatório da Comissão Mundial de Barragens sobre a usina publicado em 2000 expressa que “a existência de setores até hoje insatisfeitos com as políticas de indenização e ressarcimento indica as consequências da postura existente à época da implantação do empreendimento de negar a existência de conflitos de interesse em relação ao projeto, em nome de um ‘interesse geral’ definido por ‘instâncias superiores’. A indefinição de uma política setorial para o trato das questões sociais determinou que os critérios de indenização e ressarcimento dos segmentos sociais afetados pelo empreendimento fossem sendo estabelecidos em paralelo aos processos de deslocamento e reassentamento, pressionados pelos movimentos sociais organizados”.
Deslocamento e memória
Jorge Mercês, antropólogo do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará, argumenta que o deslocamento compulsório causado pela barragem gerou efeitos além dos que podem ser compensados com indenizações: “O que a gente tem como narrativa central dessas pessoas é a ideia de que eles não estão no lugar deles. É a ideia do não pertencimento, do não fazer parte daqueles espaços onde estão. E como manifestam isso? Visivelmente através da incessante reforma nas casas. Há 32 anos os moradores vêm reformando as casas deles”.
A moradora Osmarina Carvalho concorda: “Se não tivesse barragem, a gente não saía, não. De jeito nenhum. Porque a gente vivia bem, né?”. Carlito Nascimento lembra-se de cada detalhe do lugar afogado: “Era uma vila pequena, tinha umas 400 casas, mais ou menos. Mas era muito boa de se morar. Pra ser sincero, eu ainda não morei num lugar melhor do que lá. Fartura, tinha de tudo. Se a gente fazia uma rocinha pra ajudar, aí pronto, não precisava mais de nada. Porque tinha castanha à vontade. Peixe sobrava, caça também… Eu tinha uma vida boa, que a gente não consegue esquecer”.
A vila que hoje existe apenas na memória fazia parte de uma região onde 14 povoados se constituíram à margem da Estrada de Ferro Tocantins, cuja construção foi iniciada em 1893 e concluída só em meados do século seguinte. À beira da ferrovia de 117 km, famílias, igrejas, escolas, pequenos comércios e comunidades se formaram. O transporte era um meio para as trocas comerciais, em especial o escoamento da castanha-do-pará, abundante na região. O tráfego de trem começou a ser interrompido em 1967 e foi desativado em 1973.
Localizada a sete horas de distância de Belém e a 15 minutos da Vila Permanente de Tucuruí, a atual cidade de Breu Branco, ou Novo Breu, para os moradores, tem uma população estimada em 62.737 habitantes, segundo o IBGE. O comércio e a prestação de serviços são importantes atividades econômicas, já que a desconexão com o rio Tocantins não permite o desenvolvimento da agricultura, pecuária e extrativismo de forma expressiva. O setor industrial é o maior responsável pelo Produto Interno Bruto da cidade, embora seja a segunda atividade que mais gera empregos, ficando atrás dos serviços. A principal atividade é a extração de madeira.
Por meio da Gerência de Implantação de Ações Socioambientais, a Eletronorte afirma que “onde existiu alegação de que a Eletronorte impactou, ela esteve no local, fez o levantamento com técnicos especializados e avaliou em função de valores de mercado, levando em consideração o social – a parte sentimental inclusive –, e ressarciu. Aqueles que não concordassem com o resultado dessa análise tinham a liberdade de ir à Justiça”, explica o engenheiro Francisco Assis Fernandes.
Segundo ele, foram abertos 5.700 processos exigindo indenização pelas casas e roças inundadas por causa da formação do lago à época da construção da barragem – todos os casos, diz o engenheiro, foram pagos.
No entanto, para muitas famílias, o valor recebido não foi o suficiente para compensar as perdas, o que gerou sentimento de injustiça. São homens e mulheres que mesmo após as décadas transcorridas ainda sentem as consequências da desterritorialização – e não se conformam com o afogamento de suas histórias. A Pública ouviu o relato de três mulheres, hoje idosas, sobre a vida inundada por Tucuruí.
Por conta de um escorregão, Olgarina lembra que o joelho doía e latejava, impedindo-a de ir muito longe da rede onde deitava todas as noites. Uma chuva forte alagara o pedaço de terra na Vila Permanente, onde os deslocados pela Usina Hidrelétrica de Tucuruí montaram acampamento em 2004. Mas Olgarina sabia que precisava estar ali cozinhando carcaça de peixe, resto de carne ou algum alimento doado num fogão improvisado, aquecido com a lenha descartada na feira. “Pra ir atrás dos meus direitos. Se hoje em dia eu tenho é porque corri atrás.”
A razão que levou Olgarina a passar um ano e 20 dias “debaixo do plástico”, como ela descreve o único episódio de sua vida cuja duração quantifica com tanta exatidão, foi o afogamento de sua história anterior. Todos os lugares onde viveu antes de ser levada para Breu Branco submergiram no lago imponente de Tucuruí.
Nascida no povoado chamado Km 52, nome do trecho em que se localizava à beira da Estrada de Ferro Tocantins, Olgarina construiu a maior parte de sua vida nessa região do médio Tocantins. Depois se mudou para a “Funaia”, território indígena da Funai, e de lá seguiu para “Remansão do Centro”, onde se casou pela primeira vez e teve três filhos, e onde o marido –cujo nome prefere não mencionar – a abandonou. “Nunca tive tempo pra gozar a vida e brincar, porque era desse jeito as coisas. Mas também nunca dei nenhum filho meu, criei tudinho”, orgulha-se. Do Remansão, foi para o Breu Velho, onde casou pela segunda vez. “Lá no Breu tudo era mais fácil. Lá era a melhor praia do mundo que tinha. Era só peixe bom. Naquele tempo era muito bom, menina! Até as festa era boa. Agora não presta mais”, diz.
Foi em um dia comum no Breu que a notícia da construção da barragem chegou. Ela conta que precisou assinar, mesmo sem saber ler, diversos documentos, como o Termo de Desistência, em 10 de maio de 1980. Ali declarou, contra a sua vontade, ter “ciência” de que a área ocupada passava a integrar patrimônio da Eletronorte e que nada mais lhe pertencia. Quando chegou ao Novo Breu, não havia água encanada. Todos usavam um banheiro que ficava na rua, coletivo. “Nós sofremos demais nesse Breu”, diz. Para sobreviver, ela contou com os alimentos que ainda sobraram da antiga casa. “Tudo era mato. Tinha um alojamento da Camargo Corrêa e na hora do almoço as crianças iam pedir marmita pra eles. A merenda do colégio também salvou.”
O terreno que a empresa concedeu aos moradores para a roça era longe das casas, e não havia transporte para chegar até lá. O remédio foi arranjar um emprego em uma das mais de 200 serrarias que se instalaram na região, “carregando farrapo pra jogar dentro do fogo”. Depois, ela passou mais quatro anos como empregada doméstica, trabalhando na cozinha, cuidando da casa, lavando roupa à mão. “Foi no tempo que eu tava cansada, não tava aguentando tanta canseira.”
Quando as 23 comportas da usina foram abertas pela primeira vez, despejando mais de 5 mil metros cúbicos de água por segundo na região da jusante do rio Tocantins, o nível do lago baixou consideravelmente. Os deslocados organizaram uma viagem de barco pelo lago e Olgarina participou, mas já não se lembra ao certo do ano. Conseguiram passar dois dias acampados nos seus antigos lugares e puderam rever os restos do que tinha ficado submerso. Algumas pessoas tentaram tirar do antigo cemitério os corpos dos seus familiares mortos para levar ao cemitério do Novo Breu. Não conseguiram. “Esses morreram duas vezes”, comenta ela.
Com o dinheiro da indenização pelo Proset, recebido em outubro de 2016, Olgarina planeja concluir a reforma da casa em que vive até hoje. A casa ainda não tem cores, mas já possui uma porta de vidro, janelas novas, móveis, dois quartos e a televisão em que assiste às novelas baseadas em histórias bíblicas. No quintal, ela cria patos, galinhas, cachorros e gatos e cuida de várias plantas. Frequenta o culto da Igreja Mundial e costuma sentar-se na frente do portão para conversar com os vizinhos e pegar um vento. Costuma ir a Parauapebas para visitar a filha. Seguiu a vida.
Sentada na varanda de casa, Maria Iraídes irrita-se com os óculos novos. Evita abaixar a cabeça para que não caiam. Óculos, a encomenda de uma dentadura, um muro de alvenaria e três ofertas em três igrejas diferentes foram o destino do dinheiro que recebeu como indenização pela Eletronorte em novembro de 2016.
O muro, construído pelo filho que não via havia mais de 20 anos, trouxe a alegria de um reencontro e a proximidade do sonho de ter uma casa de alvenaria, já que ainda hoje a sua é de madeira. Um começo, afinal. As ofertas, nas igrejas Católica, Assembleia de Deus de Tucuruí e Mundial – evangélicas –, são uma prestação de contas de quem atribui a Deus todas as bênçãos recebidas.
A vida deixou Iraídes desacostumada do usufruto da graça alcançada. A aposentada dorme e acorda cedo, rega as plantas dia sim, dia não, faz almoço, alimenta os animais, limpa a casa, fica na varanda, escuta o rádio. A imensidão de samambaias, cactos e flores em cada área aberta do terreno torna a casa rosada ainda mais vívida.
A pequena construção com sala, cozinha, três quartos e um quintal tem ainda hoje a mesma estrutura de madeira original oferecida pela Eletronorte no começo dos anos 1980. Mas não há um detalhe sequer que não tenha sido transformado pelas mãos da dona: paredes pintadas de rosa, verde e azul, paninhos de crochê amarelos em cada superfície, quadros e imagens de santos, flores artificiais das mais variadas cores em vasinhos coloridos, cortinas e capas de sofá estampadas. Cada detalhe representa sua tentativa de transformar o espaço em um lar.
Nascida em Alcobaça – quando ainda Tucuruí assim se chamava –, perdeu os pais muito cedo. Foi morar com a avó e outros parentes no Breu Velho. “Fui uma sofredora pelas próprias mãos dos meus parentes”, diz. Entre as lembranças mais duras estão a proibição de estudar e a obrigação de fazer todos os serviços domésticos ao som de ofensas racistas vindas de quem deveria ter ofertado acolhimento e amor.
A pessoa de sua história a quem se refere com mais carinho e saudades é o seu amor: Gabriel. E reconta como se conheceram. Ela tinha acordado às 4h, como sempre, e já cedo estava de pé varrendo a frente da casa, cumprindo a primeira das obrigações do dia. Ele apareceu e eles trocaram alguns olhares. “Ocê vai varrer o terreiro da nossa casa quando nós casar”, anunciou o garimpeiro. O ano era 1949, mês de abril, disso ela lembra com clareza. Também tem certeza do que o trouxe à sua porta: “Foi mandado por Deus, não tem quem tire”. Gabriel foi um dos milhares de migrantes que trabalhavam com garimpo de diamante e cristal, atividade expressiva no médio Tocantins a partir da década de 1940.
No ano seguinte, também em abril, ele apareceu de novo, dessa vez para cumprir a promessa: falou com a avó e pediu em casamento a jovem que mal conhecia. “A minha vó era carrasca, ruim. O pessoal de casa dizia: a bicha tá com fogo no rabo com negócio de casar.” Ninguém concordou. Mesmo assim, com a proteção de um padrinho conhecido na região, casaram-se em 8 de setembro de 1950 na igreja de São Sebastião, o padroeiro do Breu. Construíram uma família, quatro filhos, e tantos netos e bisnetos que nem consegue contar. Foram tempos de fartura. Do canavial, produziam mel e rapadura. Criavam gado, jumento, burro, plantavam arroz, feijão, banana. “Foi um casamento feliz que Deus me deu. Foi um marido muito bom. Ele tinha os olhos verdes igual o gatinho que aparece aqui na rua.”
Gabriel faleceu em 3 de fevereiro de 1970. Poucos anos depois, Iraídes recebeu a notícia de que uma barragem levaria para o fundo do lago o que construíra.
Ao chegar a esse ponto de sua narrativa, o relato fica mais monossilábico e perde a riqueza de detalhes. “Os funcionários [da Eletronorte] chegaram lá e tiraram retratos das casas”, resume. Em 1993, aos 52 anos, conseguiu a aposentadoria.
Na casa mais colorida e cheia de plantas da cidade, Iraídes fica em silêncio olhando para algum ponto fixo, os pensamentos voando, voando. “Tem vezes que lembrar do Breu dá vontade de chorar”, diz.
Iraídes não gosta de viajar ou sair de sua rotina, tem medo de acidentes na estrada, no ar ou nas águas. Suas amigas são as mesmas desde o Breu Velho. Dona Olgarina, dona Maria Batista, a comadre Joana de Tucuruí, Osmarina e mais algumas outras que já faleceram. Entre as poucas aventuras, se permitiu ir a Belém. Gostou muito.
O acervo de fotos não deixa Osmarina esquecer o que ficou no fundo da água. Ela olha para cada um daqueles pedacinhos de papel gastos, envelhecidos, e vê um tempo saudoso, uma rotina há anos interrompida. Osmarina espalha as fotografias sobre a mesa de sua sala e conta as lembranças cheias de afeto do Breu.
Nascida em Cametá, no nordeste paraense, morou em Tucuruí, onde conheceu Isaque, o marido com quem teve os filhos e até hoje é sua companhia para assistir ao jornal na televisão em silêncio, comentando uma coisa ou outra.
A vida em Tucuruí ficou difícil, o que ocasionou a mudança para a pequena vila em um ano que não lembra. No mesmo período, milhares de camponeses migraram para essa região do médio Tocantins para trabalhar com a castanha-do-pará. “No Breu era mais fácil, era só buscar.” A terra dava açaí, bacaba, cupuaçu, castanha. O rio dispensava a necessidade de comprar peixe no mercado. “Os homens iam pescar e na volta diziam ‘vizinha, vem buscar uma bacia de peixe!’”. No grande quintal de casa plantava maracujá, feijão-verde, batata, jerimum.
Ali viveu durante 24 anos. Na vila havia um motorzinho que ligava às 6 da tarde e funcionava até 10 da noite; a geladeira funcionava a gás.
Osmarina costurava, bordava, fazia crochê, pintava panos, cuidava da família. Em suas fotos, os meninos brincam durante a festa do dia 7 de setembro, a maior e mais importante da região. São Sebastião, o padroeiro, também tinha festa no mês de janeiro e até que poderia ter sido o nome do vilarejo – mas o breu branco era uma árvore imponente de onde caía uma resina que deixava o chão brilhando, amarelinho. Dessa resina Osmarina e outras moradoras faziam perfume. Então as pessoas que ali moravam se acostumaram a chamar a vila por esse nome. E assim ficou.
A suavidade no tom de voz e o sorriso sincero no rosto não se apagam nem quando lamenta a perda do lugar ao qual se sentia pertencer. “Os engenheiros chegaram e foram lá pra beira do rio. A gente pensou: ‘Meu Deus, o que esse povo tá fazendo aqui?’. Aí depois começou a chegar os outros pra dizer que ia indenizar as casas. Iam lá e tiravam foto de todo jeito. Tiravam foto do nosso quintal, da rua, dos menino da gente. Aí no final, quando a água já tava crescendo mesmo, aí chegaram: ‘Ó, o caminhão tá aí na porta pra vocês mudar’.” Ela recebeu 65 mil cruzeiros de indenização pelas três casas que tinha (para comparação, o salário mínimo em novembro de 1980 era de 5 mil e 800 cruzeiros). “Quando a gente tá num lugar, pensa que nada vai acabar. Podia ter trazido pelo menos umas pedras. Tinha umas pedrinhas lá, clarinhas, que a gente enxergava de um lado pro outro, tipo um cristal”, lamenta.
Osmarina lembra que ao chegar ao Novo Breu havia 80 casas de madeira construídas, com três quartos, sala e cozinha. “Ah, filha, foi sofrimento… porque não tinha nenhum comércio, né?” O marido ia de bicicleta até o porto da balsa, em Tucuruí; saía às 5 da manhã para conseguir comprar alimentos. Diferentemente de algumas amigas do antigo Breu, Osmarina não participou diretamente das lutas políticas, preferiu reconstruir a vida junto à família. Por isso, não fez parte do programa Proset nem recebeu as indenizações recentes.
Atualmente, Isaque é dono de uma pequena fábrica de pré-moldados, e Osmarina é aposentada rural. A casa de alvenaria, mobiliada, é o lugar onde filhos, netos e bisnetos se reúnem nos fins de semana. Apesar de ser grata por ter conseguido reconstruir a vida no Novo Breu, a senhora considera que a barragem foi um evento desastroso: “Isso aí foi a maior devastação do Brasil, foi essa barragem de Tucuruí”.
Ao subir as escadas para o segundo andar da casa, ainda em obras, é possível ver que Osmarina está erguendo uma floresta no cimento. Pediu que um pintor reproduzisse nas paredes desenhos de animais, árvores e rios. A casa 198 da travessa Bolívar – assim como as de muitos primeiros moradores da cidade – ainda não é um projeto concluído.
Publicado originalmente por Agência Pública: https://goo.gl/VR5fHY
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