Por Beatriz Coutinho, Cecília Mombelli, Kelly Agopyan, Laira Tenca e Mariana Corrêa (MaRIas)*, de Outras Palavras –
Publicação de artigos por pesquisadoras caiu muito desde março, indicam pesquisas. Sobrecarregadas com trabalho de cuidado e sem incentivo, autoras vêm sido minoria em revistas científicas. Situação piora para negras e mães
A pandemia da covid-19 intensificou questões sociais já latentes na sociedade. O prolongamento do isolamento social e da exposição ao vírus sofridas por algumas profissões coloca em evidência as funções que mulheres e homens desempenham na sociedade, destacando a posição de maior vulnerabilidade enfrentada pelas primeiras. O home office aprofundou a diferença e expôs o peso que o trabalho reprodutivo exerce sobre as mulheres. Na produção do conhecimento científico, não foi diferente. A diminuição de publicações encabeçadas por mulheres evidencia a disparidade estrutural de condições de trabalho entre os sexos e cria uma defasagem na carreira de pesquisadoras que infelizmente persistirá durante um longo tempo, mesmo após a descoberta da vacina.
Pesquisas recentes vêm demonstrando empiricamente os efeitos nefastos da pandemia sobre as mulheres. O relatório “Gênero e COVID-19 na América Latina e No Caribe: Dimensões de Gênero na Resposta”, publicado pela ONU Mulheres, apontou as áreas em que os efeitos da quarentena são mais sensíveis para esse grupo. O primeiro e mais preocupante são os impactos econômicos e sociais. São elas que perdem primeiro os empregos, sofrem cortes de salários que normalmente são 30% mais baixos que os dos homens. Elas também acumulam a jornada de trabalho doméstico não remunerado e são responsáveis pela educação domiciliar (homeschooling) de dependentes. O segundo efeito atinge a saúde e a segurança. Inúmeras notícias denunciam o aumento de casos de violência doméstica resultante do isolamento social que, muitas vezes, aproxima a convivência da mulher com seu agressor. Além disso, há maior dificuldade de buscar ajuda ou de acessar serviços de saúde necessários para os casos de violência
O terceiro ponto diz respeito à ausência de mulheres nas tomadas de decisões de políticas de resposta à pandemia, ainda que elas sejam a maioria das profissionais da linha de frente. Estudos da ONU apontam que, quando há mais mulheres no processo decisório, as políticas elaboradas são mais efetivas. Países com lideranças femininas e com maior protagonismo de mulheres em pastas ministeriais ou no parlamento, como Nova Zelândia, Taiwan, Alemanha e Dinamarca, tornaram-se referência no combate à covid-19. Por outro lado, em países como o Brasil, elas não participam dos processos decisórios, já que encontram mais obstáculos para alcançar posições de liderança. O próprio Centro de Contingência da Saúde do Governo do Estado de São Paulo tem apenas uma representante mulher – a Diretora do Centro de Vigilância Epidemiológica, Helena Keico Sato – em um grupo de 18 pessoas.
A divisão do trabalho sexual e reprodutivo tem relegado às mulheres os serviços de maior risco e contaminação. No Brasil, 84,7% dos auxiliares e técnicos de enfermagem são mulheres e 92% do emprego doméstico é exercido por mulheres, sendo que 68% delas são negras. Em maio, o decreto de lockdown no Pará chocou por classificar o serviço de empregadas domésticas como essencial. A justificativa do prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho, é que “médicos e médicas precisam de alguém para ajudar em casa”. Nessa mesma lógica, quem ajudaria as próprias empregadas em suas casas? O caso do menino Miguel, que caiu do edifício de luxo em Recife, responde a essa pergunta.
Academia misógina?
No caso das mulheres pesquisadoras, problemas crônicos referentes ao seu trabalho somam-se ao contexto da pandemia. De acordo com os pesquisadores do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppead/UFRJ), Marcos Mendes e Ariane Figueira, um deles é a falta de encorajamento dado pelas famílias, em especial pais e maridos. Um outro problema que elas enfrentam são os vieses do sistema, que dificultam suas ascensões na carreira, assim como o acesso a oportunidades educacionais, como bolsas de pesquisa. Por fim, elas sofrem com mansplaining, manterrupting, assédio moral e assédio sexual, tendência à avaliação negativa de alunos e alunas devido às expectativas relativas aos papéis de gênero.
Durante a pandemia, as mulheres acumularam mais horas do já existente trabalho doméstico. Além disso, a crise política e econômica afeta diretamente seu rendimento, tendo em vista o cenário de instabilidade e incerteza sobre investimentos em pesquisas pelo Estado, ligada ao recente desmonte de políticas do Ministério da Educação (MEC) e a reestruturação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Na proposta pelo atual governo, as áreas de humanas são classificadas como não essenciais e não prioritárias para o financiamento público. A precarização já existente foi agravada também no setor privado. Em uma rede de educação universitária em São Paulo, professores foram demitidos por meio de uma mensagem na plataforma que usavam para ministrar aulas. Dias depois, outras duas redes de ensino no mesmo estado fizeram demissões em massa que, de acordo com o G1, podiam chegar a 30%. Uma delas é controlada pelo grupo Anima, ironicamente um dos signatários e idealizadores do manifesto “Não Demita”.
Como é medida a produtividade na academia?
Na carreira acadêmica, as publicações compõem a principal métrica da produtividade das pesquisadoras e pesquisadores. Editais de concursos de doutorado, financiamento de bolsas ou pesquisas, promoções na carreira e atribuição de prêmios e distinções exigem um número mínimo de publicações. Estas podem ser em revistas, capítulos de livro ou mesmo em anais de congressos. A conciliação das atividades de pesquisa com cargos administrativos em revistas, programas de pós-graduação e nos quadros da universidade também são elementos que impulsionam carreira.
Em tese, uma pesquisadora no auge da carreira é aquela capaz de conciliar docência, cargos administrativos, orientações de mestrandas e doutorandas, eventos internacionais, grupos de pesquisa e publicações de “alto nível” em revistas de “alto impacto”, inclusive em língua estrangeira A baixa remuneração das bolsas de pesquisas, que variam de R$ 1,500 para estudantes de mestrado ou R$2,500 para estudantes de doutorado em tempo integral, sem reajuste inflacionário desde 2013, é um limitador das atividades.
Mulheres produzem menos?
O rendimento acadêmico, refletido na submissão de artigos – menor que a de homens mesmo em tempos “normais” – foi um dos pontos afetados nos últimos meses. Ainda que não seja possível ter um resultado conclusivo, algumas revistas já apontam, preliminarmente, uma redução da submissão de artigos por mulheres nos meses de quarentena. Esse é o caso da revista Dados (Revista de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ). Na série histórica analisada entre 2016 e o primeiro trimestre de 2020, a média de artigos em que mulheres eram co-autoras ou autoras (não importando a ordem de autoria) foi de 40.8%. No segundo trimestre de 2020 (em andamento no momento do levantamento dos dados), a porcentagem foi de 28%, a menor registrada do período todo analisado. Os índices são ainda piores quando se observa a porcentagem de submissão de mulheres como primeiras autoras: a média entre 2016 e primeiro trimestre de 2020 foi de 37%, enquanto, no segundo trimestre de 2020, caiu para 13%.
A revista American Journal of Political Science (AJPS) realizou um levantamento semelhante relativo à autoria de mulheres em artigos submetidos à revista durante o período da pandemia. O período prévio de 2017 a 2019 já apresentou dados alarmantes em relação à desigualdade de gênero: 65% dos manuscripts submetidos foram por homens, tanto individualmente como em co-autoria entre apenas homens. Já a análise feita entre 15 de março e 19 de abril de 2020 aponta que a revista não identificou diminuição das submissões de artigos com pelo menos uma mulher entre os autores (a porcentagem foi de 38%, maior do que a de 35% da série histórica analisada no período anterior à pandemia). Contudo, a proporção de mulheres como autoras individuais caiu durante esse período, correspondendo a apenas 17% de todos artigos submetidos de única autoria (contra 22% do período anterior).
O que os números escondem
Por mais reveladores que sejam os dados, eles não apontam as causas da menor produtividade feminina. Em busca dessa resposta, o projeto “Parent in Science”, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), analisou o impacto da maternidade e da paternidade na carreira científica no Brasil. Nos levantamentos iniciais, realizados de forma online entre 2017 e 2018, 81% dos entrevistados afirmaram que a maternidade/paternidade tinha impacto em sua carreira científica. Desses, 59% o consideravam negativo. Além disso, 54% dos entrevistados com filhos respondeu que a mãe era a única cuidadora. A partir da análise de currículo lattes, verificou que a redução do número de publicações de pesquisadoras se dá nos quatro anos após a maternidade. O impacto é prolongado no tempo, extrapolando o ano da licença-maternidade.
Em relação à pandemia, o “Parent in Science” lançou nova pesquisa intitulada “Produtividade acadêmica durante a pandemia: efeitos de gênero, raça e parentalidade”. Entre os mais de três mil respondentes, apenas 4,1% das pesquisadoras com filhos estão conseguindo trabalhar normalmente na quarentena, contra 14,9% dos pesquisadores pais. Em relação à submissão de artigos científicos, os dados são mais alarmantes: 61,1% dos pesquisadores pais (de crianças de menos de 1 ano) estão conseguindo publicar normalmente, contra 32% das pesquisadoras mães. A discrepância contínua mesmo quando os filhos são mais velhos (entre 1 e 6 anos de idade): apenas 28,8% das mães pesquisadoras estão publicando normalmente na quarentena, contra 52,4% dos pais pesquisadores.
Além das questões de gênero e maternidade/paternidade, um outro fator que influi na desigualdade é a raça. Segundo os dados do mesmo relatório, pesquisadoras negras têm mais dificuldade de trabalhar de forma remota e, por conseguinte, submetem menos artigos do que o planejado. Mulheres negras, nos cinco primeiros anos da carreira acadêmica, produzem menos do que mulheres brancas, homens brancos e homens negros em tempos de pandemia. A situação se agrava mais se elas forem mães e, principalmente, se os filhos tiverem menos de cinco anos. O gráfico feito pela organização Gênero e Número demonstra um panorama dessa desigualdade.
O poder delas…
Vencidas as adversidades, as pesquisas de mulheres produzem impactos na sociedade. As pesquisadoras da USP Ester Sabino e Jaqueline de Jesus foram responsáveis pelo sequenciamento genético do COVID19 em apenas 48 horas. Sônia Corrêa, coordenadora do Sexuality Policy Watch (SPW), ao lado de pesquisadoras e colaboradoras desse Observatório publicam relatórios especiais mensais sobre a pandemia e os direitos sexuais e reprodutivos e as condições de gênero, criando uma importante base para que assessoras e gestoras públicas desempenhem seu trabalho no sentido da garantia de direitos em meio à crise sanitária. Ao olharmos para o resultado, fica evidente a necessidade de políticas específicas e bolsas de fomento, que levem em consideração todas essas questões de gênero, para possibilitar que essas mulheres continuem realizando diversas pesquisas e coordenando projetos que propõe soluções para os problemas da sociedade. Mais mulheres na academia — e em posições de liderança — é benéfico para o avanço da ciência como um todo.
… e o preço dele
Em momentos de crise, a compreensão das fragilidades de grupos sociais é ampliada quando o aumento dos riscos e da vulnerabilidade é apoiado em problemas antigos e mistificados. O exercício de pensar a realidade das mulheres pesquisadoras é um convite para a reflexão acerca de outras profissionais. Pensar o trabalho das mulheres na pandemia em suas contraditórias condições de remuneração e não remuneração, bem como a maneira que essas atividades são atravessadas por questões de raça e classe, é urgente para desconstruir o mito de que o ingresso no mercado de trabalho é por si só libertador para elas. Pesquisadoras, empregadas domésticas, enfermeiras, cientistas, jornalistas, médicas, políticas, vendedoras e cozinheiras não serão livres caso seus trabalhos representem risco, instabilidade, baixos salários e sua única atividade remunerada dentre muitas outras não remuneradas.
Integrantes do MaRIas – Núcleo de Estudos em Gênero e Relações Internacionais dxs alunxs da Pós-Graduação do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI/USP).
#Envolverde