O relatório da Controladoria Geral da União – CGU, que apresenta problemas de planejamento capazes de impedir a operação, manutenção e sustentabilidade da transposição do rio São Francisco, “não traz para os mais esclarecidos nenhuma novidade”, diz Altair Sales Barbosa. Segundo ele, muito antes da conclusão do relatório, “estudiosos da bacia do São Francisco, bem como os conhecedores da dinâmica do rio, alertaram por meio de audiências, publicações e movimentos, quanto aos riscos da execução desse projeto. Infelizmente a classe política se fez surda, não deu ouvidos. Só não ficou muda porque expressava as opiniões de burocratas ‘geniais’ que os alimentavam com argumentos surgidos entre quatro paredes e totalmente desprovidos de conhecimentos concretos”.
Altair Sales Barbosa possui graduação em Antropologia pela Pontificia Universidad Católica de Chile, doutorado em Arqueologia Pré-Histórica pela Smithsonian Institution – National Museum of Natural History, de Washington, Estados Unidos. É coordenador do projeto Enciclopédia Virtual do Cerrado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, do qual é sócio titular.
IHU On-Line – De acordo com o relatório da Controladoria Geral da União – CGU, existem problemas de planejamento capazes de impedir a operação, manutenção e sustentabilidade da transposição do rio São Francisco. Como o senhor avalia esse relatório? Ele trouxe alguma novidade?
Altair Sales Barbosa – A obra da transposição do rio São Francisco sempre teve um viés muito mais político do que social ou científico. O empreendimento, que envolve as grandes empresas construtoras do Brasil e as grandes empresas de engenharia elétrica, tem na sua base um alicerce falso, pois fala que seria realizada para atender as necessidades das populações rurais, cujas produções agrícolas e criações de animais padecem na época da estação seca. Na realidade este quadro continua e foi acentuado com as obras da transposição. Este alicerce é falso, porque esconde desde o início o real propósito da transposição, que era patrocinar grandes projetos de irrigação dos grandes latifundiários do Nordeste, padrinho e patrocinadores dos coronéis da política regional, cujo modelo é o mesmo desde o início da colonização. Portanto o relatório da CGU sobre a sustentabilidade da transposição do rio São Francisco não traz para os mais esclarecidos nenhuma novidade.
Todos os estudiosos da bacia do São Francisco, bem como os conhecedores da dinâmica do rio, alertaram por meio de audiências, publicações e movimentos, quanto aos riscos da execução desse projeto. Infelizmente a classe política se fez surda, não deu ouvidos. Só não ficou muda porque expressava as opiniões de burocratas “geniais” que os alimentavam com argumentos surgidos entre quatro paredes e totalmente desprovidos de conhecimentos concretos.
O relatório da CGU, que agora critica a falta de planejamento para garantir a manutenção e sustentabilidade, teria que ser convincente e questionador antes de as obras iniciarem. Teria que ser ouvida a comunidade científica brasileira, teria que conhecer a dinâmica dos rios do cerrado e sua realidade, também deveria ser conhecida a realidade e a experiência dos ribeirinhos. O relatório também traz falhas horríveis em relação ao conhecimento de toda bacia do São Francisco. Foca só em problemas locais, não tem visão da totalidade.
Todo trabalho de planejamento ambiental e organização do espaço que não leve em consideração a história evolutiva dos elementos envolvidos e que não considere as vocações regionais, traz como consequência problemas de difíceis soluções, alguns irreversíveis.
IHU On-Line – Que tipo de alternativas são propostas para resolver os problemas gerados pela transposição?
Altair Sales Barbosa – Uma vez surgidos tais problemas, procuram-se soluções paliativas como tentando curar uma ferida apenas cobrindo-a com um esparadrapo. Como é o caso da Resolução da Agência Nacional das Águas – ANA nº 1.043 de 19/06/2017, denominada Dia do Rio, cujo objetivo é reforçar as ações que vêm sendo adotadas para preservar os estoques nos reservatórios da bacia do rio São Francisco. A resolução determina que todas as quartas-feiras a captação de água da bacia seja proibida, exceto para abastecimento humano e animal.
A resolução da ANA deixa uma brecha em não incluir de forma absoluta os corpos hídricos que não são considerados como domínio da União, mas que integram a bacia do São Francisco e são vitais para a perenização deste rio. Embora deixe claro que serão feitas articulações com os estados e comitês da bacia, sabemos pela prática que essas medidas são inoperantes.
Aparentemente a resolução da ANA, que estabelece o Dia do Rio, parece boa. É! Mas não é, porque ao proibir a retirada da água em alguns trechos específicos por empreendimentos agropastoris e indústrias, a resolução visa preservar água para os reservatórios, que por sua vez irão alimentar a geração de energia e também alimentar outras defluências danosas, como é o caso dos canais da transposição. Portanto, se penetrarmos além das aparências, vamos notar que a Resolução deixa falhas em não entender a bacia hidrográfica dentro de sua totalidade, da mesma forma que deixa dúvidas quanto a quem na realidade serão os beneficiados com tais medidas.
Outro ponto obscuro é a restrição aos cursos d’água superficiais, demonstrando total desconhecimento dos ciclos hídricos regionais, pois não faz menção às águas subterrâneas, tão ou mais importantes que as águas superficiais. Parece que o ciclo hidrológico se restringe às chuvas, o que não é verdadeiro. Portanto, é importante considerar a utilização das águas subterrâneas nos processos de irrigação, efetuados através de poços artesianos.
A resolução que cria o Dia do Rio é um exemplo claro da falta de planejamento e de conhecimento dos processos que envolvem o rio São Francisco. Também pode ser citado como exemplo de falta de planejamento a ausência de conhecimento da ocupação humana regional.
IHU On-Line – Qual é a situação do desmatamento no entorno do rio São Francisco? Quais são as consequências do desmatamento para o rio?
Altair Sales Barbosa – Em 1972, no Primeiro Simpósio sobre o Cerrado, já chamávamos a atenção para a preservação do chapadão ocidental da Bahia até o limite com as cristas do Bambuí, hoje limitando com os Estados do Tocantins e Goiás, pois as águas subterrâneas naquela época ali existentes seriam uma grande reserva de água potável para o Brasil. Mas não foi isto que aconteceu. Por serem consideradas erroneamente “terras devolutas”, o governo federal as repartiu para grandes empresários, nacionais e internacionais, que recebiam no mínimo 25 mil hectares; a única coisa que deveriam dar em troca era o desmatamento da região. E assim, por falta de conhecimento e planejamento adequado, começou essa nova ordem territorial, que em pouco tempo traria um quadro irreversível de prejuízos ambientais e sociais para a região.
No caso específico dos alimentadores do rio São Francisco, alguns nascem em Goiás, como é o caso da Lagoa Feia no município de Formosa, que contribui com vários afluentes para o rio Paracatu. Outros, nascem no Jalapão Tocantins, caso do rio Preto, mas a grande parte nasce no Espigão Mestre, início das campinas, baianas, mineiras e piauienses.
Pois bem, com a implantação deste novo modelo de organização territorial, iniciou-se o maior processo de desmatamento no Brasil, feito a correntões. Foi só uma questão de tempo para que as nascentes não só dos córregos, mas também dos rios começassem a migrar das partes mais altas para as mais baixas, e alguns córregos secaram totalmente. Por que isso aconteceu? Porque sem a vegetação nativa a água da chuva não penetrava mais como anteriormente e não recarregava os aquíferos, e estes foram baixando de nível num processo contínuo, embora o índice pluviométrico permanecesse o mesmo.
O curioso nesta situação é que ainda não haviam sido desenvolvidas tecnologias para a correção completa dos solos regionais, por isso as plantações iniciais com eucalipto e pinheiro não deram certo. Tempos depois é que foram aperfeiçoadas as tecnologias que permitiram o plantio de várias espécies, utilizando-se para isto calcário específico, muito adubo químico e uma quantidade imensa de agrotóxicos. Muitos proprietários abandonaram as iniciativas ou venderam as terras para outros grupos de empresários que, com a utilização de novas tecnologias, foram se apropriando de áreas ainda maiores. Essas tecnologias, associadas, à época, a uma fartura de água, logo permitiram o avanço das fronteiras que cada vez produzia mais e despertava a ganância de muitos produtores que foram diversificando suas culturas.
Com a expansão da exportação, esse processo tornou-se uma corrida incontrolável, atraindo para o local um capital dinâmico e predador utilizando como discurso o enriquecimento fácil e a fartura de empregos. Ambos os fatores não aconteceram, primeiro porque os grandes proprietários que não conheciam a região expulsaram das terras as pessoas que tradicionalmente as usavam sazonalmente para a criação de animais bovinos e equinos. Num segundo momento, com a mecanização, tirou do campo aquelas pessoas que acreditavam num emprego duradouro. Os empregos tornaram-se sazonais e eventuais, sem carteira assinada e sem garantia. Num terceiro momento, comunidades existentes nos Gerais, que praticavam a agricultura familiar, foram totalmente desestruturadas.
Este fenômeno gerou uma situação esdrúxula, pois os camponeses ao serem expulsos das terras foram-se agregando ao redor dos postos de serviços implantados ao longo das rodovias para dar sustentação aos novos empreendimentos. Os homens trabalhavam irregularmente em qualquer tipo de serviço para sobreviverem, as mulheres mais vividas trabalhavam como domésticas, as mais novas foram se prostituindo nos dinâmicos postos de serviços que da noite para o dia se transformavam em verdadeiros polos urbanos.
Só para citar o exemplo do oeste da Bahia, vejam o caso da cidade de Luís Eduardo Magalhães, que há bem pouco tempo era só um posto de gasolina, vejam Roda Velha, que era somente um ponto de parada, vejam o exemplo de Rosário do Oeste, que até ontem era somente Posto do Rosário e por aí vai.
Portanto, os rios foram secando em função do desmatamento, o desaparecimento de córregos menores e lagoas já vem acontecendo desde o início da década de 80. Eu mesmo, levei à região várias emissoras de televisão de nível nacional e internacional alertando para a situação. Foram mais de 16 programas a nível nacional e internacional. O grande poeta, escritor, gênio e músico Elomar Figueira de Melo já alertava através de suas crônicas musicais o que estava acontecendo no Sertão-de-Dentro, como ele denomina os Gerais, mas os políticos do litoral nunca se atinaram.
Outra coisa importante a salientar é que as cidades e dezenas de povoados ao longo do Corrente foram o berço de pessoas de expressão internacional, intelectualmente falando, como o escritor Ozório Alves de Castro, que inspirou Guimarães Rosa; como o escritor, educador e cientista político Clodomir de Morais, o único brasileiro a desfilar em carro aberto com Yuri Gagarim, além de criar várias Universidades mundo afora; como o Mestre Guarany, criador das imortais carrancas do São Francisco; ou como Raimundo Sales de Correntina, exímio inventor. Essas pessoas, só para citar algumas, aprenderam observando os rios que passavam. Por isso o rio, para essa imensa população, é muito mais sagrado do que se imagina. E a manifestação e a revolta do povo de Correntina, acontecida recentemente nas fazendas do rio Arrojado, já estava escrita nas estrelas, como nos canta Tetê Espíndola.
E, se providências não forem tomadas no sentido de devolverem à população o pouco que lhes resta de mais sagrado, outras manifestações semelhantes acontecerão nas regiões do Cerrado, pois todos nós padecemos do mesmo mal.
Outra coisa a frisar é que não é a falta de chuvas que provoca tal situação, e sim o rebaixamento dos aquíferos. Além do que as águas das chuvas que precipitam encontram o solo desprotegido, fazendo com que o escoamento seja mais rápido e o transporte de sedimentos aumente de forma desproporcional, avolumando-se o assoreamento. É o início do fim…
IHU On-Line – O que pode ser feito a partir de agora para reverter esse quadro?
Altair Sales Barbosa – Muitos me perguntam o que tem que ser feito agora. Para responder esta questão teria que enumerar vários pontos, o que tomaria muito espaço e não é este o caso no momento, mas construir um caminho para fortalecer ou implantar uma educação criativa e a pesquisa que leve em consideração as vocações regionais pode ser a agulha da bússola. O prejuízo já ocorrido, este é irreversível, dentro dos parâmetros de conhecimento que atualmente possuímos. Fonte IHU (#Envolverde)