ODS8

Como o mercado de trabalho exclui as pessoas trans

Por Wérica Lima para o Amazônia Real – 

No País que mais mata pessoas trans no mundo, o Brasil abandona Wendy, Thiago, Swamy, Louise, Minzo e tantas outras à própria sorte. Sem políticas públicas efetivas que garantam o acesso e a permanência dessas pessoas em espaços sociais, políticos e culturais, elas também têm de travar uma luta diária para conseguir sobreviver. Travestis, transexuais e transgêneros não conseguem emprego porque a transfobia fala mais alto, ainda que disfarçada de silêncio.

Conseguir uma vaga no mercado de trabalho é uma conquista comemorada por muitos. Para pessoas trans, pode representar uma prisão. Wendy Dias, uma travesti e trans de 40 anos, deixou a comunidade ribeirinha chamada Pesquisa, às margens do rio Arraiolos, interior do município de Almeirim, ainda criança. Aos 12 anos, virou babá em Monte Dourado, município paraense. Nunca viu um salário naquele “primeiro emprego”. “Recebia comida, moradia e estudo para cuidar dos filhos de uma dona da casa, mas vivenciei o trabalho escravo infanto-juvenil”, diz.

A jornada era cruel. Acordava 5 horas para preparar as coisas das crianças que cuidava. Podia estudar, das 13 horas às 17h30, mas ao voltar já tinha de fazer janta e passar roupa. Seu único tempo para estudar era de madrugada. Os dois anos como babá foram marcados por episódios de transfobia. Fiel de uma Igreja Católica, a patroa pregava a “cura gay” de Wendy, que era trans interssexual (quando nasce ou desenvolve características sexuais biológicas que não se encaixam na norma binária de masculino e feminino). “Ela [a dona da casa] colocava o garfo quente nos meus seios para baixar”, relata.

Wendy não tinha apoio da família. Virar babá foi uma forma de ajudar o pai, que ela o via sempre trabalhando muito e não queria ser um peso para a família. “Quando eu consegui emprego voltei pra casa, contei as histórias, eles ficaram muito arrasados”, explica. Aos 19 anos, Wendy Dias viajou para Manaus, tentando finalmente arrumar um emprego decente. Mas entrevista após entrevista era nítido pelo olhar dos entrevistadores que ela jamais iria ser chamada.

Ela resolveu, então, fazer bijuterias regionais e tradicionais, além de pintar unhas artísticas. “Foi quando realmente comecei uma vida financeira. Com a ajuda da minha irmã, fiz o curso de cabeleireira e comecei meu pequeno empreendimento”, lembra. O trabalho por conta própria abriu oportunidades, inclusive algumas adormecidas. Com a experiência em cantar na Igreja Católica desde criança, Wendy decidiu formar uma banda com outros músicos já aos 25 anos. Mas nada foi tão fácil.

Cantando em bailes, bares e no interior do Amazonas por três anos, a artista decidiu deixar a recém-carreira de lado. “Abandonei a música por conta de assédio sexual de contratantes e outros homens que assistiam ao show. Eu era nova e não tinha forças pra lutar contra aquilo. Os contratantes achavam que junto com o show eu podia ir para a cama com eles”, diz.


Wendy durante os protestos contra o presidente Jair Bolsonaro em Manaus (Foto: Wérica Lima/Amazônia Real)

Lutando contra a hipersexualização de corpos transgeneres e a cultura do estupro, Wendy decidiu enfrentar os desafios que viriam pela frente nas tentativas de ocupar espaços, seguidos de muitos “nãos”. “Recebi propostas, sim. Mas nunca o fiz, porque, acredito na força da educação, e acredito posso fugir desse estigma da sociedade que nossos corpos foram feitos para a prostituição”, conta. Acreditando nos estudos, Wendy formou-se em Design de Moda em Manaus e fez pós-graduação em Moda e Styling no Rio de Janeiro.

A formação não foi suficiente para Wendy largar o trabalho de cabeleireira. Na verdade, foi ele que a salvou de não passar fome. “No dia 17 de maio de 2020, eu sozinha em casa, com uma depressão muito forte, só tinha como válvula de escape as lives da cantora Teresa Cristina. E foi nesse dia que meu amigo puxou o coro para que eu fosse chamada para falar algo, afinal era dia de combate a homofobia”, lembra.

Desde então, Wendy passou a ser fixa em transmissões de streaming, as “lives”, uma motivação que serviu para voltar a cantar. Com apoio da própria Teresa, seus fãs e amigos que fez, começou a fazer aulas de canto. “Aos poucos estou me recolocando no mercado da música, com muita luta, colocando tijolo por tijolo”, explica.

“Apesar dessas histórias eu ressignifiquei e sou feliz, vivo cada segundo pra frente, para novas histórias”, diz. Agora, a artista, cantora e compositora da Amazônia, pegou um voo para agregar na sua carreira teatro, dança, instrumentos e técnicas vocais. “Estou indo pro Rio de Janeiro, para estudar e ser uma artista mais completa”. Wendy nutre grandes ambições. Ela quer ajudar a fortalecer a cultura do Norte. “Pretendo ficar na ponte aérea até que consigamos fortalecer a cena artística do Amazonas, a ponto de sermos um mercado fonográfico e visual tão grande quanto o Sudeste”, afirma.

A dura transição

Thiago Costa dando informações para comunidade LGBTQIA+ de refugiados migrantes sobre o acesso a direitos básicos no Brasil (Foto: Victor Auzie/Instituto Mana)

Thiago Costa também viu sua carreira por um instante decair quando começou a transição. Antes, ele trabalhava de forma independente como nutricionista. De uma hora para outra, começou a perder clientes. “As pessoas não falavam por que não queriam mais atendimento comigo, até que eu não tive mais opção nenhuma”, lembra. A situação se agravou tanto que foi obrigado a abandonar sua profissão e passou a vender incenso na feira da Eduardo Ribeiro, em Manaus. “Eu vivia com 200 reais por mês vendendo na feira”, relata. Por dois anos, vender incenso foi a sua única fonte de renda.

Sem um salário digno, ele começou a participar de rodas de conversa e reuniões sobre ativismo promovidas por organizações não-governamentais (ONGs). Foi quando junto com os movimentos LGBTQIAP+ reivindicou cotas para pessoas trans na pós-graduação em direitos humanos da Universidade Estadual do Amazonas (UEA). Foi a entrada na universidade para cursar uma pós-graduação obtida por meio da cota cedida que permitiu a Thiago retornar ao mercado de trabalho. Ele começou a trabalhar com refugiados imigrantes no Instituto Mana.

Os desafios do hoje ativista Thiago Costa estão longe de serem superados, mesmo estando empregado. Conhecedor de sua realidade, ele não deixa de se preocupar com os muitos travestis, transexuais e transgêneros que vivem o drama de serem excluídos do mercado de trabalho. “A gente sabe que a maioria da população trans está em situação de rua por causa do preconceito. Todas as outras questões de saúde, educação e tudo mais se resolvem a partir da autonomia que o emprego dá para a gente. Então, se não tem emprego, a gente não tem dignidade nos outros setores e nem no amoroso”, explica.

Os estereótipos impostos pela sociedade de como uma pessoa trans ou travesti deve se vestir ou ser para ser validada é outro desafio a ser rompido. Por vezes as pessoas trans não têm nem mesmo como comer, muito menos o que vestir ou como fazer tratamento hormonal sem recursos financeiros.

“Esse trabalho me deu uma oportunidade de mudar de vida, porque eu comecei a ter acessos que nem enquanto pessoa cis eu tinha, saber o fluxo dos acessos [na saúde], os meus direitos, as legislações e tudo mais me ajudou muito nesse processo de conseguir o emprego e de me manter nele também”, afirma Costa.

“A autonomia que o dinheiro gerado pelo emprego dá é muito importante para eu conseguir continuar com os meus hormônios, porque os hormônios bioidênticos que têm testosterona custam 450 reais ou mais, dependendo da farmácia e o SUS não dá esse hormônio aqui em Manaus”, acrescenta, ao revelar que chega a gastar 700 mensais por mês com a hormonização.

Instabilidade financeira

Louise Manicongo (à esq), empreendedora que montou uma confecção com a mãe Maria de Nazaré Costa (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Um técnico em Administração e quase 50 cursos profissionalizantes não foram o suficiente para dar a Swamy Almeida, 38, um emprego formal. Ela já tentou de tudo, mas sua existência é sempre o que a faz ser demitida sem justa causa. Para ela, não há outra explicação senão o preconceito e a transfobia. A competência de cumprir com os horários, seguir as regras não é o suficiente para quem é travesti. Antes da retificação do seu nome, Swamy precisou lidar com períodos conturbados em que não teve respeitada sua travestilidade (que ultrapassa as fronteiras de gênero esperadas e construídas culturalmente para um e para outro sexo).

“Ainda há um preconceito muito grande, um tabu enorme para ser quebrado, e vários protocolos a serem revistos. Hoje em dia quando uma pessoa como eu, trans, vai a uma entrevista de emprego eles já julgam com o olhar e por aí você já tem a certeza que não vai ficar. Isso acontece muito nos RHs (recursos humanos), gente despreparada sem treinamento algum para receber esse público”, relata.

Para Swamy, passam-se os anos, a sociedade evolui, mas não encontra meios de oferecer reais oportunidades a pessoas trans. “Vamos ficando idosos e nossos conhecimentos e estudos não valeram de nada, vai tudo para lata de lixo, se torna um tempo perdido e sem trabalho formal dependemos do dom que Deus nos deu e nos viramos no que a gente já sabe fazer de melhor”, diz.

Empreender tem se tornado uma das saídas mais honrosas para esse público. Trabalhar como contratada sempre foi um horizonte muito distante para Louise Manicongo. Ela nunca teve carteira assinada, nem imagina que terá um dia. Mas nunca deixou de pensar em conseguir uma colocação no mercado. Desde muito tempo, Louise já cogitava ter uma loja de calcinhas para pessoas trans. Na pandemia, a dificuldade financeira se agravou com a demissão da sua mãe. Foi nesse momento, de necessidade, que fez as duas começarem a produzir numa oficina caseira os produtos da hoje loja online “Louise Pantie”.

“Depois de empreender as coisas mudam, porque é quando eu já consigo ter uma visão de possibilidades, de que encontrei o meu lugar, de que com a minha ideia, com a minha marca, posso ter como pagar minhas contas e no futuro poder empregar outras travestis”, diz.

Louise conta que empreender é uma luta diária, pois precisou aprender do zero e sozinha como gerir um negócio. O único recurso que chegou a ter acesso foi um curso online oferecido pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), sobre como começar uma loja online. “Trabalho com Shopee, com envio pelos Correios e são coisas que às vezes tenho algumas dúvidas. Para eu buscar esses conhecimentos têm que ser pela internet ou pesquisar em algum lugar, porque não consigo ter com quem falar sobre essas questões”, explica.

Na fala de Louise está implícito o drama da transfobia, uma das barreiras que podem limitar o campo de atuação de pessoas trans e travestis no mercado de trabalho. Esse sentimento continua perseguindo sua vida. “Eu tinha muito medo, muito receio de ter que trabalhar com pessoas cis, de servir pessoas héteras porque eu ficava na minha cabeça imaginando: Será que algumas pessoas algumas gostariam de comprar de uma loja sabendo que que quem trabalha naquela loja é travesti?”, já se perguntou.

Mercado transfóbico

Barraca LGBTQIAP+ na Ponta Negra, em Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

O mesmo questionamento de Louise, até hoje é a insegurança de Minzo Serique, transmasculino técnico de informática e microempreendedor de uma loja virtual e física. Ele prefere se manter o mais reservado possível. “Comecei minha transição em 2014 e atualmente já com um corpo transicionado e dentro do mercado de trabalho atuando como empreendedor ainda prezo por ser reservado, é um desafio e tanto para eu viver no país como o Brasil, um país transfóbico, onde eu não me sinto ainda na autonomia para alcançar o público LGBTQIA+ por conta de boicotarem a loja ao saberem que o dono da Loja é um homem”, afirma.

A decisão de Minzo de sair do trabalho formal, no qual era vendedor e auxiliar de estoque desde 2014, veio de uma pressão estética. Ele não se esquece das várias vezes que queriam que ele usasse maquiagem e se vestisse com roupas femininas. Não era um ambiente receptivo. “As empresas não querem ter uma pessoa trans atuando ali dentro por medo de repressão e por não querer que a empresa saia de um padrão construído pelo capitalismo”, afirma.

Em 2020, ele começou as vendas virtuais de equipamentos eletrônicos na pandemia, com a loja JappaStore. Desde o início, ele não tinha nenhuma instrução, apoio ou capacitação que pudessem ajudá-lo a empreender. “Na minha lojinha não sofro transfobia por parte de ninguém, nem dos meus colaboradores, alguns sabem do meu gênero outros não sabem e assim vou seguindo em paz, pois se dermos atenção demais para os problemas da transfobia que nos cerca nunca iremos construir nada na sombra da transfobia nesse País”, conclui.

Atualmente, Minzo faz a inclusão de pessoas trans e não bináries no negócio da loja por meio de um grupo de vendas home office da loja, com o objetivo de ajudar as pessoas a terem uma renda extra e fortalecer a comunidade na qual faz parte. “Já passei por dificuldade e sei como é não ter de onde tirar uma renda extra boa”, conta.

Louise Manicongo consegue enxergar em meio aos desafios o crescimento do empreendedorismo trans. “Eu me sinto ainda um pouco solitária nesse ramo. Eu tenho visões de futuro onde eu consigo ver uma feira cultural com muitos empreendedores trans, onde a gente tenha também uma rede de apoio, onde a gente consiga ter trocas, né sobre empreendedorismo, trocas de conhecimento”, diz.

Fora do radar oficial

Enquanto a comunidade LGBTQIAP+ se vê refém da violência, o Brasil se consolida mais uma vez na liderança do ranking de assassinato a trans pelo 14º ano consecutivo entre 80 países, conforme relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), lançado em 27 de janeiro. Só em 2022, o mapeamento registrou 131 assassinatos de pessoas trans e continua 8% acima da média anual, sendo 130 transexuais e travestis mulheres e um homem trans mortos.

O Amazonas é o estado da Amazônia Legal que se destaca dos demais por maior número de assassinatos em 2022. Desta vez, subiu no ranking, saindo do 10º para o 6º lugar. Conforme os registros da Antra entre 2017 a 2022, essa é a primeira vez que o Amazonas se aproxima tanto da liderança.

Em 2022, uma pesquisa ‘inédita’ realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) descartou a transgeneridade na primeira pesquisa voltada a orientação sexual, levando em consideração apenas a cisgeneridade (pessoa que se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu) ao invisibilizar a existência de pessoas trans.

“A gente não tem nenhuma secretaria que trabalha especificamente com esses dados porque a partir do momento que você reconhece, supostamente teria que propor políticas públicas direcionadas. Eu vejo como uma maneira de apagar essas identidades, fingir que não que não existem”, revela Joyce Gomes, presidenta da Associação de Travestis, transexuais e transgêneros do Amazonas (Assotram).

Sem dados oficiais do governo e sem levar em conta a exclusão dessas pessoas nos espaços de trabalho, educação, saúde e moradia, as pessoas trans acabam sendo estereotipadas por grande parte trabalhar com prostituição.

“A gente não tem nenhuma política específica que trabalhe essa questão da empregabilidade direcionado para a população LGBT. E aí a gente vê aquele famoso dado que as organizações colocam que 90% da população transexual ainda vive exclusivamente da prostituição, lembrando que viver da prostituição não é um problema, o problema é quando ela é a única solução dessas pessoas”, ressalta Joyce.

Para a presidenta da Assotram, é preciso analisar o que desencadeia dados como esses, incluindo a formação, a expulsão de casa e o preconceito institucional. “Elas estão gerenciando os seus negócios, salão, empreendimentos, porque é uma válvula de escape. Como o mercado de trabalho formal não acolhe, a própria população LGBT busca estratégias para romper esse ciclo é lgbfóbico, então a maioria dessa população vai pela clandestinidade ou então monta seu negócio, que é para poder se sustentar e sustentar a sua família”, frisa.

“Eles [governo] falam muito de inclusão, diversidade e nada acontece. É uma coisa que eles sempre enfiam na gaveta e colocam no esquecimento,nunca muda e não dá em nada, entra governo e sai governo, prometem mundos e fundos, várias mudanças e continuamos mais esquecidas ainda pagando impostos, consumindo e gastando o pouco que temos para enriquecer os cofres públicos”, afirma Swamy Almeida. “Nossa dignidade, direito de expressão, direito de ir e vir, de ter um trabalho digno, ninguém tem, muito menos respeito nesse País que só se afunda cada dia mais.”

Wendy Dias faz uma análise da luta que é preciso travar para alcançar na sua área o reconhecimento. “No Brasil, realmente a gente ainda tem invisibilidade, não tem muito acesso, é só olhar os streamings das meninas trans que são da música, não é tanto quanto de pessoas cis. É um bater em portas, prosseguir e lutar para conseguir. Claro que não vai ser fácil, o Brasil é o País que mais nos mata. Por que que ele vai nos dar o aval como artistas da música? Eu vejo que é um mercado que ainda está começando”, explica.

A Amazônia Real procurou a Secretaria Executiva do Trabalho e Empreendedorismo – Setemp do Amazonas e encaminhou perguntas sobre como o governo estadual está garantindo a presença e a permanência de pessoas trans, travestis e transexuais no mercado de trabalho, bem como se são feitas capacitações para receberem essa população nos recursos humanos das empresas. Até a publicação desta reportagem, a secretaria, como de resto a sociedade, permaneceu em silêncio.

*Crédito da imagem destacada: A dura sobrevivência de pessoas travestis, transexuais e transgêneros se dá, na maioria das vezes, pelo caminho do empreendedorismo, uma das poucas formas de tentar superar a barreira da transfobia na sociedadeNa imagem acima, Louise Manicongo em sua confecção (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).

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