Por Rogério Viduedo – Jornalista e Cicloativista –
A fala mansa e pausada de Rogério dos Santos Ferreira torna a história que ele conta ainda mais convidativa ao ouvinte. Ele maneja as palavras com cuidado, evita transparecer alguma vaidade ou orgulho demasiados por ter transferido a bicicletaria de 24 metros quadrados que ele mantinha na garagem de casa em Itaquera, um bairro da periferia na zona leste de São Paulo, para uma casa alugada de 400 metros quadrados numa rua movimentada do Brooklyn, bairro com população majoritariamente formada por pessoas das classes média e alta paulistana e que também é sede de escritórios de algumas das maiores empresas nacionais e internacionais. É um salto e tanto para um rapaz negro de 34 anos, casado e pai de duas meninas pequenas, que pisou numa escola pela primeira vez aos dez anos de idade em São Paulo depois de ter migrado de Feira de Santana na Bahia para um barraco de favela onde o irmão mais velho morava no bairro de São Mateus, também na zona leste paulistana.
Esta história de superação de condições desfavoráveis às quais boa parte da população brasileira está exposta desde o nascimento está intrinsecamente ligada ao uso da bicicleta como ferramenta de transformação social e econômica e é exemplo de como o estímulo à adoção desse transporte ativo pode proporcionar maior adesão de cidades aos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS, um plano de ação da ONU lançado em setembro de 2015 como parte da Agenda 2030 com a qual os países signatários se comprometeram a tomar ações para erradicar a pobreza, proteger o planeta e garantir que as pessoas alcancem a paz e a prosperidade.
O Brasil é um dos países comprometidos com a Agenda 2030, mas o estímulo ao uso da bicicleta ainda é incipiente na maioria das cidades. Ela é vital para alcançarmos metas de redução de emissão de gases resultantes da queima de petróleo e diminuir custos com saúde resultantes de doenças cardiorrespiratórias e diabetes, comum em pessoas sedentárias. O avanço tem acontecido por conta de iniciativas de organizações do terceiro setor, como as promovidas pelo Instituto Aromeiazero desde 2011, que fomenta a cultura da bicicleta para ser entendida não só como instrumento de transporte e lazer, mas também como promotora das artes, da diversidade de raça e gênero, da geração de renda e do direito à cidade. A ONG promove desde 2017 o Curso Viver de Bike que ensina como a bicicleta pode gerar renda para pessoas em vulnerabilidade social a partir da capacitação em mecânica e em empreendedorismo.
De vendedor de limão à microempresário da bike
Trazer a história do Rogério à luz dos ODS é relevante para mostrar como o estímulo ao uso da bicicleta em comunidades menos favorecidas a partir de políticas públicas consistentes gera resultados encorajadores para o atingimento das metas da Agenda 2030. Ele é uma das 200 pessoas que se formaram no ano passado nesse curso promovido gratuitamente pelo Aromeiazero desde 2017. O conteúdo programático é composto por 30 horas de manutenção de bicicletas e 30 horas de aulas voltadas à finanças, economia solidária e empreendedorismo. Oferece ainda encontros com profissionais e participação voluntária no Festival Viver de Bike, onde podem aplicar na prática o que aprenderam durante as aulas em atividades voltadas para a comunidade, como consertar gratuitamente bicicletas ou ensinar crianças a pedalar sem rodinhas. Como a premissa do curso é formar classes com presença mínima de 50% de mulheres e garantir ainda a diversidade étnica e racial, atendem-se aqui o ODS 4, que objetiva assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e para que todos adquiram conhecimentos e habilidades necessárias para promover o desenvolvimento sustentável, inclusive, entre outros, por meio da educação para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida sustentáveis, direitos humanos, igualdade de gênero, promoção de uma cultura de paz e não violência, cidadania global e valorização da diversidade cultural e da contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável. E também atende ao ODS 5, que voltado com metas de alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.
Enquanto continuamos o passeio pelas instalações, Rogério me conta sobre a infância dura no interior da Bahia, onde sequer havia pisado em uma escola. Veio para São Paulo com 10 junto com a mãe e um irmão mais novo para morar num barraco apertado junto com o irmão mais velho, que já estava aqui e sustentava todo mundo com o salário de gari. Logo precisou trabalhar para ajudar nas despesas, levando uma vida semelhante à da maioria da população negro do Brasil. Começou como vendedor de limão na feira e recolhia latinhas de alumínio para a reciclagem. Todavia nunca abandonou a escola e concluiu o ensino médio aos 20 anos de idade, mesma época em que foi contratado com carteira assinada para descarregar caminhões numa empresa de logística em Guarulhos. Foram sete anos indo e voltando para o trabalho de bicicleta para economizar tempo e dinheiro. Trocou de empregador, começou a cursar uma faculdade e obteve o diploma de tecnólogo em logística. Foi promovido a encarregado e comprou um carro, mas não gostou da dinâmica corporativa. “Nessa empresa cheguei onde queria, mas depois de dois anos trabalhando até 15 horas por dia, fiquei cansado e resolvi sair para abrir a bicicletaria”. explica.
É feriado, dia de trabalho
É manhã de sábado em São Paulo, 25 de janeiro. A cidade comemora o aniversário de 466 anos de fundação. Apesar do feriado, aparecem clientes e Rogério vai atender dois rapazes entregadores que chegaram pedalando bicicletas de aluguel do Bike Sampa. Um deles quer comprar uma bicicleta para melhorar o atendimento aos aplicativos e soube que na Central Bikes havia modelos baratos à venda.Uma delas o interessa e avisa que pretende voltar depois com o dinheiro na mão, cerca de 300 reais.
Enquanto se desenrola a negociação, saio para a frente da loja e fico observando a fachada. Foi recém pintada como parte da reorganização que ele promove no local. Num fundo preto, grafites na cor branca remetem ao universo da bicicleta e confundem-se com palavras e frases de superação. Formam uma teia hipnótica que ocupa também os muros que separa a loja dos vizinhos e o portão lateral. Depois que atende os rapazes, ele vai guardar a pressurizadora de água que estava usando para lavar o piso antes de eu chegar. Fico olhando o grafite, uma bela obra de arte urbana produzida por Luís Birigui, professor de economia criativa do Viver de Bike. “Um dos meus mentores”, diz Rogério..
Dentro da loja, observo as bicicletas novas que estão perfiladas para venda. Há modelos novos e usados. “Essas aqui são do Viver de Bike”, aponta para um grupo de 10 modelos diferentes cores e tamanhos. A ONG está testando com ele um novo modelo de geração de renda para financiar novas aulas. As bicicletas que recebem em doação são restauradas nas aulas do curso. Quem conclui a formação ganha uma dessas bicicletas como certificado de conclusão. O excedente era vendido em bazares ou durante os festivais. Algumas delas vão ser comercializadas na Central Bikes e parte do valor recebido será repassado para o projeto. “Nesse caso, não visamos o lucro mas sim escoar essas bikes doadas para quem precisa a preços simbólicos”, diz.
O Aromeiazero também possui uma frota de bicicletas de aluguel e parte delas estão na loja para desenvolver modelo de negócio visando às expectativas dos entregadores, muito comuns naquela região. “O aluguel custará cento e doze reais por mês, incluindo seguro e manutenção periódica”, descreve. Pensou nesse serviço pois quer ajudar pessoas como ele a fazerem um salário a partir da bicicleta. Atende aqui o ODS 8, que objetiva promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos. São Paulo tem potencial para ser modelo de uso da bicicleta na logística de mercadorias e até uma lei foi criada para estabelecer uma política de incentivo à entrega por bicicletas prevendo a capacitação técnica e criação de infraestrutura adequada foi aprovada recentemente pela Câmara dos Vereadores e que depende agora da assinatura do prefeito Bruno Covas para ser implementada.
Dilema para comprar feijão ou pneu para o cliente
O showroom também exibe bicicletas novas, peças de reposição, pneus e acessórios para a prática do ciclismo. Ele relembra o início difícil do negócio em Itaquera, quando por vezes precisava decidir se comprava um pneu para o cliente ou um quilo de feijão para família. A empreitada nasceu quando decidiu pedir demissão da empresa de logística em meados de 2016. Explica que não havia plano, apenas o desejo de trabalhar por conta própria. A ideia da bicicletaria ele encampou de um colega de trabalho. “A primeira bicicleta que vendi foi montada com peças que comprei em ferros velho”, revela. Com a oficina montada, começou a correr atrás de novas oportunidades e passou a dar expediente aos domingos como mecânico do Movimento Conviva, que geria a ciclofaixa de lazer em São Paulo, hoje descontinuada. Aos poucos foi aumentando o relacionamento e conheceu um ciclista entregador que ofereceu ajuda. “Ele falou para eu fazer uns cartões oferecendo manutenção à domicílio que ele entregaria nas ciclovias da Faria Lima e Paulista.
A iniciativa deu resultado e em 2017 recebeu a ligação do proprietário da Urbana Bicicletas. Duas vezes por mês ele ia até a sede da empresa na rua da Consolação para fazer manutenção de rotina. Com a prestação de serviços de qualidade, foi indicado para outros clientes e em novembro de 2018 recebeu o convite da Courri para ser o mecânico da frota de 22 cargueiras que a empresa usa para transportar mercadorias. Aumentaram assim as pedaladas tanto em frequência quanto em distância. Nesse momento ele já não podia dar tanta atenção para o negócio na zona leste. Chamou o irmão mais novo, Josuel, para assumir a oficina e passou a se dividir entre o cliente externo e a administração da loja. Não demorou quatro meses para um dos sócios da Courri, Vitor Muramatsu, chamá-lo para oferecer uma oportunidade. Iria ajudá-lo a transferir a bicicletaria para o Brooklyn.
“Demorei 3 dias para aceitar. Queria ter certeza de que seria capaz”, lembra. Ele aceitou e juntos criaram um plano de negócio que ele segue até hoje. A operação seria no imóvel ao lado da sede da empresa de modo a otimizar o tempo de ambos.
Na mesma época, ele foi selecionado para o Viver de Bike e com isso conseguiu aprender um pouco como administrar negócios e pessoas. “Aprendi no curso que para ser empresário a gente precisa se cercar de pessoas que fazem aquilo que a gente não sabe”, explica. Por isso ele conta recentemente com a parceria do Ricardo Boccia, que tornou-se sócio do Rogério e que agrega ao negócio a experiência com marketing de ciclismo. Além disso, por ter sido um dos melhores alunos da turma 12, Rogério recebeu uma bolsa da Escola Park Tool e aprimorou conhecimentos de mecânica. O diploma está na parede da loja, junto com o certificado do Viver de Bike.
Da zona leste à zona sul, 80 km no pedal por dia
Rogério faz o trajeto de casa ao trabalho pedalando. São 80 quilômetros diários mas recentemente passou a fazer o trajeto com uma bicicleta elétrica de pedal assistido. Foi oferta da marca de uma empresa da qual ele tornou-se representante. Ele faz parte de uma minoria na Capital que vai de bicicleta ao trabalho. Esse hábito tem sido alvo de políticas públicas de países europeus, como Inglaterra e Holanda, que a adotaram para promover a saúde de cidadãos e reduzir emissão de poluição por automóveis.
Mas não é preciso pedalar que nem o Rogério para obter os benefícios que a bicicleta gera para quem a usa. Bastam 10 quilômetros diários para reduzir em 41% o risco de mortes prematuras e 45% as chances de desenvolver doenças cardíacas e câncer de acordo com pesquisadores da Universidade de Glasgow, na Escócia. Tal hábito, se incentivado em São Paulo, ajudaria a cidade a alcançar as metas do ODS 3 em assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar geral das pessoas.
Para exemplificar, liguei para o Rogério no dia em que São Paulo parou por conta dos efeitos dos alagamentos causados pela forte chuva que assolou a cidade no início de fevereiro. Ele disse que mesmo assim usou a bicicleta. “Eu vim feliz para o trabalho enquanto via pessoas tristes presas dentro do carro ou do ônibus”, lamenta. A felicidade em transitar pela cidade foi medida pelo Cebrap no Estudo Impacto Social do Uso da Bicicleta, publicado em 2018. Nele, 45% dos ciclistas entrevistados informaram sempre ter prazer nesse deslocamento contra só 18% da população em geral.
Um negócio social
Rogério diz que a bicicletaria servirá para realizar um desejo que ele tem de ajudar pessoas com origem pobre tal como ele a se desenvolverem profissionalmente a partir do uso da bicicleta. Primeiro, precisou decidir o que fazer com os 20 clientes que possuía em Itaquera. Eles foram distribuídos entre os concorrentes da região. Dentro do plano de negócio, ele não poderia assumir a oficina e para isso, trouxe o irmão Josuel, que também cursou o Viver de Bike. Tem ainda buscado outros colaboradores e contratou uma mecânica mulher e outro rapaz para fazerem os atendimentos em domicílio. Quer ampliar o quanto puder. “Se eu consegui chegar aqui, quero que todo mundo também consiga”, diz. Com essa atitude, está ajudando a atingir o ODS 10, voltado para a redução das desigualdades nos países sendo a geração de empregos e renda ações prioritárias para melhorar a vida em um mundo onde o desemprego atinge cerca de 190 milhões de pessoas.
Os exemplos dessas iniciativas, tanto do micro empresário quanto do Aromeiazero, podem estimular mais pessoas a investirem em negócios com bicicletas e ainda reforçar a necessidade de criação de políticas públicas que aumentem o uso desse transporte de modo a atingir ainda o ODS 11, tornando as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.
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