Por Fabiana Frayssinet, da IPS –
Miritituba, Brasil, 7/1/2016 – A rodovia BR-163, antigo sonho colonizador da Amazônia dos militares brasileiros, foi ressuscitada pelos agroexportadores, dentro de um plano para reduzir custos através de suas hidrovias. Mas sua reconstrução acentuou problemas históricos de desmatamento e posse da terra, e anuncia novos conflitos sociais.A imagem da Amazônia, uma floresta tropical úmida que abriga a maior diversidade do planeta, pouco se assemelha à dos 350 quilômetros que unem os municípios de Santaréme Itaituba, ambos no Estado do Pará.
Entre os atuais terminais portuários, o de Santarém, onde confluem os rios Amazonas e seu grande afluente Tapajós, e o distrito de Miritituba, às margens deste último, em Itaituba,se vislumbra pequenos arvoredos salpicados por grandes plantações de soja. O gado bovino pastando mansamente ou descansando à sombra das escassas árvores, se abrigando das altas temperaturas acentuadas pelo desmatamento, é a única espécie visível de mamífero.
“Há 30 anos, quando viemos para cá, era só floresta”, contou à IPS a camponesa Rosineide Maciel, que junto com sua família observa uma máquina nivelando um trecho da estrada em frente ao seu rancho. Ela não esquece aquele tempo quando, junto a milhares de migrantes brasileiros, chegou atraída pela oferta de terras dos planos de ocupação amazônica, oferecidos pelos governos militares da época.
Graças à pavimentação da estrada, desde 2009, demora menos para transportar sua mandioca, o arroz e os corantes até Rurópolis, a 200 quilômetros de sua propriedade. “Depois que a estrada melhorou, ficou mais fácil. Antes, para chegar a Rurópolis havia muitos altos e baixos. Se tinha lama, demorávamos três dias”, recordou Maciel.
A BR-163, construída na década de 1970 e que chegou a ficar praticamente intransitável, une Cuiabá, capital do Estado do Mato Grosso – principal produtor e exportador nacional de soja –, a Santarém. Dos seus 1.400 quilômetros, onde é intenso o tráfego de caminhões carregados com toneladas de soja e milho, ainda faltam cerca de 200 para serem asfaltados e outros tantos estão cheios de lombadas.
No inverno, a baixa visibilidade provocada pela poeira vermelha amazônica, e, no verão, a lama geradapelas intensas chuvas causam acidentes diários. Ainda assim, comparada com o passado, é um paraíso para os caminhoneiros que em época de colheita a percorrem pelo menos cinco vezespor mês. “Quando começou a vir a soja para Santarém, há três anos, às vezes eu demorava de dez a 15 dias. Hoje fazemos o percurso em três, se não chove”, detalhou à IPS o caminhoneiro Pedro Gomes, do norte do Mato Grosso.
A BR-163 termina em Santarém, na entrada de um porto da empresa norte-americana Cargill, onde embarca seus grãos e os transporta pelo rio Amazonas para o Oceano Atlântico, e dali para os principais mercados mundiais, como China e Europa.Esse e outros portos construídos ou planejados por outras companhias em Santarém, Mirititubae Barcarena (em Belém, capital do Pará, na desembocadura do Amazonas) são parte de uma infraestrutura logística que, somada à pavimentação da estrada, busca economizar custos com frete terrestre e marítimo.
Dessa maneira, foram reduzidos,a partirdo Mato Grosso, os dois mil quilômetros que os caminhões percorriam até os saturados portos das regiõesSul e Sudeste do país, como Santos, no Estado de São Paulo, ou Paranaguá, no Estado do Paraná. A Associação de Produtores de Soja do Mato Grosso calcula em US$ 40 a economia do frete por tonelada.
“A saída por portos do Norte, como Santarém, dá competitividade. A BR-163 é fundamental, um corredor de exportação e uma necessidade para o país e a região”, ressaltou José de Lima, diretor de Planejamento de Santarém. Porém, o modelo agroexportador é questionado por outros. Com a consequente explosão da soja no Pará, aumentou a ocupação ilegal e subiu o preço da terra.
“A pavimentação da BR-163 aqueceu o mercado de terras. Em uma região onde impera a posse ilegal de terras e não existe ordenamento territorial, issogera uma série de conflitos sociais e ambientais”, explicou à IPS Maurício Torres, da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). “Se desmata não para produzir, mas para a apropriação fraudulenta da terra. Uma frase comum usada na região da BR-163 é que ‘dono é quem desmata’, ou seja, o desmatamento ilegal passa a ser um instrumento de apropriação de terras públicas”, acrescentou.
Em 2006, o governo lançou um programa de desenvolvimento sustentável para a área de influência da BR-163, para reduzir os impactos socioambientais provocados pela sua reconstrução, mediante projetos autossustentáveis para as comunidades locais. Mas foi “um pouco abandonado”, disse à IPS a reitora da Ufopa, Raimunda Nogueira.“Se as comunidades ao redor da BR-163 não forem fortalecidas, a tendência é que passem por um processo de transformação incrível, por exemplo, que o preço da terra aumente e os pequenos vendam, aumentando os latifúndios”, acrescentou.
O desmatamento em grande escala teve lugar na década de 1980, com a exploração da madeira. Porém, isso não deixou áreas “desnudas”, segundo a reitora, porque a agricultura de subsistência “manteve diversas escalas de regeneração florestal”. Mas, “quando os grandes produtores chegaram, cortaram todas essas áreas em fase de regeneração que mantinham certo equilíbrio”, pontuou Nogueira, que estima que cerca de 120 mil hectares foram transformados em plantações de soja.
Por sua vez, Torres se refere ao surgimento de outros problemas sociais, como a prostituição, inclusive de menores de idade. “Há cidades centenárias do Paráque poderiam se converter em grandes bordéis de caminhoneiros”, ressaltou.Os moradores de Campo Verde, povoado de seis mil habitantes a 30 quilômetros de Miritituba, que vivem da produção de palmito e de serrarias, já antecipam esses efeitos nos canteiros de construção.
O povoado ficará na junção da BR-163 e com a Transamazônica, estrada com mais de quatro mil quilômetros que cruza todo o norte brasileiro.“Por aqui vão passar apenas os transportadores de soja. Calcula-se que serão, em média, 1.500 caminhões por dia. Calcule os acidentes que teremos com todos esses caminhoneiros que vêm como loucos e nem freiam”, questionou à IPS a líder comunitária do povoado, Celeste Ghizone, que também teme a chegada da criminalidade e das drogas.
A nova logística permitirá exportar, a partir de 2020, 20 milhões de toneladas de grãos, dos 42 milhões que Mato Grosso produz atualmente. O sonho das empresas agrícolas é continuar ampliando o corredor da soja, construindo uma ferrovia até Miritituba.“É importante destacar que a BR-163 asfaltada não é uma infraestrutura local, mas serve para os grandes produtores de soja do Mato Grosso. O Estado do Pará se converterá em um mero corredor de transporte de soja”, lamentou Torres. Envolverde/IPS