Água e desperdício urbano: como ser sustentável?

Sabemos que a água é um recurso essencial à vida e ao funcionamento de nossas sociedades em todos os aspectos. Em pleno Ano Internacional de Cooperação pela Água, examinemos uma questão adicional de eficiência no uso deste importante recurso: o desperdício em sentido mais amplo, não apenas no abastecimento, mas quanto à oportunidade de criar eficiência nas edificações urbanas, onde se dá o uso da água.

Primeiramente, o tradicional. Consideremos que alguma perda é inerente ao transporte de qualquer matéria e à transmissão de energia. Assim como se perde energia nas linhas de transmissão elétricas até as residências e fábricas, também se perde água entre a estação de tratamento e a torneira dos consumidores domésticos e industriais. Mas qual o nível aceitável de perda e como tornar o uso mais eficiente nas cidades, considerando outras formas de obter e utilizar a água?

Comecemos pelos dois tipos de perda de água. Nos sistemas de abastecimento elas correspondem aos volumes não contabilizados, o que é função tanto da quantidade que não é consumida (perdas físicas) quanto daquela que é consumida sem ser, contudo, registrada (perdas não físicas ou aparentes). Explicam-se as primeiras pelos inevitáveis vazamentos na rede de distribuição, enquanto que as últimas se referem aos erros de medição e às fraudes. O percentual de perdas de rede na Europa é, em média, de 15%, ao passo que o máximo de eficiência é conseguido no Japão, com seus exíguos 3% de perdas. Assim, é razoável pensarmos que um percentual aceitável estaria nesse intervalo.

o Brasil, em média, 40% da água tratada são perdidos no caminho do abastecimento. O estado de São Paulo tem a menor taxa do Brasil: 26%. Portanto, mesmo em um estado já eficiente nesse assunto o sistema de abastecimento deve melhorar sua eficiência a fim de se alinhar ao benchmarking internacional do setor. Estima-se que uma redução da ordem de 10% nas perdas poderia agregar à receita operacional das empresas de abastecimento mais de R$ 1 bilhão. Para termos ideia do que representa isso, essa receita adicional equivale a 42% do investimento realizado em abastecimento de água em todo o Brasil em 2010, segundo recente estudo do Instituto Trata Brasil.

Para isso há que aperfeiçoar o gerenciamento da infraestrutura, implantando ou fortalecendo medidas de controle baseadas em indicadores e preventivas nas fases de projeto e construção de novos sistemas. O Programa Nacional de Combate ao Desperdício de Água oferece diretrizes importantes nesse sentido, mas que não são exaustivas. Há uma série de providências que podem ser tomadas para ajudar as empresas de abastecimento a melhorar esse perfil, aliando-se as ações a um plano de sustentabilidade e de uso responsável da água. O certo é que a redução das perdas representa uma oportunidade para as empresas de abastecimento a fim de financiar tanto a expansão do atendimento em água potável quanto a ampliação das redes de coleta e tratamento de esgoto.

Entretanto, falemos também da perda representada pela oportunidade, ainda não aproveitada, de reutilizar as águas servidas e captar as águas de precipitação no ambiente urbano, atendendo a alguns usos e reduzindo o consumo da água tratada, que hoje é largamente utilizada em finalidades menos nobres ou prioritárias de consumo. Essa oportunidade está nas edificações urbanas, domésticas e corporativas.

Em um cenário de escassez qualitativa da água e de emergência do conceito de uso responsável, esse aproveitamento é benéfico por diminuir a demanda sobre o sistema de abastecimento, que já capta água em bacias hidrográficas pressionadas ambientalmente, e favorece a drenagem urbana, sobretudo em períodos de precipitação mais intensa e frequente. É inclusive um elemento de salubridade ambiental, vez que concorre para evitar possíveis interações de água pluvial contaminada pelo lixo urbano com a água do sistema de abastecimento durante eventos climáticos extremos. Em cenários que consideram as adversidades das mudanças climáticas globais no ambiente urbano, essas medidas são relevantes e certamente compõem uma estratégia de adaptação.

É possível aplicar soluções de engenharia incorporadas ao ordenamento do ambiente urbano. Cabe ao poder público liderar o processo porque é preciso formular políticas e estruturas de incentivos positivos e não punitivos à adoção de padrões construtivos sustentáveis. Empreendedores e demais usuários urbanos da água também têm seu papel, já que precisarão se adequar a esse novo padrão em um horizonte de tempo razoável para todos.

Entre as possibilidades está o estabelecimento legal de incentivos não financeiros e fiscais pela adicionalidade ambiental de quem constrói ou reforma em observância a critérios de sustentabilidade. Há padrões de certificação reconhecidos internacionalmente que abarcam diversos aspectos da sustentabilidade na construção civil, como o Leadership in Energy and Environmental Design (LEED). E há normatização que já permite avaliar e verificar a pegada hídrica da construção e no uso cotidiano de edificações.

Isto quer dizer que existe ferramental adequado para buscar a eficiência energética e hídrica. Por que não incluí-los em um sistema municipal de gestão do ambiente urbano assentado na responsabilização do empreendedor vis-à-vis a combinação de metas mandatórias e voluntárias e em mecanismos de verificação? Sem instituir punições e um caro e ineficiente arcabouço de fiscalização, trata-se, antes de tudo, de incentivar uma mudança de patamar na construção civil.

Tragamos aqui um bom argumento: estima-se que o volume de água de chuva que poderia ser captado na cidade de São Paulo no verão seja da mesma ordem de grandeza do consumo total doméstico nessa mesma estação! Sabemos de todos os inconvenientes e das perdas, inclusive humanas, causados pelas fortes chuvas, em muito devidos à intensidade da precipitação e à incapacidade de o sistema de drenagem absorver o volume de escoamento. Os orçamentos públicos são sempre insuficientes para abarcar as múltiplas prioridades ao mesmo tempo. Não podemos pensar em aproveitar parte dessa água mediante a promoção da aplicação de soluções já plenamente viáveis técnica e financeiramente? E não podemos estimular o reuso das águas servidas?

Além de melhorarmos a gestão da infraestrutura hídrica urbana e a eficiência do abastecimento, que é uma agenda antiga e irresoluta, chegou o momento de os empreendedores, construtores e usuários da água em geral pensarem sustentavelmente e começarem a adequar as suas instalações a esse imperativo.

O poder público pode ter o papel de indutor e ordenador dessa mudança de patamar no relacionamento com a água, da captação ao uso e disposição final. Já existem as métricas, as ferramentas, a tecnologia e os padrões de certificação e de reconhecimento das técnicas construtivas segundo critérios de eficiência hídrica. Resta aplicá-los.

* Silneiton Fávero é especialista em Gestão de Recursos Hídricos e Consultor Sênior em Sustentabilidade.

** Publicado originalmente no site Eco21.