Pepinos, hipotecas e incongruências

Bactéria mais danosa e perigosa que a E. Coli é a chamada economia de mercado, que permitiu que multinacionais e interesses econômicos ficassem com os recursos da alimentação enquanto afogam o pequeno agricultor.

[media-credit name=”http://www.flickr.com/photos/48558938@N05/4487134114/in/photostream” align=”alignright” width=”300″][/media-credit]Há alguns anos, a Espanha começou a se transformar em uma imensa estepe de cor marrom acinzentada, graças à expansão atroz de tijolos e cimentos. No despertar de semelhante transformação, e por inércia, se gerou riqueza, a economia cresceu e muitos subiram na crista do “sonho ibérico”. Foram os anos da Espanha alienada e feliz. Da orgia econômica coletiva. Do luxo de hoje para a escassez amanhã. Uma lapidar, repetida e mítica frasezinha – hoje rebaixada à categoria de slogan de cartão postal – resumiria aqueles anos alegres: “Sim, minha casa me custou um rim e parte do outro, mas eu investi em uma habitação porque os preços baixaram, e na melhor das hipóteses se manterão”.

Era o ciclo do pacote: hipoteca, mais crédito para móveis de design, mais outro empréstimo para um carro bonito, mais outro para uma viagem pelo Caribe para liberar tanto estresse acumulado. Todos numa só folha de pagamento. Quem não se atrevia, ficava para trás. Enquanto os bancos estavam felizes, chegaram as más notícias, e o Estado se encarregou de espalhar o boca a boca revitalizante.

Comenta-se isso porque nessa época dourada, na qual o consumismo adquiriu categoria de religião, e no Estado espanhol se vivia numa roleta lisérgica de luz e de cor, a agricultura e seus agricultores já estavam na UTI com profundos problemas cerebrais. De fato, desde há décadas que o campo está de luto, em baixa, e no fundo do poço. Tudo por causa de uma bactéria mais danosa e perigosa que a E. Coli, chamada economia de mercado, que permitiu que multinacionais e grandes interesses econômicos ficassem com a renda da alimentação enquanto afogam o pequeno agricultor e camponês. Uma bactéria que condenou à inanição milhões de pessoas. Que transformou a terra e a vida em um grande negócio em que já não é preciso gerar alimentos, trabalho e futuro, mas sim grandes lucros que uns poucos repartem diante da frustração e impotência generalizada dos agricultores.

Diante desta bactéria – que se reproduz em ministérios, parlamentos e cúpulas de diversos organismos multilaterais –, não existiu essa indignação generalizada que surgiu agora diante das decisões irresponsáveis, danosas e precipitadas de certos organismos alemães diante da “crise dos pepinos”. O rechaço social foi unânime e muita gente se irritou com o tratamento recebido, mas me dá a sensação de que isto tem uma origem bem mais chauvinista e patriótica, similar aos ocorridos com a ‘ocupação de Perejil’, L’Estatut ou o empurrão em Luís Enrique.

A repercussão de todo este show o levou a alguns outros veículos de comunicação, desses que, por um lado, anunciam as vantagens de comprar comida nos principais carrascos do agricultor (a distribuição moderna e cadeias de supermercados), e que, por outro lado, se solidarizam, pepinos em mãos, com as desgraças dos agricultores diante do tratamento recebido. Sem esquecer, é claro, o papel do “bipartido” que se revezou no poder durante os últimos 30 anos, que agora clama justiça quando durante anos se fez de surdo às queixas de uma agonizante agricultura tradicional.

Mas, passarão os meses, a E. Coli será esquecida (até que deixe mais mortos por aí) e a “crise dos pepinos” será história. E quando isto acontecer, a bactéria sistêmica do mercado livre seguirá vagando por aí para que os agricultores permaneçam sem cobertura de custos, abandonando a terra e cedendo em meio aos intermediários e distribuidores. Tudo para que estes últimos enriqueçam e para que muitos cidadãos que agora estão arrancando seus cabelos pelas injustiças de que foram vítimas os pepinos da Espanha, possam afogar-se até o último centavo ao comprar um quilo de pêssegos e assim poder custear a hipoteca, os móveis de design, um carro bonito, o cruzeiro no Caribe, as contas da academia e a cirurgia estética. Pêssegos, certamente, que talvez sejam importados de países do Sul porque ali os custos de produção são mais econômicos. Desta forma, se esmagam os agricultores que agora recebem a solidariedade coletiva diante do golpe alemão, enquanto os Estados do Sul da Terra não se dedicam aos cultivos de alimentos básicos para seus povos, mas sim à criação de cultivos que acabam em nossos supermercados.

O consumidor já sabe que a E. Coli é um clássico dos percalços alimentícios. Mas já há uns meses foram os alimentos com dioxinas e agroquímicos também encontrados na Alemanha. Antes vieram à tona as vacas loucas, as gripes aviárias, e os frangos belgas. Agora, já soa a campanha na China com o que poderia ser outro episódio de insegurança alimentícia e num mundo globalizado a praga pode se estender sem parar.

E os “avanços da humanidade” não podem evitar estes incidentes porque predomina um sistema alimentício onde se preza o negócio acima de tudo. Um modelo alimentício onde multinacionais e governos apostam em uma agricultura intensiva à base de sementes transgênicas e agroquímicos. Um modelo alimentício onde os ganhadores alimentam seus animais com alimentos de procedência duvidosa. Um modelo alimentício fortemente dependente do petróleo. Um modelo alimentício sintético onde os sabores e os odores naturais foram substituídos por seus equivalentes químicos.

Portanto, que se acalmem os ânimos e se peçam compensações, mas sem estridências. A Eurocopa é no próximo verão e os que simpatizem com a seleção do esporte rei já terão seus minutos de êxtase. Quem na verdade quiser apoiar os agricultores, que escape deste modelo alimentício socialmente injusto, sanitariamente nocivo e ecologicamente insustentável. Que adquira seus alimentos diretamente do agricultor ou em mercados e pequenas tendas de bairro assegurando-se da procedência, da qualidade e do comércio justo. Que estes produtos sejam de temporada e possivelmente ecológicos. Que lute ao lado dos camponeses para que estes recebam preços dignos e não sejam saqueados temporada após temporada. E se algum dia você vir um grupo de “indignados” roubar alimentos de um supermercado pertencente a uma cadeia transnacional… Não os denuncie, mas os aplauda porque finalmente alguém fez justiça. Lembre sempre que quem rouba ladrão tem cem anos de perdão.

Tradução: Cainã Vidor.

* Publicado originalmente pelo TeleSur e retirado do site da Revista Fórum.