Nova ferramenta da plataforma eletrônica do Lattes quer obrigar cientistas a “prestarem contas” à sociedade. Mas seria dever do pesquisador apresentar resultados palpáveis?
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) anunciou que vai acrescentar duas novas abas para divulgação pública no Lattes, plataforma eletrônica que exibe currículos e atividades de 1,8 milhão de pesquisadores de todo o país. A partir de agora, os cientistas brasileiros também deverão descrever, além de informações básicas pessoais e acadêmicas, iniciativas de divulgação e de educação científica – o que significa, na prática, fazer a promoção de seus projetos para o público não especializado e, segundo a instituição, “ligar o trabalho a inovações que contribuam com as políticas públicas e até mesmo para a criação de novos produtos a serem lançados no mercado”. Apresentada como um grande benefício à sociedade, a obrigação de prestar contas não agradou a diversos pesquisadores e professores, que veem nas novas abas um sintoma dos rumos da pesquisa no país.
Em entrevista à Agência Brasil, o presidente do CNPq, Glaucius Silva, justificou o proposta: “No século 21, o cientista reconhece seu papel de engajamento na sociedade. Ele sabe que está sendo pago e financiado e que deve uma prestação de contas sobre o que faz. Ainda há um fosso grande entre aqueles que fazem ciência e aqueles que consomem e financiam a ciência. A sociedade não conhece com profundidade toda a riqueza com que a ciência brasileira tem contribuído para o desenvolvimento nacional”.
Em outras palavras, o cientista deverá se explicar para a sociedade, justificando o seu financiamento. Seria a nova proposta um passo importante para uma relação mais transparente entre os cientistas e o grande público, ou, ao contrário, uma inoportuna intromissão no trabalho científico?
“A tendência geral é subordinar a ciência a uma lógica de mercado e produtividade. Acho isto fortemente desaconselhável”, avalia o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Se for opcional não vejo porque não fazê-lo, desde que não se julgue o pesquisador por não fazer a autopropaganda. O fundamental é que não percamos tempo demais promovendo e vendendo a pesquisa a tal ponto de não termos mais tempo de fazê-la. Este é o maior problema.”
Já para Bruno Gripp, professor de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF), a proposta, longe de “ajudar a ciência”, vai de encontro à própria noção de universidade.
“Não se estuda, por exemplo, física teórica ou filosofia analítica na busca de um produto palpável, de um resultado que a sociedade pode ver”, argumenta . “É impossível para pesquisadores de áreas mais áridas como essa simplesmente serem compreendidos por seus pares, quanto mais atingirem o grande público. É bom notar que, por mais nobre que seja, a divulgação científica não é ciência em si, é apenas algo que fica no lugar da ciência, serve para introduzir, entreter e motivar ao estudo, mas apenas para isso.”
A “utilidade” da ciência
Gripp acredita que há um erro muito comum em todos os lados do espectro político, de tentar ver na educação uma “função” e um “objetivo”.
“Educa-se a população para ‘crescimento econômico’, ‘justiça social’ ou qualquer dessas palavras de ordem que um governo elege para si e é eleito por elas. Mas na verdade esta maneira de ver a educação impede de ver aquilo que ela realmente é: formadora de pessoas. E isto é válido em todos os escalões do sistema educacional, desde o primário até a pós-graduação. A exigência de que o pesquisador traga resultados palpáveis é desprezar uma das características mais importantes do conhecimento: ele é um objetivo por si só.”
Alguns acadêmicos também veem na proposta uma submissão perversa à lógica de mercado. Desiludido com os rumos da universidade brasileira, um professor de filosofia da Universidade Federal do Paraná, que preferiu não se identificar, acredita que o “engajamento na sociedade” proposto pela instituição é interpretado segundo “o modelo político-econômico da relação entre produção e consumo”, como se os resultados da pesquisa científica pudessem assumir a forma da mercadoria sem se desfigurar completamente.
“Isto se manifesta de forma bem evidente na vida acadêmica”, explica. “Os cursos de graduação e pós-graduação têm se tornado inteiramente dependentes da adesão à lógica mercadológica imposta pelas agências financiadoras da pesquisa. Sem isso, eles simplesmente não dispõem de recursos para funcionar. Concretamente, essa condição influencia o trabalho de professores e estudantes de forma decisiva: as atividades burocráticas se assomam às da pesquisa, de forma a sobrepor-se a estas, o professor tendo de atuar como administrador de recursos financeiros destinados à pesquisa, e o estudante, como funcionário da ‘empresa’”.
Estabeleceria-se assim, segundo ele, um tipo de hierarquia claramente mercadológica, uma “mentalidade desenvolvimentista” que, ao excluir agentes formadores não quantificáveis, provocaria uma homogeneização do trabalho acadêmico e um consequente decréscimo da qualidade das pesquisas.
“É incrível como, atualmente, o grande assunto entre os professores que trabalham na pós-graduação (falo, a princípio, a partir de minha própria experiência na área de ciências humanas) é a competição entre os programas por verbas e prestígio institucional”, desabafa. “O foro em que se decide essa competição são as cúpulas e as coordenações das áreas de pesquisa no CNPq, onde entram em disputa, inclusive por parte de pesquisadores-líderes, interesses políticos e fisiológicos externos à pesquisa acadêmica, sem que nisso os projetos de pesquisa sejam avaliados preferencialmente segundo o mérito e, como seria ainda mais desejável, conforme um espírito pluralista de respeito e cultivo da diversidade das perspectivas teóricas. Mesmo quem discorda desse sistema, e não são todos, é constrangido a colaborar, para manter seu posto na pós-graduação como pesquisador e orientador dos trabalhos dos estudantes.”
Libânio Cardoso, professor de filosofia, da Unioeste, no Paraná, acredita que os pressupostos errados têm produzido efeitos nocivos em todos os níveis, inclusive na formação escolar.
Educar versus profissionalizar
“É decisivo lembrar que esta ideia de produção e consumo, de quantificação e avaliação de resultados objetivos, e agora de ‘prestação de contas’, corrói o ensino fundamental e o ensino médio, porque lança sobre eles valores e conceitos que nada têm a ver com a paixão pelo estudo e pela investigação científica livres. Já há escolas para crianças que ‘se’ divulgam como formadoras de líderes, de empreendedores, como se fossem campos de profissionalização. Isto deveria ser imediatamente objeto de escândalo e de intervenção pública e é, no entanto, chancelado pela concepção errônea de educação que temos operado, no ensino superior. Educar não é profissionalizar, nem formar líderes sociais, empreendedores, pesquisadores utilizáveis para fins – não é formar gente como instrumento social. Educar é fazer ver que o grande problema do Homem, em qualquer época e situação, é tornar-se integralmente humano. Só depois desse aprendizado alguém pode assumir uma profissão.”
Ainda em entrevista à Agência Brasil, o presidente do CNPq defendeu outra medida polêmica, em vigor desde junho de 2011: a exigência de que os relatórios eletrônicos de concessão científica sejam escritos em “linguagem para não especialistas”, apresentando-os de forma atraente e simplificada.
“Com isso, eu passo a ter um banco fantástico para alimentar (com os dados) os jornalistas”, disse Silva.
A exigência, porém, poderia implicar um outro efeito nocivo, o de nivelar a pesquisa de acordo com a demanda. Não haveria o risco de se fomentar, por causa disso, um vício jornalístico em buscar e publicar informações “mastigadas”, praticamente cópias de release? Para Eduardo Viveiros de Castro, seria muito mais útil o CNPq promover cursos e formação para jornalistas científicos do que transformar pesquisadores em jornalistas.
“Não acho que criar bancos de dados para jornalistas seja uma necessidade urgente do sistema”, pontua. “Dependendo da pesquisa, em áreas de matemática avançada e física avançada, não vejo como tornar a linguagem acessível sem trair a pesquisa. E o talento para divulgação não é dado a todo mundo. Há cientistas que sabem fazê-lo, mas é um mérito secundário, não um pré-requisito. Um cientista não deve ser julgado pelos seus talentos de divulgação. O que ele tem que fazer bem é aquilo que não é inteligível ao leigo. Se o que tem para dizer fosse acessível a todos, então, para que dizê-lo?”
Procurado pelo Opinião e Notícia, o presidente do CNPq, Glaucius Silva, não retornou o pedido de entrevista.
* Publicado originalmente no site Opinião e Notícia.