Cidade do Cabo, África do Sul, 20/2/2014 – “Todos os dias vivemos com medo de sermos violadas”, disse Thembela, uma das milhares de lésbicas da África do Sul que correm risco de sofrer ataques destinados a “corrigir” sua orientação sexual. Por levar uma vida abertamente homossexual em Gugulethu, localidade da Província Ocidental do Cabo, Thembela é uma vítima potencial dessas “violações corretivas”.
Os que as cometem “o fazem porque odeiam o que somos, porque se sentem ameaçados por nós”, afirmou essa jovem cineasta de 26 anos, criadora da série documentária de televisão local Street Talk. “Vivo só com minha companheira. Muitos homens no meu bairro sabem disso e a qualquer momento podem bater à nossa porta e nos violentar. Em geral chegam em grupos, por isso não podemos detê-los. Muitas de minhas amigas foram violadas por serem lésbicas. Não é raro”, contou à IPS.
Na África do Sul há cada vez mais registros dessas terríveis “violações corretivas”, mas não há dados concretos de quantas mulheres e homens sofrem esses ataques ou são assassinados devido à sua orientação sexual. O Departamento de Justiça e Desenvolvimento Constitucional espera abordar essa situação com o novo Marco Normativo para Combater os Crimes de Ódio, os Discursos de Ódio e a Discriminação.
A iniciativa, base de uma futura lei, tem por finalidade “estabelecer claramente que os crimes de ódio não serão tolerados na África do Sul”, destacou o vice-ministro John Jeffery. A futura lei criará figuras penais específicas para cada um desses crimes, acrescentou. Embora esse projeto tenha sido elaborado em resposta aos crescentes ataques contra lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais (LGBTI), inclui todas as formas de crimes de ódio, como xenofobia, racismo e discursos que incitam ao ódio.
Em entrevista coletiva no final de janeiro, Jeffery explicou que o texto estava “praticamente terminado” e que seria apresentado ao público “em breve” para debate. Para Cobus Fourie, da Aliança de Gays e Lésbicas da África do Sul Contra a Difamação, diferenciar os crimes de ódio permitirá conhecer melhor a gravidade do problema.
Por sua vez, Ingrid Lynch, pesquisadora e coordenadora de políticas desse grupo de pressão da comunidade LGBTI, com sede na Cidade do Cabo, considera que a nova legislação atenderá a “desesperada necessidade” de constatar o alcance dessa violência e dos crimes de ódio. “Se não há figuras penais que reconheçam a influência dos preconceitos homofóbicos contra as pessoas LGBTI, não temos esperança de reunir informação sistemática nem de monitorar a evolução do problema. O que sabemos agora é somente a ponta do iceberg”, pontuou Lynch à IPS.
Embora o projeto de marco normativo seja elogiável por seu conteúdo “simbólico” e por reconhecer a situação de um setor social marginalizado, uma lei por si só “não mudará a atitude de ódio das pessoas”, afirmou o especialista em direito constitucional Pierre de Vos. A África do Sul já conta com várias leis para proteger a população LGBTI, incluindo a legalização do casamento homossexual. Porém, essas leis fazem pouco para proteger gays e lésbicas, vítimas de uma violência crescente, acrescentou Vos.
Também para Lynch “é preciso muito mais do que uma legislação para enfrentar os crimes de ódio. O maior desafio da população LGBTI na África do Sul continua sendo poder gozar de seus direitos constitucionais”, ressaltou.
Sibusiso Kheswa, coordenador de campanhas da Gender Dynamix, primeira organização africana defensora dos direitos das pessoas transgênero, considera inútil criar novas leis se o sistema de justiça penal não as torna efetivas. O sistema judicial “não é amigável com a vítima”, começando pela polícia, cujos agentes são o primeiro contato que tem alguém que sofreu um crime, destacou à IPS.
Segundo as investigações de Lynch, as pessoas LGBTI que sobreviveram a ataques e a violações “habitualmente sofrem humilhação, demissão e se tornam vítimas diretas da polícia por causa de sua orientação sexual e identidade de gênero”. Kheswa apontou que essa realidade desanima as pessoas a denunciar os crimes que sofreram, “por medo de serem vítimas pela segunda vez nas mãos da polícia e de outros atores do sistema penal”.
“Seria um erro pensar que podemos conseguir melhores resultados para os sobreviventes de crimes em um sistema penal disfuncional”, afirma Lynch. “Precisamos de uma transformação estrutural do sistema, acompanhada de uma atenção específica para as preocupações da comunidade LGBTI”, acrescentou.
Fourie e Vos acreditam que a educação é fundamental para reduzir os crimes contra os LGBTI no longo prazo. “Deve haver um ensino muito mais vigoroso contra o preconceito desde os primeiros níveis da escola até os departamentos do governo. Mas para que isso ocorra é preciso vontade política”, enfatizou Vos.
Johan Meyer, encarregado de temas de saúde da organização OUT, defensora dos direitos LGBTI, vê uma boa cota de vontade política por trás do proposto marco legal. “Há temores de que a nova lei acabe com outras normas progressistas que deveriam proteger as pessoas LGBTI”, admitiu. “Contudo, creio que nesse caso é diferente, pois existe um verdadeiro compromisso do Departamento de Justiça e Desenvolvimento Constitucional, bem como da polícia e da Procuradoria Nacional”, ressaltou à IPS.
Enquanto isso, em Gugulethu, Thembela e sua companheira passam três cadeados na porta e raramente se animam a sair à noite. Mas a jovem cineasta espera que a lei permita que vivam em paz. “Se tivéssemos uma lei que realmente castigasse esses homens por nos violar, eles pensariam duas vezes. E pensando duas vezes talvez parem e assim deixaríamos de ficar com medo o tempo todo”, enfatizou. Envolverde/IPS