Arquivo

Austeridade golpeia vítimas de violência doméstica

Imagem do vídeo “Uma fotografia por dia no pior ano da minha vida”. Foto: Cortesia do Fundo B92 da Sérvia

 

Belgrado, Sérvia, 2/5/2013 – A quarta parte das mulheres europeias sofre alguma experiência de violência doméstica em sua vida. Apesar da generalização do fenômeno, na maioria das vezes, ignora-se o problema. Contudo, um vídeo produzido na Sérvia conseguiu quebrar o silêncio. À primeira vista, o audiovisual lançado em março é apenas mais um dos que mostram uma foto por dia na vida de alguém e se tornaram virais no YouTube.

Neste caso, diversas fotografias de uma jovem sorridente se sucedem, com rapidez, mostrando diferentes cortes de cabelo e estilos de maquiagem. E, aos poucos, a jovem aparece com o olhar triste, assustada e o rosto com hematomas, machucados e cortes cada vez maiores. Na última imagem, ela segura um cartaz pedindo ajuda desesperadamente.

Antes de alguém conseguir confirmar a identidade da pessoa ou se é uma história real ou ficção, o vídeo se tornou popular na Sérvia e no exterior, conseguindo dois milhões de acessos em poucos dias. O audiovisual faz parte de uma campanha do Fundo B92, uma fundação associada ao principal canal privado de televisão da Sérvia, destinada a conscientizar sobre a violência doméstica neste país da Europa oriental.

Desde o começo de 2012, morreram na Sérvia 60 mulheres vítimas de violência doméstica, segundo o Centro de Mulheres Autônomas de Belgrado. As organizações femininas denunciam que a cada segundo uma delas sofre alguma agressão verbal ou física.

“É importante falar deste problema para que nossa sociedade compreenda que não é normal bater nas mulheres e para incentivá-las a denunciar casos de violência”, explicou Veran Matic, a presidente do Fundo B92. “Também nos propomos a promover a solidariedade, fazer com que as pessoas raciocinem e pressionem as autoridades para que tomem medidas contra a violência doméstica”, destacou.

A fundação construiu cinco abrigos para mulheres vítimas de violência em seis anos de trabalho e prevê abrir mais dois este ano. O Fundo B92 trabalha com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) a fim de pressionar as autoridades a melhorarem a implantação da legislação que oferece proteção contra os agressores e assistência às vítimas.

Segundo Danijela Pesic, do Centro de Mulheres Autônomas, o mais importante é melhorar o cumprimento da lei que já existe, pois permite oferecer de forma sistemática soluções às vítimas. Apesar de importantes, os abrigos são uma resposta de emergência e de curto prazo, afirmou, acrescentando que a outra questão crucial para combater a violência doméstica é mudar a cultura.

“A principal causa da violência doméstica são os valores patriarcais”, apontou Pesic. “Não é a pobreza, nem a falta de educação, nem o alcoolismo. Vemos o mesmo grau de abuso em povoados e cidades, em todos os níveis de educação e renda”, ressaltou. “Os homens têm de deixar de acreditar que podem ser violentos, e para isto ocorrer temos de mudar nossa percepção sobre os papéis de gênero, começando desde a idade pré-escolar”, opinou Pesic. Enquanto país dos Bálcãs, a Sérvia, que ainda não é membro da União Europeia (UE), tem fama de machista.

Os recursos disponíveis são irregulares, costumam chegar do Ocidente na forma de doações para projetos e inevitavelmente se esgotam sem substituição. Isto leva ao fechamento de linhas telefônicas após alguns poucos anos de funcionamento, justamente quando as mulheres começam a contar com elas.

Mas o que acontece na Sérvia não é muito diferente do que se vê em vários países europeus. São adotadas leis de acordo com os padrões da UE, mas as autoridades não as implementam como deveriam. Os recursos das organizações não governamentais que trabalham com violência doméstica não são suficientes e persistem os valores patriarcais.

Um informe de 2012 da rede Mulheres Contra a Violência Europa (Wave) diz que apenas um terço dos países da região cumprem as recomendações do Conselho da Europa no tocante à existência de uma linha telefônica gratuita de ajuda as vítimas de violência doméstica. Quanto à disponibilidade de abrigos, a situação é pior: apenas cinco dos 46 países estudados contam com a quantidade necessária. Os países da Europa central e oriental estão em situação pior do que os do oeste.

A maioria dos países que tiveram regimes socialistas começou a tomar medidas contra a violência doméstica e a ajudar as vítimas de forma mais sistemática há apenas uma década. Os dez abrigos existentes na Estônia, por exemplo, foram abertos nos últimos cinco anos graças à contribuição de fundos estatais e não governamentais. Muitas organizações femininas agora duvidam que os centros e as outras opções de ajuda possam continuar funcionando no futuro. Sua sustentabilidade já precária corre risco por culpa da crise econômica.

A esse respeito, a Oxfam e o Lobby Europeu das Mulheres divulgaram em 2010 o informe A Exclusão Social e a Pobreza das Mulheres na União Europeia em Tempos de Recessão: Uma Crise Invisível?. Segundo o estudo, as ONG da Europa central e oriental registram um crescente número de telefonemas para as linhas de ajuda e de pedidos para os refúgios desde o começo da crise na região, por volta de 2008.

Também influi o impacto negativo das medidas de austeridade implantadas na Europa para enfrentar a crise, como o fechamento de abrigos na Romênia, as consequências sobre o trabalho pela saída de doadores estrangeiros na Eslováquia e a impossibilidade de planejar sua atividade no longo prazo na Estônia por falta de apoio das autoridades locais.

Os fundos da UE, em especial o Programa Daphne (que oferece recursos para muitas iniciativas a favor dos direitos femininos na região), também estão sendo questionados. O orçamento para sete anos da UE está atualmente em estudo e a onda de austeridade na Europa já previu sua contração. A Comissão Europeia disse à IPS que havia proposto que os programas de igualdade de gênero e direitos femininos recebessem a mesma quantidade de dinheiro de até agora, cerca de 800 milhões de euros para os próximos sete anos.

“As medidas de austeridade têm consequências negativas sobre a prevalência da violência contra as mulheres, mas também atentam contra a capacidade destas para escapar” da situação, enfatizou Pierrette Pale, do Lobby Europeu das Mulheres. Envolverde/IPS