Rio de Janeiro, Brasil, 26/9/2012 – Cíntia Rose Regis, de 23 anos, está amamentando sua filha Zelda, de 16 meses. Contudo, há um ano doa parte de seu leite. E semanalmente entrega cerca de 600 mililitros. Foi seu pediatra que sugeriu que o fizesse. “Enquanto minha filha continuar mamando e estimulando minha produção de leite, continuarei doando”, afirmou. “Nunca vi os bebês prematuros que recebem o leite, mas só de saber que posso salvar alguns estou gratificada”, disse Cíntia à IPS. “É uma questão de consciência. Se tenho e posso tirar, por que não doar?”, acrescentou emocionada. Para ela, este ato é um exemplo que vale a pena. Se tiver um segundo filho voltará a ceder parte de seu leite a outros bebês, garantiu.
Qualquer mulher que produza um volume de alimento superior ao que seu filho consome pode doar o excedente. E o Brasil tem infraestrutura para que este ato privado de solidariedade ganhe impacto social e sanitário: uma rede nacional de bancos de leite humano. O país está se convertendo em referência internacional na matéria, e exporta para 23 países técnicas de baixo custo para implantar bancos de leite humano, uma ferramenta eficaz para combater a mortalidade infantil associada à falta de um alimento insubstituível.
A partir da iniciativa brasileira, há 238 bancos que incentivam e recebem doações em vários países da América Latina, na península ibérica e inclusive na África. Desses, 210 estão distribuídos em todos os Estados do Brasil, onde, neste ano já foram coletados mais de 97 mil litros de 86 mil doadoras, que alimentaram 108 mil bebês. No ano passado, foram recebidos mais de 165 mil litros doados por 166 mil mães, que dessa forma ajudaram quase 170 mil crianças.
A lei brasileira exige apenas que a doadora seja saudável e não tome medicamentos. As diretrizes incluem recomendações simples de higiene pessoal e do entorno, como escolher um lugar tranquilo, limpo e afastado de animais, manter as mãos limpas, empregar um recipiente esterilizado e conservar o leite no congelador. O alimento doado a um banco de leite passa por um processo de seleção, classificação e pasteurização e depois é distribuído, “com qualidade certificada”, aos bebês internados em unidades neonatais.
Este país de 192 milhões de habitantes “construiu a maior e mais complexa rede de bancos de leite humano do mundo”, disse à IPS o especialista João Arpígio Guerra de Almeida, coordenador da Rede Brasileira e Ibero-Americana de Bancos de Leite Humano. “Não trabalhamos apenas na coleta e distribuição. Temos casas de apoio à amamentação, mecanismos de controle de qualidade, indicadores nutricionais, monitoramento e consultoria”, acrescentou.
Diversos governos apostaram neste esforço por quase 30 anos, por meio de pesquisas da estatal Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que, em 1985, instalou o primeiro centro latino-americano de pesquisa sobre leite humano, para entender as características biológicas, físico-químicas e imunológicas deste alimento. “Notamos que esse trabalho podia se transformar em uma grande estratégia sanitária para promover condições que permitissem reduzir os absurdos índices de mortalidade que tínhamos no Brasil”, afirmou Almeida, pesquisador da Fiocruz. “Eram números alarmantes, muito superiores à média mundial”, ressaltou.
A partir da década de 1990, o país conseguiu reduzir em 73% as mortes infantis, e este ano alcançou a meta fixada nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: reduzir em dois terços a mortalidade de menores de cinco anos até 2015, a partir de dados de 1990. “Por nosso trabalho, a Organização Mundial da Saúde reconheceu o Brasil como o país que mais contribuiu para a queda desse indicador”, acrescentou Almeida. Antes deste esforço “éramos totalmente dependentes do Hemisfério Norte. Para processar o leite devíamos importar equipamentos da Europa e dos Estados Unidos, que custavam na época cerca de US$ 35 mil”, recordou.
A cooperação internacional começou em 2007. Hoje, países como Argentina, Bolívia, Equador, Paraguai, Venezuela e Uruguai já contam com infraestrutura para captar e distribuir doações de leite materno. “Apoiamos e assessoramos na implantação destes bancos e treinamos profissionais”, disse Almeida. Ao ampliar-se a iniciativa no âmbito ibero-americano, Portugal e Espanha entraram no circuito e se beneficiaram de uma incomum transferência de tecnologia Sul-Norte.
A criação de bancos de leite “se internacionalizou e, em 2007, os presidentes dos países ibero-americanos decidiram convertê-la em uma ação intergovernamental”, destacou Almeida. Assim, na cúpula realizada naquele ano, em Santiago, foi criado o programa ibero-americano de bancos de leite humano. O primeiro banco espanhol foi instalado em Madri. E em Portugal a maternidade lisboeta Dr. Alfredo da Costa recebeu uma instalação similar em 2008.
O primeiro país africano a adotar este sistema foi Cabo Verde, cujo banco de leite começou a funcionar em agosto do ano passado. Missões da Fiocruz estiveram em Moçambique e Angola em 2010 e 2011, onde já há projetos em fase de implantação. Todo este esforço aponta para a vontade de doar. O Brasil promove a adoção do dia 19 de maio como Dia Mundial da Doação de Leite Materno. “Foi nesse dia, em 2005, que aqui foi assinado o primeiro acordo, firmado por 13 países e organizações internacionais, para criar uma rede de bancos de leite”, enfatizou Almeida.
No Rio de Janeiro, o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF) é a unidade da Fiocruz especializada em atenção neonatal e recepção de leite. Rosane Xavier, de 35 anos, enfermeira que trabalha no laboratório pré-natal do IFF, estimula as mães a amamentarem e, se puderem, doar leite. Ela mesma amamenta seu primeiro filho, de dois anos e dois meses, e é doadora. “Quando a produção de leite é abundante, convido a mãe a doar. É preciso entender a importância deste alimento para os bebês prematuros”, contou à IPS.
Rosane assegura que doar algo tão pessoal como o leite materno traz benefícios às duas partes. Para a mulher, a vantagem consiste em retirar o leite em excesso, que pode causar vários problemas se ficar acumulado. Para o bebê receptor, implica menos enfermidades e melhor crescimento. “Quando um bebê não é amamentado, não se desenvolve com a mesma qualidade daquele que recebe o leite materno”, explicou a enfermeira. Com o leite materno “há maior desenvolvimento mental, da fala, da dentição e da imunidade”, acrescentou. Envolverde/IPS