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As dalit, abusadas intocáveis no Nepal

Os protestos pela discriminação contra as dalit no Nepal apresentam poucos resultados. Foto: Mallika Aryal/IPS
Os protestos pela discriminação contra as dalit no Nepal apresentam poucos resultados. Foto: Mallika Aryal/IPS

 

Katmandu, Nepal, 14/2/2014 – Maya Sarki, moradora em Belbari, no leste do Nepal, voltava para casa uma noite do último verão boreal quando foi atacada. Foi jogada no chão e tentaram violentá-la. Gritou e os vizinhos a ajudaram e evitaram que a agressão se consumasse. A mulher reconheceu a voz de seu atacante como sendo de um vizinho e o denunciou à polícia.

No dia seguinte, Sarki foi questionada por uma multidão, encabeçada por seu suposto atacante, no mercado da aldeia. A insultaram, rasgaram suas roupas e lambuzaram sua cara com fuligem. Depois bateram nela e a fizeram desfilar pelo povoado. Após o incidente, Sarki fugiu da aldeia.

Em Dailej, no ocidente do Nepal, Sushila Nepali, de 28 anos, foi violada durante anos por um professor da escola local. A obrigaram a abortar duas vezes, mas voltou a engravidar e deu à luz duas crianças. Repudiada por sua família, Nepali vive nas ruas e mendiga para conseguir abrigo e comida.

Sarki e Nepali são de diferentes partes desse país do Himalaia, mas têm em comum sua casta. Ambas são dalit, a casta mais baixa e marginalizada da sociedade, os chamados intocáveis. Tanto o atacante de Sarky quanto o violador de Nepali eram da casta hindu, considerada superior.

Estima-se que no Nepal há 22 comunidades dalit. Pesquisadores e organizações dessa casta dizem que constituem 20% dos 27 milhões de habitantes do país. Considera-se que os dalit estão no degrau mais baixo das castas e dos grupos étnicos do Nepal. Também são os mais pobres: 42% dos dalit vivem abaixo da linha de pobreza, contra 23% do resto dos nepaleses.

As eleições de novembro no Nepal puseram fim a um longo bloqueio político e, após dois meses de negociações, os membros da nova Assembleia Legislativa redigiram, finalmente, uma nova Constituição. Porém, especialistas afirmam que, inclusive nesta Assembleia, a comunidade dalit é a menos representada, com apenas 38 parlamentares em um total de 575.

Rajesh Chandra Marasini, gerente de programas do Jagaran Media Centre, uma aliança de jornalistas dalit formada para combater a discriminação com base nas castas, se inquieta com o fato de assuntos relacionados com os dalit voltarem ser desprezados na nova Constituição. “Me preocupa que os novos membros dalit da Assembleia adotem a linha do partido e se convertam em uma mera presença física”, declarou à IPS.

O Código Civil do Nepal de 1854 legalizou o sistema de castas e declarou a comunidade dalit como intocável. Em uma estrutura hierárquica hindu, esse rótulo determina onde os dalit podem viver, onde podem estudar e onde podem se socializar. Em 1963, foi abolida a discriminação por castas no Nepal e criada a Comissão Nacional Dalit. Em 2011, foi aprovada a Lei Contra a Discriminação com base na Casta e de Intocabilidade.

No entanto, os dalit continuam marginalizados. “A violência contra a comunidade dalit é ignorada, ou frequentemente fica sem denunciar, e passa inadvertida no Nepal”, apontou Padam Sundas, presidente da Fundação Samata Nepal, uma organização de investigação que trabalha pelos direitos da marginalizada comunidade.

Os dalit também são proibidos de participar de atividades comunitárias, como rezar nos mesmos templos onde rezam os nepaleses de castas superiores, sendo que estes não comem alimentos que tenham sido tocados por um dalit ou não usam as mesmas torneiras públicas que eles para beber água. E as mulheres são as mais discriminadas e vulneráveis.

“As dalit estão no nível mais baixo da hierarquia de castas e de gênero no Nepal”, destacou Bhakta Bishwokarma, presidente da Organização Nacional de Bem-Estar Social Dalit do Nepal, que busca eliminar a discriminação de castas no país. “As mulheres dalit sofrem triplamente: a sociedade as discrimina por serem mulheres, por pertencerem à comunidade dalit e, dentro de sua própria comunidade, voltam a sofrer por serem mulheres”, acrescentou à IPS.

“Estudando os casos de mulheres acusadas de serem bruxas, observa-se que habitualmente são mulheres dalit. São elas as traficadas facilmente, as que trabalham em condições terríveis”, disse Durga Sob, da Organização Feminista Dalit, que coopera com o governo em assuntos de gênero dalit. Segundo ativistas, as dalit vítimas de violência são induzidas a não apresentarem denúncia à polícia.

“Dizem a elas que envolver as autoridades que aplicam a lei perturbará a harmonia social, e as vítimas são pressionadas informalmente a se resignem”, contou Bishwokarma. “Ninguém é responsabilizado por uma ação discriminatória contra os dalit”.

O ataque contra Sarki recebeu ampla cobertura da imprensa e foi severamente repudiado. Poucos dias depois de noticiado o caso, ativistas humanitários protestaram diante dos escritórios de políticos na capital, portando cartazes que pediam medidas para não deixar o caso impune. “Os ativistas permaneceram ali por dias, entregaram um memorando ao governo e a situação se acalmou”, detalhou Bindu Thapa Pariyar, da Associação para a Promoção das Mulheres Dalit do Nepal (Adwan).

Os investigadores consideram que há motivos importantes pelos quais os problemas dos dalit passam despercebidos. “Temos todo tipo de normas e leis, mas nunca são aplicadas, e, mesmo quando tentamos que sejam, as vítimas não obtêm justiça”, enfatizou Sob. Ela recomenda que a legislação seja simples e também que as autoridades locais encarregadas de seu cumprimento sejam formadas para esse fim, para que entendam os direitos do povo dalit.

Além disso, alertam, o movimento dalit perdeu seu impulso. “Não podemos pensar no ativismo dalit baseado em um enfoque de desenvolvimento de projetos apoiados por doadores”, argumentou Pariyar. “Quando o dinheiro do projeto acaba, seguimos adiante, mas isso não necessariamente significa que conseguimos o que nos propusemos a fazer”, acrescentou.

No caso de Sarki, por exemplo, há a questão da reabilitação, os cuidados com seu trauma psicológico, a segurança de sua família e sua volta segura ao seu lar. “Os ativistas pelos direitos humanos precisam pensar no longo prazo. Um protesto só desfere um pequeno golpe nos políticos, o trabalho real tem lugar com as vítimas no terreno”, destacou Pariyar, que pediu uma liderança mais forte na defesa dos dalit.

Segundo Pariyar, “os legisladores dalit podem estar sob controle de seus partidos, mas precisamos ser vigilantes fora da Assembleia, para manter a pressão sobre eles e para que tomem a decisão correta. Se não pressionarmos agora, quando se redige a nova Constituição, nunca o faremos”. Envolverde/IPS