Beirute, Líbano, 29/11/2013 – As mulheres vítimas de violência de gênero no Líbano continuam à mercê dos rígidos tribunais religiosos, enquanto um projeto de lei civil contra esse tipo de agressões continua parado no parlamento. Uma das muitas libanesas que pedem o divórcio e a guarda dos filhos é Aisha, de 24 anos, originária do Vale de Becá, 30 quilômetros a leste de Beirute.
Casada há oito anos com um xeque muçulmano sunita, Aisha contou à IPS que apanhava continuamente. Além disso, seu marido a forçava a se prostituir mais de quatro vezes ao dia nessa cidade para pagar a cocaína que ele usava. Aisha, que pediu para não revelar o sobrenome, contou que exerceu a prostituição durante duas das vezes que ficou grávida, e que seu marido, frequentemente na prisão por tráfico de drogas, consumia narcóticos diante de seus quatro filhos e fazia sexo com outras mulheres em sua casa.
“Mantinha relações sexuais com meu marido, mas não havia sentimento”, disse em tom sombrio. Há um ano, Aisha fugiu de casa. “Queria uma nova vida para meus filhos. Não queria que tivessem uma mãe com má reputação”, argumentou. Agora vive em Beirute com dois de seus irmãos, e sofre depressão. Seu marido acaba de ser novamente libertado e se reveza com ela para visitar os filhos, que estão em um orfanato. Os pequenos, dos quais a mais velha é uma menina de oito anos, temem o pai, mas Aisha os convence a vê-lo, por medo de represálias.
Agora seu pedido de divórcio e guarda dos filhos está parado em um tribunal sunita. Esses tribunais religiosos islâmicos tradicionalmente beneficiam o marido em caso de dissolução do casamento, e os pais têm sempre o direito à guarda dos meninos a partir dos sete anos e das meninas a partir dos nove.
Aisha garante que seu marido está subornando o xeque encarregado do tribunal para que não deixe o caso ir adiante. “Não aconteceu nada. No Vale de Becá é como uma família, todos se conhecem”, afirmou. Para agravar a situação, o tribunal fica em Arsal, localidade no topo de uma colina na fronteira com a Síria, cenário recente do conflito bélico no país vizinho e ao qual os advogados resistem a ir.
No Líbano há 18 diferentes grupos religiosos e cada um dita suas próprias normas em assuntos como casamento, divórcio, guarda dos filhos, pensões e heranças. As vítimas de violência familiar estão atadas por rígidas leis religiosas, como as aplicadas em tribunais muçulmanos sunitas e cristãos maronitas, que praticamente as impedem de se divorciar. Os tribunais drusos e cristãos ortodoxos são um pouco mais indulgentes.
Uma pesquisa com mais de cem libanesas, divulgada este ano pelo Centro Médico da American University de Beirute, indica que mais de dois terços sofreram violência verbal por parte de seus maridos, enquanto 40% foram vítimas de abusos físicos. A maioria das mulheres consultadas disse que nunca abandonariam o lar por medo de perder a guarda dos filhos, bem como o apoio financeiro e social que o casamento representa.
O atual projeto de lei sobre violência familiar foi aprovado por um subcomitê parlamentar em julho, depois de uma considerável pressão de ativistas, e significa um grande avanço, já que o abuso doméstico deixa de ser um assunto privado. “O mais importante é que a mulher que é vítima tem direito de ir à polícia apresentar queixa, e há funcionários especializados em violência de gênero”, explicou Raghida Ghamlouch, trabalhadora social no Conselho Libanês para Resistir à Violência Contra as Mulheres.
A organização fornece assessoria legal e psicológica a mulheres vítimas de abusos. “O Estado terá o direito de punir o agressor”, ressaltou Ghamlouch. O projeto também inclui outras salvaguardas, como ordens cautelares, ações judiciais contra os agressores e fornecimento de abrigo para as vítimas. Contudo, o que ainda falta, dizem os ativistas, é que se puna a violência dentro do casamento e que o texto especifique a proteção à mulher, e não apenas a “membros da família”.
A multiplicidade religiosa se reflete em todos os aspectos da vida política e social do Líbano, e se tornou mais profunda na guerra civil que assolou esse país entre 1975 e 1991, que terminou com o Acordo de Taif, pelo qual os diferentes grupos dividiram o poder e o governo. O presidente é cristão maronita, o primeiro-ministro é muçulmano sunita e o presidente do parlamento é do ramo xiita do Islã.
Temas como o casamento são regidos apenas por leis religiosas, que estabelecem importantes limitações. Ainda que um tribunal religioso sentencie a favor de uma mulher, a aplicação é complicada, apontou Nicole, uma maronita de pouco mais de 40 anos. Esta mãe de dois filhos fugiu de sua casa há dez anos porque o marido a torturava com cigarro acesso e choques elétricos.
Segundo as normas maronitas, o marido sempre tem direito à guarda dos filhos a partir dos dois anos de idade. Por isso ela passou a ser uma “sequestradora”. Nicole, finalmente, ganhou o divórcio, e mais tarde a guarda e uma ajuda, mas seu marido até agora se nega a pagar. Ela ainda vive escondida com os filhos, e oito anos de medo e batalhas legais a marcaram psicologicamente: sofre de profunda depressão.
São casos como este que mais preocupam Ghamlouch. Mas a instabilidade política nesse país novamente deixou todos os projetos em compasso de espera. “Estamos aguardando uma nova lei, mas não sabemos quando o parlamento se reunirá”, lamentou. Envolverde/IPS