Rio de Janeiro, Brasil, 16/11/2012 – Entre a emergência de uma parturiente negra e uma branca, o médico brasileiro escolhe a branca porque “as negras são mais resistentes à dor e estão acostumadas a parir”. As convenções culturais e sociais brasileiras “imputam ao negro condições de estereótipo, que fazem com que não tenha as mesmas garantias de tratamento da saúde que um branco”, disse à IPS a psicóloga Crisfanny Souza Soares, da Rede Nacional de Controle Social e Saúde da População Negra. Estes estereótipos refletem um racismo que faz mal à saúde e que uma campanha tenta extirpar do sistema hospitalar brasileiro.
Dos 192 milhões de brasileiros, metade se reconhece como negra. A Mobilização Nacional Pró-Saúde da População Negra, foi lançada este ano por organizações de afro-brasileiros, com apoio do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Sob o lema “Vida longa, com saúde e sem racismo”, o objetivo da campanha é a saúde integral em todas as fases da vida, incentivando a sociedade, e em particular o sistema sanitário, a combater a discriminação para reduzir os altos índices de mortalidade da população de origem africana.
“Praticamente, todos os índices de saúde da mulher negra são piores do que os da branca. Em uma consulta sobre câncer de mama, as negras são menos apalpadas do que as brancas; e recebem menos anestesia no parto”, afirma Crisfanny. O Ministério da Saúde, que desde 2006 impulsiona uma política nacional integral para este grupo de população no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), realiza estudos para detectar este tipo de situação.
“A ideia de que a população negra é mais resistente à dor e tem melhores condições de conviver com a doença está presente em todo o sistema de saúde, desde os técnicos de enfermagem até os médicos”, afirmou Deise Queiroz, coordenadora da Articulação de Jovens Negras, da Bahia. Ela conhece bem isso, especialmente porque sua mãe, que sofre de diabete e pressão alta, deve recorrer com frequência ao sistema público de saúde. Segundo a ativista, o SUS, que foi um modelo de democratização do serviço de saúde, hoje não consegue atender tanta demanda, e “as atitudes racistas ficam mais evidentes”.
A Constituição determina que a saúde é um direito universal e o Estado tem o dever de proporcioná-la. O SUS estabelece que “todas as pessoas têm direito ao tratamento de qualidade humanizado e sem nenhuma discriminação”. Entretanto, o racismo se infiltra aberta ou sutilmente. “Ele se incorpora nas condições de vida da população, na organização dos serviços de saúde e na formulação de políticas”, explicou à IPS a representante auxiliar do UNFPA no Brasil, Fernanda Lopes. “Por isto é necessário construir políticas específicas de equidade”, afirmou.
Um estudo epidemiológico do Ministério da Saúde apresenta informação específica para ajudar a preencher esses vazios, ao comparar indicadores como assistência pré-natal por raça, cor e etnia. Também analisa outros aspectos, como o direito e o acesso a planejamento familiar, que é mais precário entre as afrodescendentes. Precisamente este aspecto é o centro do informe mundial do UNFPA, apresentado no dia 14, com o título Sim à Opção, não ao Acaso – Planejamento da Família, Direitos Humanos e Desenvolvimento.
Por exemplo, 19% das crianças nascidas vivas são de mães adolescentes brancas entre 15 e 19 anos. Contudo, a incidência de gravidez em adolescentes é de 29% entre as jovens afro-brasileiras da mesma faixa etária. Além disso, enquanto 62% das mães de crianças brancas informavam ter realizado sete ou mais consultas pré-natais, apenas 37% das mães de recém-nascidos mulatos e negros realizaram essa quantidade de exames antes do parto.
A mortalidade infantil também apresenta disparidades. O risco de uma criança negra ou mulata morrer antes dos cinco anos de idade por doenças infecciosas e parasitárias é 60% maior em relação a uma criança branca. E o de morte por desnutrição é 90% superior. O estudo também constatou que morrem mais grávidas afrodescendentes do que brancas por causas vinculadas à gestação, como hipertensão.
“Dizem que os piores índices sanitários da população negra se deve ao fato de a maioria ser pobre e, por isso, mais vulnerável”, apontou Crisfanny. Porém, não se pode negar outras variáveis estritamente racistas, advertiu. “Se em um hospital vemos dois jovens baleados, é mais fácil o imaginário cultural colocar o branco no papel de vítima, enquanto o negro estaria ali porque se envolveu em um crime”, ressaltou a psicóloga, afirmando que às vezes essa referência “faz com que um profissional estabeleça prioridades no atendimento”.
Outra preocupação se refere às doenças prevalentes na população afrodescendente, como anemia falciforme, diabete mellitus Tipo II e hipertensão, que o sistema sanitário não está preparado para abordar de maneira específica. As mulheres negras têm 50% mais possibilidades de desenvolver esse tipo de diabete, com o agravante de a hipertensão arterial entre elas ser duas vezes maior do que na população em geral.
O mesmo ocorre com a anemia falciforme, que poderia ser detectada nos recém-nascidos. Segundo a Mobilização Nacional Pró-Saúde, cerca de 3.500 crianças brasileiras nascem a cada ano com essa enfermidade, fazendo dela a doença genética de maior incidência no país. “A população negra morre, em geral, mais cedo, e suas mortes por causas evitáveis são mais frequentes”, pontuou Fernanda. Por isso, uma política para combater a discriminação na saúde “chega para minimizar o impacto das desigualdades históricas mediante estratégias de ação afirmativa”, acrescentou.
O UNFPA contribui com o governo e o movimento negro para fortalecer essa política e a formação profissional que deve acompanhá-la. “O desafio é responder por que, em um país onde a população negra representa 50,3% do total, temos um quadro sanitário tão diferenciado” entre negros e brancos, admite o Ministério da Saúde. Envolverde/IPS