A maioria das pessoas – mas não os cientistas – desconhece o efeito devastador da mudança proposta pelos ruralistas na medição da Área de Proteção Ambiental em torno de corpos d’água – rios, lagos etc. Além de tentar reduzir a faixa de proteção, os desmatadores querem que a medição desta faixa seja feita a partir do “leito regular” do corpo d’água.
Apenas esta manobra, entretanto, exporia à destruição milhares de quilômetros de florestas, ecossistemas importantíssimos e o meio de vida de milhares de brasileiros em área úmidas, segundo a maioria dos especialistas no assunto. Para o WWF-Brasil, não é diferente. “Nossa preocupação é a mesma dos cientistas”, disse Maria Cecília, secretária-geral organização.
Ela alerta para o fato de que a mudança expõe áreas nas quais populações inteiras aproveitam, durante a vazante, as áreas fertilizadas pelas cheias.
Ocorre que mais de 20% do território nacional podem ser classificados como áreas úmidas, em sua maioria densamente florestadas. Daí a necessidade de um tratamento diferenciado para esses ambientes pelas leis brasileiras, incluindo o Código Florestal.
Na bacia Amazônica as áreas úmidas correspondem a um total de 30%, cerca de 1.800.000 km². Deste total, mais de 400.000 km² compreendem as áreas alagáveis ao longo do rio Amazonas e seus grandes tributários. Por outro lado, apenas o Pantanal cobre uma área de 160.000 km2, sendo 85% desta área em território brasileiro.
A doutora em Ecologia Maria Tereza Fernandes Piedade, do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa), na região Amazônica, por exemplo, a diferença entre os níveis altos e baixos da inundação pode ser de mais de 10 metros.
“Isto quer dizer que as florestas alagáveis somente serão protegidas se for considerando o nível superior da cheia pare efeito de medição da faixa de proteção ambiental”, assegurou Maria Piedade.
Apenas essas faixas ao longo dos rios representam um total superior a 400.000km2, atualmente sob a responsabilidade da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), e moradia de cerca de 2 milhões de pessoas, considerando apenas os estados do Amazonas e Pará (IBGE, 2010).
No Pantanal, chamado de um ecossistema de pulso, a referência à largura da calha regular não aborda o mais importante dos aspectos nesse tipo de sistema, que é a extensão e expansão lateral dessas áreas úmidas, que varia ao longo da paisagem e do ano.
Por exemplo, na entrada da planície Pantaneira, a área úmida do Rio Cuiabá é estreita, mas dentro da planície é muito larga, apesar de o leito regular ter a mesma largura. Desta forma, é evidente que a proteção eficiente das áreas só é possível usando o nível máximo de inundação como ponto de referência.
Brejo não!
Grande parte dos brasileiros não entende a importância de proteger “um brejo”. Mas não é bem assim. Para começar, são vários os tipos de área úmidas do país, incluindo os tais brejos.
As áreas úmidas ocorrem em todas as regiões brasileiras e chegam a cobrir centenas de milhares de quilômetros quadrados, podendo ser divididas nas seguintes categorias: áreas alagáveis ao longo de grandes rios de diferente qualidade de água [águas brancas (várzeas) pretas e claras (igapós)], baixios ao longo de igarapés de terra firme, áreas alagáveis nos interflúvios (campos, campinas e campinaranas alagáveis, campos úmidos, veredas, campos de murunduns, brejos, florestas paludosas) e áreas úmidas do estuário (mangues, banhados e lagoas costeiras).
E que importância as áreas úmidas têm, afinal? Um dos aspectos mais importantes desses ecossistemas em comparação a outros é o valor dos serviços ambientais que eles proporcionam para a sociedade e meio ambiente: estocagem e limpeza de água, recarga do lençol freático, regulagem do clima local, manutenção da biodiversidade, regulagem dos ciclos biogeoquímicos, estocagem de carbono, e habitat para inúmeras espécies, endêmicas ou não.
Acima de tudo, estes ambientes são fundamentais – com seus ciclos de cheias e vazantes – para a economia dos que os habitam. São importantes para o homem e seu modo de vida, ou seja, para pesca, agricultura de subsistência, coleta produtos madeireiros e não-madeireiros e, em áreas abertas savânicas, para a pecuária extensiva.
Mas tem mais: diante do agravamento dos efeitos das mudanças climáticas – um dos quais é o asseveramento das secas – as áreas úmidas representam verdadeiros bancos de vida, uma “esponja”, absorvendo e guardando água, para liberá-la lentamente, mantendo por mais tempo a disponibilidade do precioso líquido e reduzindo o impacto do aquecimento global sobre a biodiversidade e as comunidades em seu entorno.
Problemas rio abaixo
A mudança na legislação brasileira não afetará somente a nós, brasileiros. Esta é a opinião de Pierre Gerard, pesquisador do Centro de Pesquisas do Pantanal. “Tudo o que se faz rio acima, se reflete rio abaixo”, sentencia o especialista.
Gerard alerta que o Pantanal é uma área de sedimentação. “Com a redução das matas ciliares, é de se supor que haverá mais erosão e consequentemente maior sedimentação no Pantanal. Isto vai transformar a região em uma espécie de barragem, que reduzirá a oferta de água para o Paraguai e Argentina. Durante as secas, o problema vai se agravar”, prevê o cientista.
Assim como o Pantanal, é de se prever que mudanças tão danosas ao ambiente em um país continental como o nosso irá atingir negativamente a todos os países da América do Sul.
E isto sem considerar o aumento de emissões de gases de efeito estufa causado pelo desmatamento e nas mudanças dos ciclos de chuvas comandados pela Amazônia para a América do Sul e para o planeta.
Nossa responsabilidade é grande demais para ficar à mercê de interesses econômicos de uma minoria de ruralistas.
* Publicado originalmente no WWF Brasil e retirado do Mercado Ético.