Ouricuri, Brasil, 12/9/2011 – O surgimento da violência parecia iminente quando quase 1.500 camponeses famintos invadiram esta pequena cidade pernambucana. À ameaça de saque se contrapunha a polícia disposta ao combate. Era o ano de 1993 e a seca já durava três anos no interior do semiárido do Nordeste. As mortes por fome e sede que se sucediam empurravam multidões para as cidades em busca de alívio, às vezes assaltando comércios e armazéns em sua passagem.
O governo do presidente Itamar Franco (1992-1995) tentava contar os desesperados oferecendo alguns alimentos e trabalho temporário nas chamadas “frentes de emergência”. “Eles vinham dispostos à guerra”, lembrou Juvenal Ferraz, na época presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Ouricuri, município do oeste do Estado de Pernambuco, cuja população era 70% de origem camponesa, quando a média nacional chegava a apenas 25%.
“A única alternativa” que ocorreu a Ferraz para evitar a tragédia foi acompanhar os manifestantes nos três dias em que ocuparam as ruas diante do sindicato, do Tribunal de Justiça e da prefeitura, “pedindo que ficassem calmos”, enquanto também dialogava com a polícia, “pedindo compreensão”. Conseguiu alojá-los em um casarão, onde ficaram outros três dias sem comida, e costurou um acordo para que se alistassem em uma frente de emergência para limpar açudes, de onde se retira água dos rios para irrigação e uso doméstico. Desse modo conseguiu baixar a tensão e os camponeses voltaram para suas casas.
No Nordeste, a reiteração de tragédias climáticas semelhantes e o fracasso de políticas de “obras contra a seca”, com construção de represas, estradas e sistemas de irrigação, pediam urgência na busca de novas soluções. Entretanto, apenas uma década depois foi implantada uma alternativa efetiva. A Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), uma rede de mais de 700 organizações sociais, adotou o caminho da “convivência com o semiárido”, espalhando cisternas e outras formas de coletar água da chuva em pequenas unidades familiares e comunitárias.
Por sua vez, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) iniciou, em 2007, um gigantesco projeto “contra a seca”, a transposição artificial das águas do Rio São Francisco, que nasce no Estado de Minas Gerais e cruza o sul da região rumo a bacias do Nordeste, para abastecer 30 represas e perenizar vários rios que secam por temporadas. A obra, uma vez acabada, beneficiará 12 milhões de pessoas, que vivem em 390 municípios dos Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, os mais afetados pelas secas, garantindo o abastecimento a algumas das grandes cidades e centenas de pequenas e médias, segundo o Ministério de Integração Nacional, responsável pelo projeto.
A oferta adicional permitirá melhor gestão dos recursos hídricos no Nordeste e estimulará o desenvolvimento econômico do interior da região, desviando apenas 1,4% do fluxo do São Francisco, argumentou o governo, em resposta às críticas que o projeto desperta. Contudo, a situação no Nordeste semiárido já mudou. Os pequenos agricultores e trabalhadores rurais deixaram de ser tão vulneráveis às secas, segundo Ferraz. A do ano passado foi em muitas partes mais intensa do que a de 1993 e não se repetiu a fome daquela época, lembrou.
Isso se deve aos programas sociais do governo Lula, continuado pela administração de Dilma Rousseff, como o Bolsa Família, que ajuda 13 milhões de famílias pobres, a metade no Nordeste. Também graças às tecnologias de armazenagem da água da chuva, explicou Ferraz. “A fome desapareceu, já não é permanente”, acrescentou o sindicalista. O Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), iniciado em 2003 pela ASA já beneficiou, até o final de julho deste ano, 351.140 famílias com o sistema que leva a água caída no telhado das casas para um depósito feito com placas de concreto, com capacidade para 16 mil litros. É água potável para beber e cozinhar.
As cisternas instaladas com apoio dos governos locais e de outras instituições já passaram de meio milhão, segundo Paulo Pedro de Carvalho, coordenador-geral da Caatinga, uma organização não governamental com sede em Ouricuri e dedicada ao desenvolvimento rural sustentável nas proximidades da Meseta do Araripe, no oeste de Pernambuco. A Caatinga “ajudou muito” a superar a crise de 1993 em Ouricuri, reconheceu Ferraz, que, “sem deixar o sindicalismo”, se incorporou a esta organização para espalhar cisternas. Ultimamente promove sua construção em escolas, para garantir água potável aos alunos e incentivar conhecimentos sobre a realidade do semiárido e temas hídricos.
“Vi muitas meninas e meninos chorando de sede e mães por não terem água para cozinhar”, recordou Ferraz, destacando que alguns não acreditam na eficácia das cisternas até elas “melhorarem muito a vida de suas famílias. “É uma pena que os governos não apoiem o programa como gostaríamos”, prosseguiu. O governo federal financiou cerca de três quartos das cisternas construídas pela ASA, por intermédio do Ministério de Desenvolvimento Social, mas com recursos bem abaixo do necessário para a meta de um milhão de cisternas em cinco anos, cumprida em apenas 35% em oito anos.
É um mistério Lula não ter abraçado o programa da ASA, atendendo sua sensibilidade de ter nascido no Nordeste, filho de uma família que emigrou para São Paulo quando ele era criança fugindo da pobreza e das seca, disse Jean Carlos Medeiros, coordenador do P1MC. Lula impôs políticas que beneficiaram os pobres, especialmente os nordestinos, mas na questão hídrica deu prioridade à transposição do São Francisco, uma ideia em discussão desde o Século 19, que só por sua decisão finalmente começa a se concretizar.
O projeto custara R$ 6,85 bilhões, informou em agosto o Ministério de Integração, admitindo aumento de 36% sobre o orçamento inicial. Além disso, as obras avançam lentamente, com alguns trechos paralisados. Sua conclusão, inicialmente prevista para 2010, foi adiada, no mínimo, para 2014. “É um retrocesso” sobre a “convivência com o semiárido” que hoje se reconhece como caminho para uma solução efetiva dos problemas sociais do Nordeste, definiu Alba Cavalcanti, coordenadora-adjunta de outro programa da ASA, de coleta de água da chuva para irrigar hortas
A transposição constitui uma brutal intervenção na natureza, somando 518 quilômetros de canais mais 42 aquedutos, cinco túneis, 30 represas e nove estações de bombeamento de água a centenas de metros de altura. No total são 713 quilômetros de obras em dois eixos. No entanto, essa gigantesca obra pode não beneficiar a chamada “população difusa”, como são os camponeses do semiárido, os mais pobres e afetados pelas secas periódicas, que no passado viam a emigração como única saída.
Em Ouricuri, por exemplo, seus 74.526 habitantes do censo de 1991 baixaram para 56.733 em 2000, devido a várias secas na década de 1990. A recuperação se refletiu no censo de 2010, com 64.358 habitantes. “Conviver com o semiárido é mais do que ter água, compreende também valorizar a terra, ter orgulho de ser nordestino, sentir-se capaz de viver ‘em minha terra’, e não um cidadão inferior”, concluiu Alba Cavalcanti. Envolverde/IPS