O ano de 2014 foi declarado pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) como o ano da agricultura familiar. O que revela a importância dessa atividade no mundo, à qual se dedicam ao redor de 500 milhões de famílias entre camponeses, pescadores, populações indígenas, etc. A maior parte delas vivendo abaixo da linha de pobreza. No caso do Brasil, a situação não é diferente. Existem atualmente 4,367,902 agricultores familiares reconhecidos, os quais fornecem 70% dos alimentos que constituem a dieta básica da população: feijão, mandioca, milho e leite; os outros 30% são produzido pelo agronegócio que exporta a maior parte da produção de soja e agrocombustíveis para o mercado chinês, entre outros. Assim, como em muitos países da América Latina cheios de profundas contradições, no Brasil convivem dois modelos de agricultura e junto com eles, a riqueza mais excessiva junto à pobreza mais irrisória.
Não se pode negar que o país luta contra a fome e a miséria, mas os desafios ainda são muito grandes. Porém, também há sucessos. No tema da segurança alimentar podem se notar mudanças estruturais importantes a partir do começo do século XXI, logo após de uma década de políticas neoliberais. Essas mudanças foram produto de uma série de fatores econômicos, políticos e sociais que aconteceram no país, mas que foram catapultadas por uma marcada pressão social da sociedade civil organizada (materializada na criação do CONSEA) e institucionalizadas com a vontade política do governo, especialmente no período do presidente Lula. Assim, no campo da segurança alimentar e nutricional, o país conseguiu estabelecer um sistema complexo, intersetorial e integrado para dar resposta às demandas sociais e conquistar o direito a alimentação, reconhecido explicitamente na Constituição desde o ano 2010. O Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) funciona como uma engrenagem e é integrado por uma série de políticas públicas focalizadas e estruturais gerenciadas por diversos ministérios nos três níveis de governo e fiscalizadas pela sociedade civil através do CONSEA. No processo de constituição do sistema, uma das estratégias que ganhou reconhecimento internacional pelos resultados no combate à pobreza e à fome foi o Fome Zero que, apesar de não existir mais como estratégia, os programas que lhe deram sentido ainda funcionam, com mudanças e reformas, sendo que algumas foram aprofundadas no Plano Brasil Sem Miséria.
Dentre estes, acho que deve se ressaltar a importância de um, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O qual tem uma trajetória importante dentro da luta por colocar os agricultores familiares no lugar certo: no centro das políticas públicas para atingir a segurança alimentar e nutricional do povo brasileiro. O PAA foi criado no ano 2003 pelo governo da República e tem um duplo objetivo: por um lado, garantir aos camponeses um mercado seguro para comercializar os seus produtos através da compra direta do governo (pelas prefeituras), e por outro oferecer uma alimentação saudável à população em insegurança alimentar (população de creches, asilos, restaurantes populares, cozinhas comunitárias, bancos de alimentos, comunidades indígenas e quilombolas, etc.). Um terceiro objetivo que é muito menos reconhecido, mas que é muito importante é que o PAA revaloriza a produção local dos camponeses respeitando os hábitos culturais das populações, tentando com isso garantir a soberania alimentar ao mesmo tempo em que fomenta o cooperativismo e a organização entre os agricultores.
Mesmo que ainda tenha resultados modestos quanto ao número de agricultores familiares envolvidos no programa devido, entre outras coisas, aos obstáculos burocráticos no processo de adesão (pois os agricultores devem ter uma declaração de aptidão ao programa de crédito PRONAF, DAP), o PAA é uma das iniciativas mais inovadoras do governo brasileiro que conta com mecanismos muito benéficos para o pequeno agricultor como o seguro contras as perdas dos cultivos ou a garantia da compra da produção a preços preferenciais. Esse tipo de iniciativas oferece uma segurança para eles ante a incerteza das mudanças climáticas estacionais e a volatilidade dos preços dos alimentos. Por tudo o já dito, o PAA não só deve ser reconhecido, mas também pode ser uma estratégia que, adaptada às circunstancias locais, pode representar um bom exemplo de política pública levada ao terreno da cooperação internacional. Como de fato já está ocorrendo com o PAA África (Purchase for Africans for Africa) desde O projeto é uma tentativa de levar a experiência brasileira ao contexto africano com a cooperação da FAO (encarregada da assistência técnica), o PMA (Programa Mundial de Alimentos, quem compra os produtos dos agricultores) e o DFID (UK Department for International Development, que acompanha o processo do projeto desde um ponto de vista metodológico). Os países envolvidos são: Etiópia, Malawi, Moçambique, Níger e Senegal. Os desafios são muitos e de diversos tipos. Alguns se referem à capacidade de adaptação do projeto por falta de recursos, infraestrutura, e marcos legais adequados para conseguir o funcionamento bem sucedido dele.
Outros a qualidade dos alimentos (não em todos os países as refeições são quentes senão misturas de cereais) e a capacidade dos agricultores para produzir. A título de comparação, vale a pena lembrar que o processo pelo qual o Brasil passou com o objetivo de consolidar a sua política de segurança alimentar teve como princípio a institucionalização dos projetos através das políticas públicas do SISAN, além do controle social, chave para a prestação de contas à sociedade civil que demandou as mudanças. O processo na África com certeza não pode ser igual, mas um fator imprescindível sem dúvida é a vontade política e a participação social, além dos recursos suficientes para sustentar os projetos e a superação das dificuldades mencionadas anteriormente.
Mas então, até onde este tipo de projetos podem ter sucesso e conseguir os seus objetivos? Até onde, quando existem também outros obstáculos como os interesses do agronegócio que estão presentes tencionando para eliminar qualquer outra forma de agricultura que não seja a grande escala, fazendo os camponeses depender do uso de agrotóxicos, da compra de sementes transgênicas, do trabalho nas grandes empresas em troca de condições de vida ruins, da remoção deles das terras que lhes pertencem? Esses são problemas compartilhados no Brasil e na A cooperação brasileira tem no discurso como princípios a ajuda livre de condicionalidades, baseada no oferecimento da expertise brasileiro, e sempre respondendo à demanda dos países receptores da cooperação. Mas, o que também é verdade é que as empresas do agronegócio brasileiro estão presentes em quase toda África, e ao mesmo tempo o governo brasileiro promove o PAA. Como podem ser conciliados esses diversos interesses? O discurso diz não existir de fato um antagonismo entre os projetos, mas a realidade afeta de diferentes formas aos grandes e aos pequenos, e isso é inegável.
O diretor da FAO, Graziano Da Silva (brasileiro), pode e deve aproveitar o momentum político para mudar o panorama, pelo menos promover a criação de programas como o PAA ou PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). Não é levar a verdade sobre o jeito certo de fazer as coisas, mas é pôr em prática o que a cooperação sul-sul é de fato: um instrumento para compartilhar experiências bem sucedidas que tem que ser adaptadas e apropriadas às realidades locais de onde são implementadas, formando capacidades locais e fortalecendo a organização dos parceiros. Por outro lado, acho que é uma boa oportunidade para reconhecer que a agricultura familiar não é um passo em direção à agricultura de grande escala, não é um estágio antes de virar agronegócio, é uma atividade produtiva que tem que ser reconhecida pelo valor simbólico e material que tem. O ano seguinte vislumbra oportunidades e desafios em termos políticos. Para o Brasil, no âmbito interno, é manter o que já foi atingido e supera-lo. Na cooperação internacional é promover a experiência no tema da segurança alimentar. Mas em ambos os terrenos um dos maiores obstáculos são os interesses do agronegócio.
Precisa-se de muita vontade política e pressão social. A cooperação não pode estar só nas mãos das elites governamentais, tem que se democratizar, pelo bem dos 870 milhões de pessoas que sofrem de fome no mundo.
* Analí Pérez Ramirez é graduada em Relações Internacionais (UNAM), estudante de Mestrado em Cooperação Internacional pelo Desenvolvimento, Instituto Mora, México.
** Publicado originalmente no site Canal Ibase.